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Matérias / Nazismo

Há 80 anos, era desmantelado o grupo de espiões nazistas em terras brasileiras

O grupo liderado pelo alemão Alfredo, o codinome de Albrecht Gustav Engels

Diego Antonelli Publicado em 02/04/2023, às 08h00 - Atualizado em 11/05/2023, às 18h13

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Albrecht Gustav Engels em 1961/ Ao fundo: recortes de jornais de 1943 - Domínio Público
Albrecht Gustav Engels em 1961/ Ao fundo: recortes de jornais de 1943 - Domínio Público

Demorou cerca de seis meses para que um dos capítulos mais nebulosos do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial tivesse sua página final decretada. Era fevereiro de 1943 quando se encerrava uma intensa investigação policial que resultou na prisão de 64 pessoas, entre estrangeiras e brasileiras, em diferentes regiões do país, acusadas de atuarem como espiões do regime nazista no Brasil.

Em um processo composto por dez grandes volumes, as autoridades do Brasil reuniram provas suficientes para desmascarar “as atividades secretas e subterrâneas dos agentes germânicos em nosso país”, segundo descreveu, na época, o jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. O inquérito abrangia investigações referentes às várias células nazistas espalhadas por aqui. Inicialmente, acreditava-se que esses grupos agiam de forma isolada. Porém logo foi descoberto que estas células, ainda que fossem dirigidas por pessoas diferentes, mantinham relações íntimas entre si: era uma rede de espionagem nazista instaurada no Brasil.

Para colocar um fim neste crime organizado, os investigadores elaboraram meticulosamente os planos de ação. “Tratava-se de ramificações de um mesmo grande movimento, com ligações sutis, quiçá misteriosas e subterrâneas, mas que afinal foram desmascaradas e perderam todo o seu poder de mistificação”, apontou o jornal Correio Paulistano daquele ano. E, assim, autoridades policiais da Delegacia Especial de Segurança Política e Social prenderam “todos os elementos da perigosa organização”. A polícia também conseguiu esclarecer as relações de interdependência entre os grupos de espionagem que operavam em todo o território nacional — e em outros países da América. Nesta operação, um dos presos era um ex-delegado que, em parceria com um advogado, “maquinava a fuga de tais espiões pela fronteira do estado do Rio Grande do Sul”, conforme noticiou o periódico sem citar os nomes dos dois criminosos. Entre os grupos detidos, estava o de um dos maiores espiões do regime de Adolf Hitler que atuou no continente americano: Albrecht Gustav Engels.

Codinome: Alfredo

Ele, que usava o codinome “Alfredo”, já estava preso desde março de 1942. Detido no presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, Alfredo ficou sabendo que toda a sua quadrilha também havia sido capturada pela polícia. Engels chegou a ser apontado, inclusive, como um dos chefes supremos do serviço secreto nazista no país, segundo o Jornal do Brasil.

Alfredo’ foi preso pela polícia política do Rio de Janeiro quando a própria força policial havia desbaratado algumas redes de espionagem nazistas no país. Na época, o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Jefferson Caffery, enviou um telegrama ao governo norte-americano informando sobre a prisão de Engels e de outros espiões nazistas. “Esses indivíduos são os principais agentes que têm telegrafado o movimento de aviões, navios etc. para a Alemanha. Se conseguirmos detê-los, provavelmente poderemos destruir toda a estrutura de espionagem alemã aqui”, escreveu Caffery. O documento pode ser encontrado no site do governo dos Estados Unidos.

Dias antes de Engels ser preso, outros nazistas já haviam sido detidos. O próprio “Engels convenceu-se de que era uma questão de tempo antes de a polícia vir à sua procura”, escreveu o biógrafo Stanley Hilton no livro 'A Guerra Secreta de Hitler no Brasil'.

De acordo com o autor, o golpe desferido contra o Abwehr no Brasil — nome do serviço de informação do Exército alemão —, causou consternação em círculos oficiais alemães. A cúpula do Exército germânico, segundo o autor, teria transmitido algumas mensagens aos demais agentes alemães que atuavam como espiões no Brasil e em países vizinhos. Entre elas: “Alfredo foi vítima de seu ofício” e “tome cuidado. Alfredo foi preso”.

Vinte dias depois, Engels foi levado de olhos vendados até a Penitenciária de Niterói para ser interrogado. Considerada uma pessoa culta, inteligente e dissimulada, ele negou tudo. Semanas se passaram e ‘Alfredo’ permaneceu em silêncio. A polícia, então, mudou a tática.

Durante quatro noites seguidas, não permitiu que ‘Alfredo’ dormisse: a cada cinco minutos, um investigador ia até seu quarto perguntar-lhe se precisava de algo. Na quinta noite, Engels não aguentou mais e, segundo relatou o Jornal do Brasil da época, “teve uma crise de nervos, arrancou os cabelos dos braços, chorou copiosamente e, em seguida, mandou comunicar ao secretário de Segurança que estava disposto a falar”. Com isso, Engels — ou Alfredoconfessou os crimes e chegou a revelar que um de seus radiotransmissores, usado em seu ofício de espião, estava em uma casa em São Cristóvão, na capital fluminense.

