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Nova Orleans: A pátria de trompetes

Como o jazz nasceu do encontro de culturas em Nova Orleans, se desenvolveu em Chicago e Nova York e se tornou um símbolo da nação mais poderosa do mundo no século 20

Jardel Sebba Publicado em 01/09/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Nova Orleans, no estado americano da Louisiana, era no século 19 o que Paris só viria a ser mais de 100 anos depois: uma festa. A cidade, fundada em 1718, havia sido território francês e espanhol antes de ser comprada pelos Estados Unidos, em 1803, numa transação de 11 milhões de dólares na época. Seu porto a tornara um grande pólo de escravos, vindos principalmente da África ocidental. Além disso, a proximidade com o rio Mississipi levara para a cidade todo tipo de gente: franceses e chineses, exilados e aventureiros.

Dos antigos colonizadores, Nova Orleans herdara a tolerância católica a manifestações dos escravos – bem diferente do resto do país, protestante. Aos domingos, os escravos podiam exibir suas danças e cantos em Congo Square. Desde o século 18, ainda sob domínio dos franceses, o carnaval, chamado de Mardi Gras, era tradicionalíssimo. Um jornal de 1838 revelava a nova mania de trompetes e cornetas que tomava conta da cidade. Nova Orleans tinha tanta fama de licenciosidade que um bairro foi criado em 1897, Storyville, para abrigar a zona de meretrício. Era uma tentativa de delimitar a prostituição.

A musicalidade da cidade não se restringia aos trompetes e atingia as camadas mais miseráveis da população. Os escravos se esqueciam da expectativa de vida de 36 anos entoando as chamadas canções de trabalho (work songs), cantadas nas plantações e na construção das ferrovias, as canções religiosas de fé ou de lamentação (spirituals) e um tipo de interação aprendido nas igrejas, o “chamado e resposta” (call and response), em que o pastor conclamava e os fiéis respondiam. De uma fusão dos elementos musicais africanos com o som de bandas militares e a tradição erudita européia, ensinada a colonos e créoles (os filhos, livres, dos antigos colonos europeus com suas amantes negras), nasciam os embriões de um gênero musical que tornaria a vida dos negros de lá mais feliz.

Uma mistura de tudo

Esses embriões eram o blues e o ragtime. O primeiro era a versão profana dos cantos e gritos religiosos. Já o ragtime era uma música alegre, que trazia a combinação de elementos europeus (só podia ser tocada por quem lia música) e africanos (o ritmo). Ninguém sabe exatamente quando, mas foi da fusão do ragtime e do blues, acrescida da antiga tradição de brass bands (bandas que seguiam em carroças e animavam de casamentos a funerais), que surgiu o jazz – ou o estilo Nova Orleans, como ficou conhecido nos primeiros anos. “O jazz não só é uma forma de arte afro-americana como é uma mistura única de música popular e arte”, diz o sociólogo Paul Lopes, autor de The Rise of a Jazz Art World (“A ascensão de um mundo do jazz arte”, inédito em português).

É muito difundida (mas sem comprovação) a história de que, como os negros não sabiam ler música, o líder da banda aprendia uma canção e os demais integrantes criavam em torno do tema básico, para compensar a falta de conhecimento técnico. Isso teria resultado numa das principais características do jazz: o improviso. A banda considerada a pioneira da nova música foi a de Buddy Bolden, no fim do século 19. King Bolden, como foi chamado (e de quem se diz que era possível ouvir a corneta de qualquer parte da cidade), colocou personalidade naquela música acelerada. A primeira gravação de jazz surgiu mais tarde, em março de 1917: duas músicas que foram lançadas pela Original Dixieland Jazz Band, liderada pelo cornetista branco Nick LaRocca.

Só que, naquele ano, os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, e uma lei proibiu a existência de áreas de prostituição num raio de até 5 milhas das bases militares. Storyville, fora dos limites da nova lei, foi fechada pela Marinha americana. Os músicos, sem lar, subiram pelo rio Mississipi até Chicago. Em 1915, a banda do trombonista Town Brown foi apresentada num clube de Chicago como a Brown’s Dixieland Jass Band, de Nova Orleans. Era a primeira vez que a palavra “jazz”, ou, como era no começo, jass, era usada em público. Alguns dizem que o termo remete ao perfume de jasmim das prostitutas de Storyville. Outros, que é uma adaptação do verbo francês jaser (tagarelar). Na versão mais difundida, jazz seria uma gíria para o ato sexual.

