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Sob o medo do mundo feudal

Igreja e nobreza comandam o nascimento de nações. Camponeses sofrem com fome, epidemias e violência. Eis o pano de fundo da Europa medieval

Maurício Bonas Publicado em 01/11/2005, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Para compreender uma era, talvez não exista termômetro mais preciso que a forma como viveram nela as pessoas – o que as angustiava ou confortava, como imaginavam o futuro e o que sonhavam alcançar. Em alguns momentos da história, porém, parece que nada faz sentido. Ver a Idade Média européia com olhos contemporâneos dá bem essa impressão. A expectativa de vida era baixa – raros os que alcançavam 60 anos –, um pote de mel valia mais que um escravo e um par de palavras mal aplicadas levava ao gesto bem comum: a mão num átimo voando à faca ou à espada pendente na cintura. Quando a organizada sociedade da Roma imperial ruiu, substituída por reinos germânicos incivilizados, a violência explodiu e se tornou uma das poucas moedas presentes em todas as sociedades da Europa ocidental. Em um primeiro momento, a sustentação básica medieval, formada pela tríade Igreja, nobreza e campesinato, pouco oferecia em organização.

Mesmo os franco-germanos, que a partir das dinastias merovíngia e carolíngia conseguiram o mínimo de reorganização do continente, consideravam natural essa lógica baseada na agressividade em seu viés mais selvagem. “Os francos só conseguiram vencer o Império Romano cultivando incessantemente as virtudes militares”, dizem os historiadores franceses Philippe Ariès e Georges Duby no primeiro volume de A História da Vida Privada. “Em 793, durante um ataque muçulmano contra Conques, um jovem aristocrata preferiu conservar sua montaria a trocá-la por sua mãe prisioneira”, contam eles, acrescentando que a mulher foi trucidada em frente do filho. Se há uma lógica na Alta Idade Média, ela está nesta combinação: o cavalo e a espada valiam mais que a vida de uma única pessoa, já que, com ajuda dessa dupla, o homem combatia, se mantinha vivo e protegia outras vidas. Sobre essa base comum, nasceu uma sociedade cujos princípios éticos mais elevados eram dados pela Igreja, referendados pela nobreza e seguidos pelo restante da população, formada por camponeses e outros servos.

As engrenagens do poder eram giradas com base em declarações pessoais. Os reis, em especial desde Carlos Magno, doavam terras a nobres em troca do juramento de vassalagem, ou seja, de fidelidade, apoio militar e, por vezes, tributos. Os aristocratas, assim, ganhavam direito de comandar, aplicar a justiça e taxar a população local. Por vezes, duques e condes repetiam o mesmo gesto em relação a nobres menores, como os barões, expandindo os contratos de suserania e vassalagem.

Para ter uma idéia das dimensões dessa troca de juras, o império de Magno somava 250 condados (comandados por condes), sem contar as marcas (administradas por marqueses), os ducados e os reinos. Aos mais pobres, restava trabalhar a terra, pagando tributos aos aristocratas, e atender aos periódicos chamados dos nobres para lutar nas contínuas escaramuças militares. A idéia, com esse esquema de trocas, era manter o mínimo de ordem e impedir as tendências separatistas. Mas foi justamente a multiplicação de poderes regionais que levou a Europa à superfragmentação que marcou a Idade Média.

A tensão aumenta

Em 843, ao fim de três anos de brigas sucessórias entre os filhos do rei Luís, o Piedoso, a Igreja intercedeu e oficializou através do Tratado de Verdun o desmantelamento do Império Carolíngio nos reinos da França, da Germânia e da Lotaríngia, essa última constituída pelo norte da Itália, pelos Países Baixos e pela Suíça. O mapa da Europa contemporânea começava, então, a ser rascunhado – e a sorte do continente estava lançada. A verdade é que mapas políticos e conceitos como o de nacionalidade nada significavam. Com a fragmentação, as pessoas comuns no máximo sabiam pertencer a uma localidade e ao aristocrata mandatário da região. Como os reis faziam alianças doando terras, pouco tinham a oferecer. O poder de fato começa a migrar para as mãos dos nobres, e esses, a prestar cada vez mais atenção à Igreja. Os camponeses continuaram onde sempre estiveram. Afinal, alguém precisava trabalhar.

O problema é que logo estava montado o circo que o historiador Marc Bloch definiu como “a oposição primordial” da Idade Média, a que coloca em lados opostos do ringue camponeses e senhores de terras. Outro pesquisador com foco na era medieval, Jacques Le Goff, afirma que, no século 13, o campesinato correspondia a cerca de 90% da população européia. Sufocados pela fome, pelas epidemias e pela crescente voracidade dos nobres em relação aos impostos cobrados, logo os camponeses começariam a se levantar em protestos e revoltas cada vez mais violentos. Um dos primeiros grandes levantes ocorreu na Normandia, em 996. A resposta dos nobres foi imediata e devastadora. Robert Wace, cônego de Bayeux, descreveu 150 anos mais tarde os acontecimentos. O conde enviado ao local teria “a muitos arrancado os dentes, a outros mandado empalar, arrancar os olhos, cortar os pulsos”, quando não “queimados vivos ou metidos em chumbo a ferver”. Não espanta que, segundo Wace, os camponeses se unissem sob o refrão “notre ennemi c’est notre maître”, ou, em português, “nosso inimigo é nosso senhor”. Ridicularizados pelos abastados, eram chamados de rustici – algo como ignorantes. Um conto medieval diz que, depois da morte de um camponês, os diabos se recusam a levar sua alma ao inferno em virtude do mau cheiro. Na França, a tensão foi ainda agravada pela Grande Peste de 1348 e pelo agravamento da fome entre os pobres. Dez anos mais tarde, em maio de 1358, os campônios, armados de facas, pedaços de ferro e foices, se rebelaram no que se chamaria de Jacquerie – a expressão jacques era jocosamente usada pela nobreza para definir as classes baixas. Em pouco tempo, a revolta se espalhou, da mesma forma que pouco antes milhares de burgueses e artesãos de Paris haviam se sublevado, marchando até o palácio real para matar dezenas de marechais.

Feudalismo em decadência

O pior estava por vir. A disputa entre os reinos da Inglaterra e da França pela região francesa de Flandres, uma grande produtora de tecidos, se transformou na Guerra dos Cem Anos, que, na verdade, não foi tecnicamente uma guerra, mas uma seqüência de conflitos armados de longa duração e resultados devastadores para os dois reinos. O descontentamento dos burgueses parisienses e, indiretamente também o dos jacques, se ligava à guerra. Os burgueses, especialmente, não se sentiam nem um pouco à vontade com a intenção, por parte do governo, de que eles pagassem a conta da defesa francesa.

O pano de fundo dessa situação – considerando a Europa como um todo e não apenas a Inglaterra e a França – era o princípio da derrocada do modelo feudal, um modelo que ainda se estenderia por pelo menos um século. Mas já começavam a faltar as condições objetivas para aquilo que o bispo medieval Adalberon de Laon definia como uma sociedade em que “alguns rezam, outros guerreiam e outros trabalham, em que todos formam um conjunto inseparável e o trabalho de uns permite o trabalho dos outros dois, e cada qual, por sua vez, presta seu apoio aos outros”.