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Matérias / Tragédia dos Andes

"Parecia que merecíamos tudo o que estávamos vivendo", diz sobrevivente dos Andes

Sobrevivente de história que inspirou 'Sociedade da Neve relembra o acidente em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História: "Foi como viver no inferno", diz Roy Harley

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 08/02/2024, às 09h37 - Atualizado em 11/02/2024, às 11h24

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Roy Harley foi vivido por Andy Pruss em 'A Sociedade da Neve' - Reprodução/Instagram/Andy Pruss
Roy Harley foi vivido por Andy Pruss em 'A Sociedade da Neve' - Reprodução/Instagram/Andy Pruss

Quando os jogadores da equipe de rúgbi do Old Christianss Rugby Club, do colégio Stella Maris, em Montevidéu, fretaram um voo para Santiago, no Chile, jamais imaginaram que a viagem seria lembrada para sempre de forma trágica. 

Prevista para durar três horas, a jornada só acabou após 72 dias de agonia. Naquela fatídica sexta-feira 13, em outubro de 1972, o turboélice bimotor Fairchild caiu no Valle de las Lágrimas. 

"Me lembro perfeitamente de tudo… de sentir os motores do avião em potência máxima", explica Roy Harley, um dos sobreviventes, em entrevista exclusiva à equipe do site Aventuras na História. "O pior foi a primeira noite na montanha. Foi como viver no inferno". 

+ A Sociedade da Neve: Veja como é a verdadeira história por trás do filme;

Restos do avião que caiu nos Andes em 1972 - Foto por Wunabbis pelo Wikimedia Commons

Quando ocorreu o acidente, cerca de um quarto dos 45 passageiros morreu imediatamente. Os que resistiram, se acomodaram no interior do que sobrou da fuselagem — um espaço de cerca de 6,5 metros de comprimento por três de largura. 

Para não sucumbirem ao frio brutal da Cordilheira, que poderia alcançar os 30 graus negativos, os sobreviventes dormiam abraçados e apenas durante um curto espaço de tempo. O objetivo era evitar a morte por congelamento.

Para tentar se proteger do frio, o grupo fez paredes com as poltronas no interior dos destroços. Em busca de suprimentos, encontraram poucas conservas, bolachas e chocolates nas bagagens que se espalharam pelos Andes. Já a água disponível vinha do gelo derretido que era captado por meio de um funil. 

Com o tempo, porém, outros foram acometidos pelo frio e em decorrência dos ferimentos. No décimo dia do acidente, os sobreviventes sofreram mais um forte golpe: por meio de um rádio, ouviram que as buscas haviam terminado. Um grupo de três aviões foi incapaz de localizar a aeronave branca em meio a neve.

"Em 23 de outubro escutamos em um pequeno rádio — que eu tinha reparado — que as buscas haviam sido suspensas. Além disso, a notícia também veio de uma emissora uruguaia. Foi terrível, nosso país nos abandonou. O mundo inteiro nos dava como mortos", relata Harley

Apesar do duro golpe, Roy aponta que o momento foi crucial para o destino dos sobreviventes: "Foi um golpe muito duro, mas, ao mesmo tempo, ótimo para mudarmos nossa atitude: deixamos de ser passivos esperando e nos tornamos atuantes. Agora, nosso destino estava em nossas mãos".

Nunca pensei que morreria na montanha. Eu queria viver para voltar e dizer aos meus pais e irmãos que eu estava vivo. Esse era o motor que me movia", continua. 

Sobrevivendo ao extremo 

Os alimentos encontrados foram divididos em pequenas quantidades, com o intuito de durar o máximo possível. Mas, com o conhecimento de que não seriam mais procurados, a incerteza sobre o futuro se tornava cada vez maior. Logo, a comida havia acabado. 

Restava uma única alternativa: se alimentar dos restos mortais de seus companheiros que morreram na tragédia. Após um acordo, a distribuição começou a partir do oitavo dia. Os cortes eram feitos com pedaços de vidro que ajudavam a cortar a carne já enrijecida pelo congelamento. "Eu não queria morrer e estava disposto a qualquer coisa para sobreviver", recorda Harley

"A decisão de usar os corpos de nossos amigos como fonte de energia foi mais simples do que muitos imaginam. Estávamos no fundo do poço, não havia outra alternativa. Estávamos em uma geleira com neve 'eterna' e só havia gelo e pedras. Não havia outro caminho", ressalta. 