Em 1920, a indústria fonográfica percebeu o potencial do jazz e investiu nele. De 27 milhões de álbuns vendidos em 1914, houve um salto para 100 milhões sete anos depois. Mas, entre 1922 e 1923, quase meio milhão de negros deixaram o sul do país rumo a Chicago e Nova York em busca de oportunidade nos centros industriais. A música seguiu esse mesmo caminho, de Chicago a Nova York, onde cresceu e respirou novos ares.

Nova York era a capital dos salões de dança e dos bares clandestinos pós-Lei Seca, que proliferavam: neles, músicos eram atrações para chamar público. No Harlem, dois líderes de banda, um branco e um negro, duelavam numa tentativa de orquestrar a música. Paul Whiteman e Fletcher Henderson eram as estrelas da cidade. Em 1924, o jovem Louis Armstrong, trompetista de Nova Orleans, deixou a banda do pioneiro Joe Oliver e se juntou à de Henderson, em Nova York. E o jazz nunca mais foi o mesmo.

Em meados da década de 20, os Estados Unidos eram a terra da prosperidade, e a juventude do país dançava ao ritmo das orquestras. A nação vivia uma busca desenfreada pelo prazer – e a genialidade de Armstrong era a face mais visível dessa festa. Entre 1925 e 1928, ele e seus grupos Hot Five e Hot Seven fizeram o estilo deixar de ser apenas uma música coletiva e virar arte. O jazz passou a ser alvo do fascínio que o mundo tinha pela América, uma nação vibrante.

Admirado e perseguido

Só que, em outubro de 1929, a Bolsa de Nova York quebrou e a farra acabou. O país contabilizava 15 milhões de desempregados no começo dos anos 30 e a indústria fonográfica entrou em colapso. Os 100 milhões de discos vendidos por ano passaram a 6 mil. O jazz estava, então, prestes a mudar de nome: passou a atender pelo apelido de swing, uma música dançante feita pelas orquestras. Em 1933, o New Deal, a política de recuperação da economia, reanimou o país. E o swing tornou-se a trilha sonora da esperança. Em plena crise, as pessoas enchiam os salões de baile, palco de centenas de bandas. Como a de Tommy Dorsey, por onde passou um cantor magrelo de Nova Jersey chamado Frank Sinatra.

Quando os Estados Unidos se recuperavam da Depressão no fim dos anos 30, um novo pólo da música americana surgiu. Kansas City era uma cidade aberta para o mundo, com músicos vindos de toda parte do país. Lá, em 1937, a orquestra do pianista Count Basie ganhou o reforço da cantora Billie Holiday. No mesmo ano, Ella Fitzgerald começou a cantar na orquestra de Chick Webb.

Em março de 1939, a música negra atravessou o oceano e Duke Ellington excursionou com sua orquestra pela Europa. Em Hamburgo, seus músicos não puderam sair do trem nem para esticar as pernas – os nazistas chamavam o jazz de “música negra judia”. A guerra era, então, uma questão de tempo. Ellington voltou em maio, Hitler invadiu a Polônia em setembro.

Em dezembro de 1941 a América entrou na guerra, e o jazz foi junto. Orquestras foram desfeitas, porque vários músicos foram convocados, e o som serviu como símbolo da democracia em contraponto à limpeza étnica. Os nazistas, afinal, tinham razão na sua definição do jazz. Entre as maiores estrelas da música, Benny Goodman e Artie Shaw eram judeus, Count Basie, Duke Ellington e Louis Armstrong eram negros. No fim de 1941, os alemães haviam conquistado boa parte da Europa, mas não conseguiram evitar que o jazz se entranhasse em seus domínios. Os swing kids, como eram chamados os jovens fãs da música americana, ouviam jazz escondidos da Gestapo. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, vendo que não conseguiria vencer a música, criou uma orquestra própria, que veiculava conhecidas melodias da era do swing, mas com letras anti-semitas. A estratégia era propaganda para os aliados – o alemão que fosse pego ouvindo jazz era punido.

