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Matérias / Civilizações

Quase apocalipse: 536 foi considerado o pior ano da História

De um dia para o outro, o mundo acordou escuro e frio. Colheitas foram perdidas, cidades e países foram devastados, pessoas saíam sem rumo em busca de comida e de um lar seguro para morar

Carlo Cauti Publicado em 25/10/2020, às 08h00 - Atualizado em 24/09/2022, às 10h00

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Imagem ilustrativa do globo em chamas - Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Imagem ilustrativa do globo em chamas - Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

A pior pandemia dos últimos tempos, uma crise econômica devastadora, revoltas e manifestações em diversos países, com risco de guerras do Mediterrâneo até o Extremo Oriente, passando pelo Golfo Pérsico. Golpes de Estado e instabilidade política, migrações forçadas e crise climática, com secas severas generalizadas alternadas por inundações intermitentes.

Essa descrição poderia ser perfeita para 2020 – que ainda não terminou e já é tachado por alguns de nós como o “pior ano da História”. Um título, aliás, que compete com muitos outros annus horribilis, como diziam os antigos romanos.

Entre eles, 1349, quando a Peste Negra varreu metade da população da Europa, 1918, quando a Gripe Espanhola matou de 50 a 100 milhões de pessoas, e de 1939 a 1945, quando a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto exterminaram mais de 60 milhões de seres humanos.

No entanto, a descrição que abre esta reportagem se refere especialmente a 536 d.C. Segundo pesquisas recentes, este, sim, teria sido o pior ano da História. Para Michael McCormick, arqueólogo especialista em História Medieval e professor da Universidade de Harvard, 536 não foi somente os piores 12 meses para a humanidade, mas “o início de um dos piores períodos para estar vivo”.

Névoa misteriosa 

Naquele ano, uma névoa misteriosa escureceu o céu da Europa, do Oriente Médio e partes da Ásia, tornando impossível distinguir o dia da noite por 18 longos meses. “O Sol emitia sua luz sem brilho, como a Lua durante todo o ano”, escreveu o historiador bizantino Procópio de Cesareia, testemunha ocular daquele momento turbulento.

Procópio de Cesareia /Crédito - Wikimedia Commons

Procópio também deixou documentado como o Sol parecia estar constantemente em eclipse e que durante esse tempo “os homens não estavam livres da guerra, nem da peste, nem de qualquer outra coisa que levasse à morte”, referindo-se à extensa e dramática Guerra Gótica, um conflito entre o Império Romano do Oriente e o Reino Ostrogótico que devastou a Península Itálica, Dalmá cia, Sicília e Sardenha.

Com início em 535, a guerra só terminou em 553, aniquilando as regiões entre as mais férteis, povoadas e civilizadas do mundo antigo.  E Procópio, que estava junto às tropas romanas como secretário do comandante Flávio Belisário, descreveu os horrores que as populações sofreram e as devastações, como a destruição de Florença e Roma.

A misteriosa névoa do relato também foi documentada pelo senador romano Flávio Magno Aurélio Cassiodoro, que, além de descrever um Sol azul e sem sombras, afirmou que as estações do ano pararam de existir, dando a impressão de que era o fim do mundo.

“Ficamos maravilhados por não ver nenhuma sombra de nossos corpos ao meio-dia”, registrou o político romano na época. Outras fontes do Mediterrâneo também mencionam uma nuvem ou véu de poeira que escureceu a Terra por volta de 536. Entre elas, estão os contos de Miguel, o Sírio, um escriba bizantino.

Naquele ano, mesmo no verão, a temperatura caiu drasticamente (entre 1 e 2 graus Celsius), iniciando a década mais fria dos últimos milênios. Não à toa, muitos historiadores chamam essa época de “Pequena Idade do Gelo Antiga”.

Com isso, as colheitas da estação quente foram perdidas e uma gigantesca carestia se iniciou, matando inúmeras pessoas de fome – e servindo de inspiração para os Anais de Ulster, crônicas irlandesas medievais, que afirmam a “falta de pão entre os anos 536-539”.

Estudos sobre os anéis de árvores ultracentenárias, realizados a partir de 1990, mostram como esses verões foram excepcionalmente frios, limitando o crescimento das plantas, da vegetação e, consequentemente, da comida.