Assim, ‘Alfredo’ foi julgado e condenado. Inicialmente, de acordo com o jornal A Noite de dezembro de 1943, o Tribunal de Segurança condenou Engels à pena de morte — na época, prevista para sentenciar crimes de guerra —, que logo em seguida foi comutada em 30 anos de detenção. No fim, porém, um dos maiores espiões nazistas que atuou em território brasileiro permaneceu preso somente alguns anos, sendo liberado em 1949 após cumprir a maior parte da pena no presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro.

Biografia de um imigrante

Albrecht Gustav Engels, natural da pequena vila de Buchholz, atualmente um município da Alemanha, nasceu em 1º de junho de 1899 e veio ao Brasil no segundo semestre de 1923.

Nos anos de turbulência e desilusão provocados pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, milhares de jovens alemães deixaram sua terra natal para buscar uma vida melhor em outro lugar. “Um desses emigrantes foi o jovem engenheiro Albrecht Gustav Engels, que havia servido durante o conflito no Exército alemão e tinha participado de combates na França”, relata o escritor e pesquisador Rostand Medeiros.

O Brasil, naqueles tempos, parecia promissor devido à grande comunidade germânica que habitava o país e por ter estreitos laços econômicos com a Alemanha. Engels, então, negociou um emprego na empresa Siemens, no Rio de Janeiro, e partiu de Hamburgo a bordo do navio a vapor Bayern, aos 24 anos. “Ele demonstrou conhecimento técnico sólido, além de habilidades administrativas, e encontrou um ambiente propício para o avanço no Brasil”, comenta Medeiros. Depois de um ano na Siemens, passou a trabalhar em uma siderúrgica, até se tornar gerente da filial da Allgemeine Elektrizitats Gesellschaft (AEG), em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Engels se casou em 1927 com Klara, que também era de sua cidade natal. Dois anos depois, nasceu o único filho do casal. Após a Revolução de 1930, se mudaram para o Rio de Janeiro e ele foi nomeado engenheiro-chefe na sede da AEG da América do Sul. Em 1931, o engenheiro alemão aceitou o trabalho para organizar uma filial da empresa em Joinville, em Santa Catarina, e dois anos depois foi eleito diretor. “O trabalho de Engels levou-o, assim, às grandes empresas comerciais e industriais do centro-sul do Brasil, onde construiu uma ampla gama de pessoas influentes e contatos experientes em negócios, incluindo políticos e militares. Ficou claro que ele gostava de manter relações pessoais com uma série de oficiais e figuras da sociedade”, relata.

Em outubro de 1934, naturalizou-se cidadão brasileiro. Sua competência administrativa chamou a atenção dos supervisores de Berlim da AEG e, em 1939, foi nomeado um dos seus administradores com responsabilidades especiais pelas filiais da empresa na América do Sul. Enquanto isso, a economia alemã voltava a crescer e Engels se orgulhava do ressurgimento do seu país natal. Sentiu que era necessário ajudar nesse processo. “A sua nomeação como diretor da AEG seria o primeiro passo em seu alistamento não apenas como um agente da Abwehr, mas como seu agente mais importante na América do Sul”, revela Medeiros.

O recrutamento

Era verão de 1940, quando Engels viajou com sua família de férias para a Europa. Passaram várias semanas na Suíça e depois foram a Berlim. Em agosto, com a Segunda Guerra Mundial em crescimento, o casal tomou um trem para Gênova, na Itália, onde iriam embarcar em um navio com o intuito de regressar ao Brasil. Porém, pelo avanço da guerra, o navio não conseguiu partir no dia planejado, sendo forçados a ficar em Gênova por mais três semanas. Durante este período, como o próprio Engels afirmaria mais tarde, foi recrutado pela Abwehr. “O contato foi feito por um amigo dele, um capitão do Exército chamado Jobst Raven, que passou quase 15 anos no Brasil trabalhando para a filial santista de Theodor Wille, uma das empresas comerciais alemãs mais importantes da América do Sul”, explica.

Raven era um dos encarregados de coletar e compilar dados sobre as economias de países estrangeiros. Ele estava atento às oportunidades de descobrir novos agentes no Hemisfério Ocidental que poderiam informar sobre a economia americana e ajudar nas exportações de materiais estratégicos dos Estados Unidos para a Inglaterra. Engels, por causa de sua experiência e contatos no Brasil — e de sua lealdade ao governo de Adolf Hitler —, parecia ser o recruta ideal.

Anos depois, o agente chegou a contar que Raven o visitou no Columbia Hotel em Gênova em 10 de setembro e lá eles chegaram a um entendimento. No entanto, Medeiros acredita que é mais provável que Raven tenha recrutado Engels durante uma viagem que ele fez ao Brasil na primavera de 1940, muito possivelmente já tendo o propósito de lançar as bases para uma rede de inteligência nazista no país.

