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Matérias / The Scythe

O Ceifador: Quando o mundo perfeito é arruinado pela ganância humana

Em entrevista ao Aventuras, Neal Shusterman debate o uso da inteligência artificial em sua saga distópica e mostra como a ganância pode destruir a sociedade perfeita

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 09/09/2023, às 00h00

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Capa do livro 'O Ceifador' - Ed. Seguinte
Capa do livro 'O Ceifador' - Ed. Seguinte

Com a ajuda da Inteligência Artificial, vivemos em uma sociedade perfeita. A Humanidade se desenvolveu a ponto de superar a fome, a miséria, as guerras e até mesmo a morte. O envelhecimento, embora faça parte da ordem natural da vida, já não é mais o ponto final de nossa existência, afinal, as pessoas podem rejuvenescer sua aparência. Nos tornamos imortais!

Tudo isso graças a benevolência da Nimbo-cúmulo — uma grande nuvem de dados que rege a sociedade e se tornou a grande autoridade do planeta. Vivemos num mundo sem governos, sem distinção de raças e onde todas as pessoas vivem suas vidas sem restrições ou limitações.

+ A revolta causada pela morte de Sherlock Holmes

Na trilogia The Scythe — O Ceifador, A Nuvem e O Timbre — (Ed. Seguinte), Neal Shusterman quebra uma conceito muito presente em filmes e obras de ficção: a de que a tecnologia causará a dominação e extinção dos humanos.

Capas da saga The Scythe/ Crédito: Ed. Seguinte

"Acredito que a nossa inclinação para imaginar futuros catastróficos envolvendo inteligência artificial provém de uma combinação de fatores. Primeiro, existe um medo inerente do desconhecido e da potencial perda de controle quando as máquinas se tornam mais inteligentes do que nós", diz Shusterman em entrevista exclusiva à Recreio em parceria com o portal do Aventuras na História.

"Em segundo lugar, como disse, reflete o nosso reconhecimento das nossas próprias falhas e preconceitos, projetando-os na IA. No entanto, a Nimbo-cúmulo apresenta uma perspectiva alternativa — uma onde a tecnologia evolui para dar prioridade ao bem-estar humano", prossegue.

Desafia a narrativa convencional e leva-nos a considerar que é possível uma coexistência harmoniosa entre a humanidade e a IA. É um lembrete de que nossas percepções do futuro não são imutáveis; eles podem ser moldados por nossas escolhas".

Uma sociedade perfeita?!

A vida é perfeita, a sociedade é perfeita, mas a Terra possui suas limitações. Com o número constante de nascimentos e nenhuma morte, a superpopulação do planeta ameaça o bem-estar social. E foi por conta disso que surgiu a Ceifa: um grupo de pessoas inerente à Ninbo-Cúmulo que se tornam responsáveis por gerir esse problema, ou como Neal escreve em seu livro: "Podíamos ter sido chamados de portadores da morte, mas nossos fundadores acharam melhor nos chamar de ceifadores, porque somos as armas na mão imortal da humanidade".

Adotando o nome de um patrono histórico, figuras relevantes da chamada Era Mortal, os ceifadores são responsáveis pelo controle populacional. Seus atos são supremos e nada nem ninguém podem interferir em seu trabalho.

O autor Neal Shusterman/ Crédito: Gaby Gerster hi-res

Mas se o grande problema da humanidade era justamente a ineficiência das pessoas, por qual motivo deixar um subgrupo delas controlar algo tão importante quanto a vida? "Na construção do meu mundo, percebi que a Nimbo-cúmulo se recusaria a tomar decisões de vida ou morte, porque se sentia como uma entidade não biológica, não tinha autoridade", explica Neal.

A vida e a morte só poderiam ser enfrentadas pelos seres imperfeitos que as vivenciaram. Permitir que um grupo como a Ceifa exerça tal autoridade sobre a vida e a morte levanta questões sobre o equilíbrio entre eficiência e autonomia individual", continua.