Por isso, muitos povos começaram a migrar – num tempo em que as migrações significavam o deslocamento de uma nação inteira, de um lugar para outro. Quando o destino já tinha um povo estabelecido, a guerra era inevitável. Foi o que ocorreu, por
exemplo, com os ávaros, uma população que fugiu da seca iniciada em 536 nas regiões da Mongólia e chegou à Europa Oriental, conquistando a enorme Panónia – território que hoje corresponde à Hungria, Sérvia e Romênia.

Os povos locais, no caso, foram massacrados ou forçados a ir embora, como os longobardos, que invadiram a Itália e ocuparam a península após ganhar sangrentos confrontos com os bizantinos, enfraquecidos pela carestia e pela epidemia.

Segundo uma teoria do historiador e arqueólogo David Keys, publicada no livro Catastrophe: An Investigation Into the Origins of the Modern World (Catástrofe: Uma Investigação nas Origens do Mundo Moderno, sem tradução para o português), a ascensão do Islã e a expansão das tribos turcas na atual Anatólia também tiveram como
ponto de partida a devastação de 536.

Mas as mudanças do clima, carestias e guerras não se limitaram ao Mediterrâneo e à Europa. Os relatos de autores da época, que viveram há dezenas de milhares de quilômetros de distância e não tinham contato entre eles, mostram que 536 não foi um ano fácil em lugar nenhum.

Por exemplo, a Nan Shi (História das Dinastias do Sul), crônica chinesa da época, relatou uma substância amarela semelhante a uma cinza caindo do céu, cuja composição exata do material permanece obscura, mas relatos a descrevem como sujeira ou poeira que pode ser “recolhida em punhados”. Essa substância teria aparecido três vezes no final da década de 530, provocando verões frios e com neve, e arruinando plantações em diversas províncias, como em Qingzhou.

O resultado foi uma carestia generalizada em toda a China, que durou cerca de dois anos causando a perda de quase 80% da população. “Tão grande é a morte por fome que por decreto imperial foi decidida uma anistia em todos os aluguéis e impostos”, aparece no texto.

Não por acaso, o declínio da dinastia Wei começou exatamente nesta época. O episódio enfraqueceu os governantes, permitindo o surgimento das dinastias Zhou do Norte e Qi do Norte. Enquanto isso, no sul da China, os protestos geravam várias revoluções que dividiram a dinastia Liang em dinastia Chen e dinastia Liang Ocidental. Tudo, claro, com violência e centenas de milhares de pessoas mortas.

Efeitos catastróficos ocorreram também na Índia, onde o império Gupta viu seu fim. Antes dos eventos de 536, o poder já estava em declínio por causa da invasão dos heftalitas – que, embora tenham sido expulsos pelos guptas, o império não conseguiu se recuperar a tempo, antes de a fome chegar. Isso, somado ao declínio da autoridade central, levou ao seu colapso sete anos depois.

Relatórios adicionais de geada e neve na Mesopotâmia também apareceram durante o verão de 536, e o inverno foi tão “severo, que, devido à grande e indesejada quantidade de neve, os pássaros morreram”.

Além disso, durante aquele mesmo século, aldeias nas partes oriental e central da Suécia sofreram um declínio tão forte e rápido que muitas cidades foram abandonadas por seus habitantes. A razão para esta desertificação permanece um tanto obscura entre os pesquisadores, mas o “véu de poeira” de 536 e a escassez de comida subsequente certamente influenciaram na decisão das populações escandinavas, que começaram a atacar seus vizinhos na busca por comida.

Expedições arqueológicas recentes mostram que o abandono das aldeias aconteceu devido a incêndios em casas e fazendas, o que confirmaria esse êxodo forçado por guerras e infertilidade dos terrenos. Há também um conto tradicional da Escandinávia, chamado Fimbulwinter (terrível grande inverno, na tradução da antiga língua nórdica), sobre um inverno ocorrido antes do Ragnorök que durou três anos – um fim do mundo também conhecido como o “Crepúsculo dos Deuses”.

É possível que essa lenda tenha sido baseada no período de névoa prolongada e vivenciada pelas populações nórdicas, pois um ponto comum entre os poemas da época era justamente a escuridão do Sol.

Primeira epidemia 

Como se não fossem suficientes carestias e violências, em 541 chegou a peste bubônica, uma doença que se espalhou muito rápido diante da fome – que debilita os organismos – e que entrou para a História como a “Peste de Justiniano”, o nome do imperador romano da época.

O primeiro foco da epidemia foi no porto romano de Pelusium, no Egito. Mas, graças aos eficientes meios de comunicação romana, chegou quase imediatamente a todos os cantos do Velho Mundo. No Império Romano do Oriente, o número de vítimas foi particularmente elevado, sendo calculado entre um terço e metade da população total.