A historiadora Taís Campelo, em sua tese de doutorado, conta que Raven era amigo de Engels desde quando serviram juntos ao Exército alemão. “Com o aumento da importância da América do Sul para a estratégia de guerra, foi solicitado que Engels chefiasse uma rede de informações no Brasil em 1940”, escreve. Para isso, de acordo com ela, um agente especial chamado Alfred Becker veio ao país, dias depois, auxiliá-lo na organização de um grupo e instruí-lo no uso de códigos, tintas secretas e no uso do microponto, aparelho especial que fotografava os relatórios e os reduzia ao tamanho de três a quatro milímetros.

A atuação

Engels era considerado um homem de família, observador, inteligente e uma fonte de informação potencialmente inestimável. De volta ao Brasil, não demorou a começar os envios sistemáticos de informações ao governo nazista. Seus relatórios tratavam da produção industrial e militar nos Estados Unidos, além do comércio americano com a América Latina. Suas fontes de informações incluíam contatos comerciais, publicações brasileiras e americanas, como o Wall Street Journal.

Os relatórios eram remetidos por aviões para Roma, na Itália, onde eram enviados via Correios para um endereço em Berlim, na Alemanha. “Os documentos eram camuflados como se fossem cartas comerciais, mas com texto em código mascarando evidências de informações estratégicas. Além de revistas norte-americanas, suas principais fontes eram contatos pessoais em círculos comerciais, industriais, políticos e militares”, explica Taís.

Engels esteve subordinado ao capitão Hermann Bohny, adido naval assistente da Embaixada alemã no Rio de Janeiro. Outro foco das atividades do espião, segundo a pesquisadora, era coletar informações sobre a movimentação de navios ingleses e americanos nos portos brasileiros, que eram retransmitidos aos submarinos alemães em vigília no Oceano Atlântico. “Engels também recebia cartas dos Estados Unidos, México e Panamá com informações confidenciais e as repassava para Berlim”, complementa a historiadora.

Para mensagens urgentes entre Engels e a Abwehr era utilizado o canal diplomático por meio do embaixador alemão Curt Prüfer. Após o estabelecimento de um serviço radiotelegráfico, em março de 1941, Engels começou a recrutar colaboradores para o serviço militar de informações. Foram convocados informantes nas cidades do Rio de Janeiro, Santos, Recife, São Paulo, Salvador, Vitória, Porto Alegre e Rio Grande. Com isso, Engels tornou-se um catalisador de diversos agentes alemães nas Américas, que se comunicavam com a Alemanha por meio dele. “O financiamento das atividades era feito via Argentina, através do capitão Dietrich Niebuhr, adido militar da Embaixada alemã de Buenos Aires, que dirigia e fiscalizava os trabalhos de Bohny e Engels”, revela Taís.

Justiça e impunidade

Após quase oito anos de prisão, Engels foi solto em 1949. Ao sair do cárcere, continuou tendo uma vida normal no Brasil. Permaneceu morando no Rio de Janeiro e, talvez como um prêmio pelos seus “bons serviços” ao regime nazista, chegou a ser presidente da empresa Telefunken no Brasil, em 1961 — era uma empresa alemã fabricante de rádios, televisores e componentes eletrotécnicos, fundada em 1903. Anos mais tarde, Engels retornou à Alemanha e morreu em junho de 1977, aos 78 anos.

O tratamento que Engels recebeu no cárcere foi “duríssimo”, segundo apontam historiadores. Mais tarde, conforme escreveu Stanley Hilton, o próprio espião chegou a revelar que sofreu danos permanentes em seu nervo ciático. A esposa, Klara, também foi levada à delegacia diversas vezes para ser interrogada — ela, no entanto, jamais foi detida. No decorrer da investigação que resultou na sua prisão, um grupo selecionado de mensagens escritas por ele foi fornecido ao presidente Getúlio Vargas e ao então ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha. “Por causa da importância de Engels dentro do esquema de espionagem alemã no Brasil, um procedimento diferente foi usado”, explica o pesquisador Stanley Hilton.

Reunião de membros do Partido Nazista da cidade de Bela Aliança (SC), em 1929 /Crédito: Domínio Público

Para o pesquisador Rostand Medeiros, a punição a Engels denota que a justiça ficou longe de prevalecer. Para ele, a pena de quase oito anos foi muito aquém do esperado. “Acredito que o fato de existir no Brasil, até nas altas esferas do governo Vargas, muitos simpatizantes do nazismo e do fascismo, ‘lubrificou’ as engrenagens da Justiça para essa gente sair livre, leve e solta. Com o fim da Segunda Guerra, essa gente deve ter pensado que esses espiões ‘já tiveram o que mereciam’ e a Justiça foi afrouxando geral”, avalia Medeiros.