Longe dali, no clube nova-iorquino Minton’s Playhouse, um grupo talentoso andava insatisfeito com os rumos do jazz. Charlie Parker, dispensado do serviço militar por causa do vício em heroína, e o trompetista Dizzy Gillespie se juntaram e, em 1945, a dupla entrou em estúdio. Uma nova música estava em curso.

Com o fim da guerra, as orquestras dançantes saíram de moda e o novo estilo ganhava um nome: bebop. Rápido, com possibilidades intermináveis, o bebop foi um dos períodos mais influentes da história do jazz. “Ele virou uma página da história do jazz por ser transcendental e conseqüente”, diz o pesquisador musical Zuza Homem de Mello, um dos maiores especialistas em jazz no Brasil. “O bebop é o momento em que o jazz deixa de ser só uma música social e passa a ser, também, uma forma de arte”, afirma o jornalista americano Ashley Khan, autor de livros sobre o jazz. O bop, porém, espantou o grande público. Mas revoluções ainda aconteceriam, lideradas por um jovem trompetista de St. Louis, Miles Davis. Ele buscou um estilo com poucas notas, mas as notas certas. Depois, foi a Paris, conheceu Picasso e Jean-Paul Sartre e, na volta, ainda era um negro num país segregado, o que o levou ao vício da heroína – droga, aliás, que não era exclusividade sua. Charlie Parker, notório consumidor, morto em 1955, foi examinado por um legista que estimou sua idade entre 54 e 60 anos. Ele tinha 34.

O jazz, porém, continuou vivendo. Em 1959, Miles Davis reuniu uma banda excepcional e gravou Kind of Blue, disco mais vendido da história do jazz (estimam-se 5 milhões de cópias). A novos estilos que surgiram, como o hard bop e o cool jazz, o músico Ornette Coleman acrescentou o free jazz (1959). A música ainda foi renovada por Miles, que, no fim da década, trocou as bases convencionais pela guitarra elétrica e sintetizadores. Era o jazz fusion. Em 1975, o mesmo Miles disse que o jazz estava morto. De fato, se ele fora responsável por 70% das vendas de disco em 1930, naquele ano respondia por 3%.

Mas o jazz estava longe de ver seus últimos dias – como ainda está. “Basta ir a Nova Orleans para se ouvir música em todos os cantos”, diz Edgard Radesca, diretor do Bourbon Street, casa de jazz paulistana, que percebeu que a música ficou ainda mais forte por lá depois da tragédia do furacão Katrina, em 2005. “A música que representa o orgulho da América negra hoje é o hip hop. Mas se alguém for retratar o período em que vivemos hoje, quem você acha que o fará, um músico de jazz ou a Britney Spears? O primeiro, com certeza”, diz Ashley Khan.

Os embaixadores do ritmo

Quando os músicos de jazz viraram representantes oficiais do país

Em 1956, em plena Guerra Fria, a propaganda soviética mostrava os americanos como um povo de pouca cultura e sofisticação, em contraponto aos expressivos nomes do balé russo. Por isso, naquele ano, o governo de Dwight D. Eisenhower decidiu esquecer a segregação em seu país e promoveu excursões de músicos de jazz a nações estratégicas, transformando-os em meio de divulgação de valores como democracia e integração racial. O primeiro dos chamados “embaixadores do jazz” foi o trompetista Dizzy Gillespie, que ainda em 1956 embarcou numa turnê pelo Oriente Médio e pelo sul da Europa. Benny Goodman foi para o leste da Ásia, Louis Armstrong para a África e Duke Ellington para a Índia. O programa durou até 1978, mas nem tudo foi harmônico. Armstrong, por exemplo, recusou-se a ir a Moscou em 1957 porque Eisenhower não havia garantido a execução no Arkansas de uma lei que proibia a segregação de crianças negras nas escolas. Preocupado com a repercussão, o governo interveio. Sorte a nossa: o trompetista tocou no Teatro Paramount, atual Teatro Abril, em São Paulo, em dezembro daquele ano.

Saiba mais

LIVRO

No Mundo do Jazz, François Billard, Companhia das Letras, 1989

Abordagem humana sobre a vida cotidiana dos homens que fizeram a história do jazz, das raízes do estilo até os anos 50.

DVD

Jazz – Um Filme de Ken Burn, 2002

Documentário de 12 episódios, com uma hora cada um.