“Uma praga sem precedentes seguiu em Constantinopla, onde só no primeiro dia 5 mil pessoas morreram. No dia seguinte, 10 mil. No terceiro, 15 mil, e no quarto dia, 18 mil”, escreveu Miguel, o Sírio, reportando os números relatados pelos soldados que o imperador havia colocado nos portões da cidade para contar as vítimas.

“Eles contaram até 300 mil pessoas... e, então, pararam de contar.” Para ter uma ideia do nível da mortalidade, a cidade de Constantinopla, naquele momento, contava com cerca de 500 mil habitantes. Segundo Miguel, ninguém estava imune à pandemia: “primeiro ela atacou a classe pobre da população, depois os mercantes e a nobreza, incluindo o Palácio Imperial”. Conforme diz o arqueólogo McCormick, a catástrofe de tamanha dimensão acelerou o colapso do Império Romano do Oriente.

A devastação

Uma análise detalhada do gelo retirado dos Alpes da Itália, na geleira do Pico Gnifetti, no Monte Rosa, por uma equipe liderada por Mc- Cormick e pelo glaciologista Paul Mayewski, do Instituto de Mudanças Climáticas da Universidade do Maine, pode ter encontrado o responsável por tanta devastação – embora a origem das nuvens misteriosas ainda seja um enigma.

Partículas de poeira, de metal e de elementos aerotransportados, congelados em vários níveis do núcleo de gelo de 72 metros de comprimento, sugerem que a atmosfera na Europa tenha mudado ao longo dos últimos dois milênios por causa de uma erupção vulcânica cataclísmica na Islândia que teria expelido uma coluna monstruosa de cinzas por todo o hemisfério norte no início do ano 536.

Depois, seguiram-se duas outras erupções maciças, em 540 e 547. “Essa época da História sempre foi considerada muito difícil de ser estudada, especialmente pela ausência de documentos ou de claros indícios sobre o ocorrido. Não por acaso, são chamados de ‘Séculos Obscuros’”, explica Alexander More, professor no Instituto de Mudanças Climáticas da Universidade de Harvard e do Departamento de Saúde Pública da Universidade de Long Island.

“Até o ano passado a gente nem sabia que o responsável de tamanha devastação pudesse ser um vulcão islandês. Havia várias teorias na mesa, sobre vários vulcões e até sobre a possibilidade do impacto de um meteoro com a Terra. Mas, graças a essas pesquisas, identificamos as micropartículas de pó vulcânico, chamadas de tefra vulcânica, e conseguimos entender melhor o que poderia ter ocorrido. Essa foi a primeira vez que estudos históricos se basearam em testes científicos e pesquisas meteorológicas”, aponta.

Quando as erupções são particularmente violentas, como as registradas na época, as partículas atingem a estratosfera e uma nuvem permanente se forma como um verdadeiro manto de névoa. Entre todas as substâncias que tal fenômeno teria espalhado no ar, há o dióxido de enxofre, que, junto com o vapor da água, diminui as temperaturas, pois cria um poderoso filtro contra os raios solares.

“Além de provocar chuvas ácidas que acabam com as colheitas, piorando a situação de carestia”, acrescenta o professor. “Para entender melhor o impacto dessa erupção, vale relembrar os efeitos da erupção de outro vulcão islandês, o Eyjafjallajökull, em 2010. Mesmo com um milênio e meio de distância de 536, a produção de pó vulcânico foi tamanha e tão densa que cobriu o continente europeu inteiro e chegou a bloquear todo o tráfego aéreo do hemisfério norte por meses. Olhando para as fotos satélites dessa última erupção conseguimos imaginar a proporção do desastre que poderia ter ocorrido em 536”, recomenda.

O Eyjafjallajökull /Crédito - Wikimedia Commons

De acordo com os estudos dos pesquisadores de Harvard, essas erupções continuadas geraram pelo menos 120 anos com temperaturas muito abaixo do normal, afetando de forma dramática a agricultura – a base das civilizações antigas – e desorganizando toda a estrutura social.

“Com menos comida, as pessoas ficam debilitadas e as doenças matam com mais facilidade. Por isso, os efeitos foram terríveis. Também é necessário entender a proporção do massacre. Diferentemente da pandemia do coronavírus, onde a mortalidade continua sendo de 1 a 2%, o número de vítimas naquela epidemia foi superior a 55% da população, sobretudo em um mundo muito menos povoado do que o atual. Hoje, somos mais de 7 bilhões e, naquela época, a Terra tinha apenas algumas centenas de milhões de habitantes”, afirma More.