Pouco antes do vigésimo dia da jornada dos sobreviventes, outra tragédia acometeu o grupo: uma avalanche atingiu o resto da fuselagem e manteve os sobreviventes enterrados por quatro longos dias. 

Parecia que merecíamos tudo o que estávamos vivendo", disse Roy Harley sobre a sequência de acontecimentos. 

"Depois de tudo o que estávamos passando, veio uma avalanche e nos cobriu com três metros de neve. Foi terrível. Ficamos por quatro dias enterrados pela neve e dormindo com os corpos de oito de nossos amigos", recorda. 

Expedição

Antes mesmo do episódio com a avalanche, parte do grupo já insistia que a única salvação seria escalar as montanhas em busca de ajuda. Tudo foi baseado em uma afirmação do copiloto que, antes de falecer, havia dito que o voo já havia passado por Curicó; ou seja, a zona campestre chilena estava a 'apenas' alguns metros de distância ao oeste. 

O primeiro grupo de expedição foi organizado por Harley, Antonio 'Tintín' Vizintín e Carlitos Páez. "Tudo era decidido em conjunto, todos opinavam e decidiam por consenso", conta o sobrevivente. 

Em 12 de dezembro de 1972, quando o acidente já completava cerca de dois meses, a jornada até a montanha foi iniciada por Vizintín com Roberto Canessa e Nando Parrado. Ao descobrirem que o trajeto duraria mais do que o previsto, Antonio foi enviado de volta ao local do acidente — uma forma de economizar suprimentos.

A ajuda só chegou em 22 de dezembro, dez dias depois do grupo ter partido, quando dois helicópteros de resgate chegaram ao local. Dos 45 passageiros, apenas 16 estavam vivos.

Os sobreviventes ao lado do avião / Crédito: Antonio Vizintín

"Encontrar com minha família em San Fernando foi uma sensação rara — tanto para eles quanto para mim", diz Harley sobre o momento mais especial que viveu após ser resgatado. 

A Netflix e reencontros

Em 2023, a Netflix lançou o filme 'A Sociedade da Neve', dirigido por J. A. Bayona. Baseado no livro homônimo de Pablo Vierci, a produção concorre a dois prêmios do Oscar: Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Cabelo e Maquiagem. 

O filme é muito bom, muito bem produzido. Em geral, muito fiel com a realidade", opina Harley, que explica ter sido consultado constantemente por Vierci, Bayona e seus colaboradores. 

"O diretor deixou na produção sua marca e certas atribuições — como contar a história a partir de Numa Turcatti —, que não condizem com a essência. Mas fico feliz em ver que um filme sobre a história de meninos uruguaios, hoje, esteja concorrendo ao Oscar", continua. 

Roy Harley ao lado de Andy Pruss - Reprodução/Instagram/Andy Pruss

Mais de cinquenta anos após ter sobrevivido à 'Tragédia dos Andes', como o episódio ficou conhecido, Roy Harley aponta que possui uma relação distinta com os Andes. "A Cordilheira me fascina, dormir ao ar livre e tudo mais". 

Ao longo de todo esse tempo, o sobrevivente conta que já retornou quatro vezes e meia ao local do acidente: com os 12 sobreviventes, em fevereiro de 1994; com sua família, em fevereiro de 2001; acompanhado de sua filha mais velha e amigos, em fevereiro de 2012; e com seus netos, em fevereiro de 2023. 

"Em outubro de 2017, fui convidado pela ESPN Adventures para ir até o local na data do acidente, em 13 de outubro. Fui com meu filho caçula, que tinha 32 anos na época. Fomos caminhando, mas não chegamos. Acabamos acometidos por uma terrível tempestade de vento e neve. Depois de nove dias, resolvemos abortar a expedição. Embora tenha sido muito difícil, foi algo muito bonito que desfrutei na companhia do meu filho", recorda. 

Roy Haley em uma de suas viagens ao Andes/ Crédito: Arquivo Pessoal/Roy Harley

Hoje aposentado e palestrante sobre sua história de vida, Roy diz que mantém contato com os sobreviventes. "Sabe, com alguns você tem mais coisas em comum do que com outros. A vida te leva por caminhos distintos, mas existe algo muito forte que nos uniram para sempre". 

Por fim, ele relata alguns dos aprendizados que teve com tudo o que viveu: "valorizar o momento que vivemos; não esperar a ajuda de ninguém; não subestimar as pessoas nem a nós mesmos; não se queixar, mas agir; dar, entregar e ser solidário; manter a esperança e sonhar", e, por fim, "agradecer".