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StandWithUs Brasil / 'Zona de Interesse'

'Zona de Interesse' é uma perfeita ilustração do conceito da “banalidade do mal”

Em 'Zona de Interesse', disponível nos cinemas, uma família nazista tem uma vida perfeita ao lado do campo de concentração de Auschwitz

Luiz Nazario* Publicado em 20/02/2024, às 18h16

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Cena do filme 'Zona de Interesse' - Divulgação
Cena do filme 'Zona de Interesse' - Divulgação

Indicado a cinco Oscars, Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, é um filme brilhante que o grande público dificilmente saberá apreciar. A narrativa elíptica e a ausência de ação consternam a audiência, e seus personagens não despertam a menor empatia. A identificação – um dos grandes atrativos do cinema – é impedida pela visível dissociação cognitiva das figuras patéticas que desfilam na tela, alheias ao horror que as rodeia – que elas produzem e as constituem. Até o cachorro que irrompe em cena é irritante. Todos vivem numa bolha de alienação total, respirando a fumaça de corpos queimados no ar puro do campo, numa perfeita ilustração do conceito da “banalidade do mal” de Hannah Arendt. 

Alerta spoiler!

A narrativa começa inquietante, com alguns minutos de escuridão sobre uma trilha de ruídos. Seguem-se imagens de uma família tomando sol às margens de um rio. Os jovens mergulham na água fria, depois voltam para casa de carro, em mais um fim de semana sem emoção. A família mora num casarão acinzentado, cercado por um extenso jardim, onde se cultivam flores e legumes.

No centro do jardim há uma pequena piscina com escorregador e, ao fundo, uma estufa retangular, com um gazebo para o chá da tarde. Um muro alto de cimento separa o jardim do campo de concentração de Auschwitz. Essa é a família do comandante do campo, Rudolf Höss. Sua esposa Hedwig e seus cinco filhos são servidos por escravas polonesas. Atrás do muro, os judeus são torturados de dia e queimados à noite.

Baseado no romance de Martin Amis (falecido em 2023, no dia da estreia do filme em Cannes), Zona de interesse aborda o Holocausto sem mostrar nenhuma cena gráfica. Apenas uma linda dália vermelha que dissolve na tela em vermelho-sangue evoca as chacinas que ocorrem atrás do muro.

Mas ainda que não a vejamos, a morte impregna o dia a dia “feliz” da família monstruosa, que se sente privilegiada por morar naquela Villa, saboreando os quitutes preparados por escravas polonesas e desfrutando dos bens de luxo escolhidos no “Canadá” (os depósitos onde os judeus deixavam seus pertences antes de serem gaseados). Especialmente Frau Höss ama esse lar, onde pode se apropriar de diamantes, casacos de pele, batons e perfumes das judias gaseadas. Generosa, ela doa as camisolas às escravas polonesas: “Uma peça cada uma”.

"Rainha de Auschwitz"

Quando Höss é transferido para Oranienburg, encarregado de organizar o extermínio dos judeus da Hungria, Frau Höss se recusa a deixar a Villa. Investiu tanto no jardim! Sente que tudo ali é seu. Orgulha-se de ser “a Rainha de Auschwitz”, como lhe alcunhou carinhosamente o marido. Em visita, sua mãe, uma empregada doméstica, impressiona-se com o “Paraíso” conquistado pela filha. Mas à noite, ao ver as chamas saindo das chaminés do crematório, podendo talvez sentir o cheiro da carne humana queimada, a boa senhora foge do casarão sem se despedir de ninguém.

Cena do filme 'Zona de Interesse' /Crédito: Divulgação

Frau Höss encontra um bilhete na mesa do café. Depois de lê-lo, ela o queima no aquecedor. Não se sabe o que a mãe escreveu, mas pode-se imaginar. Ao fazer o desjejum, a “Rainha de Auschwitz” desconta sua raiva numa escrava: “Você se esqueceu de tirar isso da mesa para me irritar? Posso mandar meu marido espalhar tuas cinzas por aí!”.

Paralelo

O diretor inglês Jonathan Glazer trabalhou com a ideia de um “Big Brother na casa nazista”. Mas podemos traçar outro paralelo, mais sutil, de seu filme com Meu Tio, de Jacques Tati. Os dois filmes giram em torno de uma casa (moderna em Meu Tio, vetusta em Zona de interesse). Se o humor de Tati cede ao horror de Glazer, ambas as narrativas centram-se no poder maligno da arquitetura.

Todos os enquadramentos, travellings e mergulhos de câmera de Zona de interesse são descritivos da “arquitetura de Auschwitz”, como se Glazer transpusesse para a ficção o documentário Arquitetura da destruição (1989), de Peter Cohen. Seu filme resulta num fascinante estudo visual sobre a dissociação cognitiva produzida pelo nazismo. A destruição em massa que ocorre atrás do muro de pedra da Villa tenta ser silenciada e apagada por uma “normalidade” implacável, que se deseja cega e surda à realidade.

Se a casa de Meu Tio é assombrada pela automação, o casarão de Zona de Interesse é assombrado pelos ruídos e lampejos da morte. Na solidão de seus quartos, as crianças ouvem à tarde os gritos abafados dos judeus e a avó vê à noite as chamas expelidas pela chaminé do forno crematório. O paraíso deveria esconder o inferno, mas as ervas daninhas não param de crescer no jardim florido.

A arquitetura da morte devorou a mente de Höss: vestido de branco ou com o uniforme de S.S., ele só pensa em como matar milhões; em seu auxílio, dois arquitetos trazem-lhe o projeto de um novo modelo de crematório, capaz de dobrar a capacidade daquele em uso. No castelo onde o alto comando nazista se reúne numa festa de gala, Höss se põe a imaginar como fazer para gasear a todos: conclui que seria impossível, dado o grande vão entre o piso e o teto.

Em sua caminhada para o Inferno, Höss titubeia apenas uma vez, ao descer uma escadaria sombria: ele sente que vai vomitar. Numa visão do futuro, a equipe de limpeza varre as salas do Museu de Auschwitz, tira o pó dos fornos crematórios. Höss se recompõe e retoma sua caminhada para colocar em prática a Aktion Höss, que matará 430.000 judeus em 56 dias nas novas instalações de Auschwitz II – Birkenau.

Nenhum sintoma de mal-estar ou arrependimento, Höss atingiu a perfeição do ser nazista. “Tenho a consciência tranquila, cumpri com os meus deveres”, foi o refrão repetido pelos culpados no tribunal de Nuremberg. Eles realizaram a promessa de Hitler de libertar os seres humanos da “suja, degradante e venenosa loucura chamada consciência moral”.


*Luiz Nazario, Professor Titular de História do Cinema na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.

*O texto acima foi proporcionado pela StandWithUs Brasil, instituição que trabalha para lembrar e conscientizar sobre o antissemitismo e o Holocausto, de maneira a usar suas lições para gerar reflexões sobre questões atuais.