Para o professor, outro ponto crítico deve ser considerado aqui: por ter menos gente, era muito mais difícil substituir um trabalhador agrícola que morria. “Como a agricultura precisava de muita força de trabalho, reduziu ainda mais o volume de alimento, ampliando a crise.”

Também é importante atrelar à situação dramática o declínio do uso do dinheiro, pois, além de não haver como ganhar, também não havia muito o que comprar. E, com isso, a extração de minerais preciosos, como a prata utilizada nas moedas romanas, também declinou rapidamente nas décadas seguintes ao ano 536.

Na base desse indício, os pesquisadores de Harvard chegaram à possível data final da crise. É que outra partícula encontrada no gelo – um pico de chumbo no ar – mostraria o começo do ressurgimento da mineração de prata, por volta da metade do século seguinte. Os cientistas identificaram essa retomada da extração do metal precioso provavelmente na cidade de Melle, na França, tradicional cidade minerária (Melle vem do latim metallum, metal, em português), por volta do ano 640.

Isso indica mais de um século de estagnação econômica. Entretanto, o retorno da produção do dinheiro não marcou o fim imediato da crise. “As coisas continuaram muito
difíceis até pelo menos o nono século”, conta o professor More. “Além disso, o mundo saiu desses anos sombrios muito mudado. Tanto que podemos já definir esse momento como o verdadeiro início da economia medieval, graças também aos reis merovíngios, carolíngios e ao surgimento do feudalismo”, diz.

Nas Américas

Coincidência ou não, o fato é que o Velho Mundo não foi o único território a sofrer em 536 d.C. Aquele ano que pode ter sido também o pior da História nas Américas. Com base nas cinzas vulcânicas tropicais descobertas nos núcleos de gelo, alguns estudiosos indicam uma erupção do vulcão Ilopango, em El Salvador, em 535 ou 536.

Algo que poderia ter contribuído, inclusive, com a Pequena Idade do Gelo. Outros estudos também mostram como essa erupção pode ter sido seguida por outras. Como a do vulcão El Chichón, no México, por exemplo, que pode ter ocorrido também em 540 – e, provavelmente, outras em seguida.

Essas erupções coincidiram com o período de “hiato” do Império Maia, durante o qual a população e a atividade de construção diminuíram. Os maias, considerados os povos mais avançados das Américas pré-colombianas, parecem ter “congelado” a civilização na época.

“Essa teoria antecede a nossa, mas com certeza é plausível. Sabemos que há períodos na História, mesmo recente, em que ocorrem atividades vulcânicas mais fortes. É o caso, por exemplo, dos vulcões Tambora e Krakatoa, no Pacífico, que também foram tão fortes que provocaram anos sem verão no mundo inteiro, contribuindo evidentemente para convulsões sociais da época”, explica More.

No caso dos maias, a partir dos anos 1930, os arqueólogos começaram a perceber uma estranha lacuna em monumentos maias datados. Por mais de 100 anos, essa civilização interrompeu inexplicavelmente os projetos de construção, aparentemente abandonando algumas áreas até então ocupadas.

Os arqueólogos ainda não conseguiram encontrar uma explicação definitiva, embora tenham surgido muitas hipóteses, como um terremoto, furacão ou o fim abrupto de rotas comerciais. Entretanto, a erupção do Ilopango e El Chichón pode ter contribuído para isso.

O declínio de Teotihuacán, a grande cidade da Mesoamérica, também estaria ligado às consequências dessas erupções, que teriam provocado carestias e revoltas por parte da população local.

O grande centro urbano chegou a ter uma população entre 150 e 250 mil pessoas e, durante o seu apogeu, influenciou muito povos vizinhos, inspirando outras culturas com um importante legado de conhecimentos científicos e culturais às sociedades posteriores.

Entretanto, pouco depois de 536, entrou em colapso repentinamente – assim como toda a civilização ao redor. Hoje, ainda que 2020 não tenha chegado ao fim, fica o dilema. “O ano 536 desencadeou uma cadeia de consequências não muito diferentes do momento histórico atual que vivemos: uma crise climática, uma crise sanitária, uma crise econômica e também uma série de crises políticas e migratórias”, compara More.

Quem sabe daqui a 1500 anos, os historiadores decretam de vez qual foi, afinal, o pior ano da História.