Na narrativa de Shusterman, os ceifadores deveriam seguir uma série de mandamentos, como não sentir prazer em matar ou viver uma vida simples e sem luxo. E tudo muda nesse ponto: a sociedade é perfeita, mas as pessoas não! Arrogantes, falhos, narcisistas e com sede de poder, um grupo de ceifadores passa a sentir prazer em coletar e coloca em risco o futuro da humanidade — que ainda passa a endeusá-los.

"A elevação da Ceifa ao status de celebridade reflete uma tendência social de idolatrar figuras de poder ou autoridade. A história — e os acontecimentos atuais — estão repletos de casos em que as pessoas são colocadas em pedestais além do que é racional. Os melhores ceifadores são como os Jedi: eles mantêm a humildade e entendem que são apenas servos da humanidade. Mas o lado menos honroso da natureza humana muitas vezes atrapalha", contextualiza Neal.

Os patronos históricos

Para contar sua história, Shusterman não só abusa de conceitos atuais como o uso da inteligência artificial e outros avanços da tecnologia, como a exploração de outros planetas, mas também usa da história para desenvolver seus personagens: afinal, cada vez que uma pessoa se torna um ceifador, ela deixa se passado para trás e adota o nome de uma figura importante da Era Mortal.

Como são os casos do Honorável Ceifador Michael Faraday e da Honorável Ceifadora Marie Curie, que defendem os valores tradicionais do culto em prol do bem-estar da sociedade. "Criei uma planilha com dezenas de pessoas na história que deixaram sua marca. Artistas, escritores, grandes líderes, filósofos, cientistas, etc. Depois tentei associar o nome à foice — não porque fossem necessariamente como as pessoas que escolheram, mas porque as admiravam", explica sobre seu processo de criação de personagens.

"Por exemplo, o ceifador Faraday escolheu o nome porque Michael Faraday, embora seja um dos cientistas mais importantes da história por seu trabalho com eletricidade, não é lembrado tão bem quanto muitos outros", aponta.

Michael Faraday, Marie Curie, Anastasia Romanov e Robert Goddard são usados como patronos históricos por Neal Sustherman/Crédito: Wikimedia Commons

Entre outras figuras lembradas por Neal, também se destacam o ceifador Robert Goddard — que na história ficou conhecido como o físico experimental considerado pai dos modernos foguetes — ou a ceifadora Anasastia Romanov — quarta filha do czar Nicolau II, que foi executada pelos Bolcheviques quando tinha apenas 17 anos.

E eu não escolhi Anasastia Romanov — Citra sim! Colocando-me no lugar de Citra, pensei 'quem na história capturou a imaginação das pessoas, era jovem e, através das circunstâncias, foi-lhe negada a oportunidade de ter um efeito no mundo?'. Esse foi o raciocínio de Citra — e Anastasia imediatamente veio à mente", explica.

Um reflexo da sociedade

Embora seja uma obra distópica, a polarização criada por Neal Shusterman — dividida entre a 'nova ordem' que busca pelo poder dominante e a 'velha guarda' que luta para manter os bons costumes — se assemelha com as brigas políticas e os casos de corrupção de figuras de poder ambiciosas que cada vez mais se fazem presente em nossa sociedade.

Na saga The Scythe, o Honorável Ceifador Robert Goddard distorce os mandamentos da Ceifa para se benefício próprio, criando a repulsa da velha guarda, mas cada vez mais ganhando adeptos da nova ordem; o que Neal Shusterman enxerga como uma realidade que vivemos: onde as pessoas usam argumentos desprezíveis, mas convincentes, para ganhar a aprovação pública e poder

Detalhes dos livros/ Crédito: Ed, Seguinte

"A manipulação dos Mandamentos da Ceifa por Goddard ecoa exemplos do mundo real de indivíduos usando carisma e retórica para influenciar a opinião pública. Isto nos lembra que nem toda manipulação requer convencimento; às vezes, requer simplesmente a exploração de preconceitos pré-existentes", aponta.

É muito perigoso quando uma figura de autoridade dá permissão às pessoas para se comportarem mal. Explorar as dimensões éticas de tal manipulação serve como um alerta sobre o poder da retórica — e quão tênue pode ser o verniz ético de uma sociedade", finaliza.

Clique aqui para ler a entrevista completa de Neal Shusterman com a equipe da Recreio!