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StandWithUs Brasil / Segunda Guerra Mundial

Os italianos que salvaram judeus durante a Segunda Guerra

A Itália foi um dos países sob ocupação alemã durante a guerra com a taxa mais alta de sobrevivência de judeus

Claudia Malbergier Caon* Publicado em 09/07/2023, às 10h00

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Giovanni Borromeo, médico que salvou judeus durante a Segunda Guerra - YAD VASHEM
Giovanni Borromeo, médico que salvou judeus durante a Segunda Guerra - YAD VASHEM

Outubro de 1943. Roma está sob ocupação alemã. Mais de mil judeus, homens, mulheres e crianças, já haviam sido presos violentamente pelos nazistas no gueto judaico. No Hospital Fatebenefratelli, localizado na ilha Tiberina, próximo ao gueto, estão abrigadas dezenas de judeus que tentam escapar da captura. Suspeitando da presença de judeus, soldados nazistas entram no hospital. O médico Giovanni Borromeo lhes informa que não há judeus ali, mas eles insistem em revistar todas as alas do hospital.

Quando chegam ao local em que estavam “internados” os judeus – tossindo aflitivamente, eles fingiam estar doentes –, Borromeo adverte que aqueles pacientes em isolamento sofriam da terrível “doença K”, extremamente grave e contagiosa. Assustados, os alemães desistem da revista e vão embora.

Nessa mesma época, na região do Piemonte, no norte da Itália ocupada, uma família judia originária de Turim refugia-se em uma cidadezinha chamada Piea. Munidos de documentos falsos, para não serem identificados como judeus, vivem livremente por dois anos na região e comportam-se como católicos, a fim de não levantarem suspeitas. Soldados alemães vasculhavam constantemente a área em busca de partigiani e desertores. Se fossem descobertos, os judeus seriam imediatamente deportados.

O Hospital Fatebenefratelli, localizado na ilha Tiberina /Crédito: Dguendel

A verdade

Quando a guerra terminou, resolveram contar a verdade aos habitantes de Piea e agradecer a hospitalidade. Tiveram então uma grande surpresa: todos sabiam, desde o começo, que eles eram judeus! E por que não os delataram, uma vez que a presença de judeus os colocava em enorme perigo? “Porque vocês são pessoas, seres humanos como nós. Cristãos como nós.”

numerosas histórias como essas em todo o território italiano, de cristãos que arriscaram a vida e prestaram socorro a judeus perseguidos e caçados pelos nazistas e fascistas. Muitas outras poderiam ser relatadas aqui. Esse é um dos principais motivos pelos quais a Itália figura como um dos países sob ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial com a taxa mais alta de sobrevivência de judeus. Ali foram mortos 15% da população judaica, e salvaram-se 85%.

Desde 1922, a Itália era governada pelo fascista Benito Mussolini. Em junho de 1940, o país entrou na guerra, ao lado da Alemanha nazista. Em setembro de 1943, rendeu-se aos Aliados, sendo imediatamente invadido pelas tropas alemãs, que ocuparam grande parte de seu território e instalaram um governo fascista fantoche. Logo começou a atroz caçada das SS aos judeus, com prisões, espancamentos, assassinatos e deportações para os campos de extermínio.

Porém, muitos italianos se recusavam a colaborar com os nazistas e a cumprir ordens do governo fascista.

Não era possível sobreviver na Itália ocupada sem ajuda. Em geral, as operações de socorro dependiam da colaboração de muitas pessoas corajosas e altruístas, que se expunham a enorme risco para salvar judeus. Cidadãos comuns, camponeses, advogados, médicos, bispos, padres e freiras organizavam redes de apoio clandestinas, que forneciam documentos falsos, esconderijo, alimentos, roupas, abrigo e dinheiro. Famílias pobres e numerosas escondiam judeus em casa, dividindo seus recursos escassos.

O silêncio e o perigo

Alguns enfrentavam pressão, tortura e morte. Grande parte da população não relatava o que sabia para as autoridades. Vilarejos inteiros mantinham silêncio, apesar do perigo. Até burocratas, fascistas, funcionários públicos, carabinieri e militares italianos em países ocupados pela Itália descumpriam ordens, agiam deliberadamente de forma morosa, confusa e ineficiente, forneciam documentos falsos.

Muitos judeus recebiam aviso quando os alemães se aproximavam, frequentemente de integrantes da polícia ou de membros do governo fascista. Na cidade de Assis, um convento de freiras enclausuradas, onde não entrara nenhum homem em 700 anos, deu abrigo a um grupo de judeus.

Evidentemente, também houve italianos que colaboraram com os nazistas. Eram uma minoria: informantes por dinheiro, oportunistas, policiais que cumpriam ordens, racistas, bandidos, que participaram da caça aos judeus e sua deportação para os campos de extermínio, de onde pouquíssimos voltaram. O Holocausto na Itália não foi perpetrado somente pelos alemães.

Para o filósofo espanhol Ortega y Gasset, viver é escolher, nas nossas circunstâncias, no repertório de possibilidades que o mundo nos oferece, o que de fato vamos ser. A cada instante somos forçados a exercer a liberdade, decidindo que caminho tomar. É isso que nos caracteriza como seres humanos. Mas a escolha nem sempre é fácil.

Por isso é importante contar e valorizar essas histórias comoventes e inspiradoras de tantos italianos que, em tempos extraordinariamente difíceis e aterradores, escolheram agir de forma digna, mostraram compaixão e salvaram milhares de vidas, desafiando seu próprio governo e uma força cruel de ocupação.

Eles fizeram sacrifícios imensos, colocaram a si próprios e a seus familiares em perigo e auxiliaram, esconderam, protegeram e salvaram judeus, simplesmente porque os viam como “seres humanos como nós” e isso era o que “tinha de ser feito”.

Finda a guerra, não alardearam seus feitos e pareciam não gostar que lhes perguntassem por que tinham se arriscado para socorrer pessoas desconhecidas. Diziam simplesmente: “Era o meu dever, o que precisava ser feito.” Não se consideravam heróis e afirmavam, como o médico Adriano Ossicini, inventor da “doença K”: “Bisogna sempre cercare di essere dalla parte giusta…” ("É preciso sempre procurar estar do lado certo"...).

Ao conhecer essas histórias de salvação em um lugar inóspito como a Itália sob ocupação nazista, em condições tão dramáticas e extremas, admiramos aqueles indivíduos que, cheios de coragem e senso de amor ao próximo, enfrentaram o desafio fazendo a escolha certa, aquela que todos nós gostaríamos de fazer em circunstâncias semelhantes, ou até menos terríveis. Ao mesmo tempo, devemos nos perguntar: como eu agiria em tal situação?


*Claudia Malbergier Caon, doutora em educação pela Universidade de São Paulo, é membro do Conselho Acadêmico da StandWithUs Brasil, instituição que trabalha para lembrar e conscientizar sobre o antissemitismo e o Holocausto, de maneira a usar suas lições para gerar reflexões sobre questões atuais.