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Desventuras / Holocausto

A melodia do Holocausto: As músicas compostas pelos judeus na 2ª Guerra

Em entrevista ao site Aventuras na História, a historiadora Silvia Lerner explica como a arte serviu como forma de resistência: 'manter dignidade em tempos indignos'

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 27/01/2024, às 09h00 - Atualizado em 19/02/2024, às 18h28

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Orquestra de presos do campo de concentração de Mauthausen - Domínio Público via Wikimedia Commons
Orquestra de presos do campo de concentração de Mauthausen - Domínio Público via Wikimedia Commons

Em 23 de julho de 1944, já no estágio final da Segunda Guerra, os soldados soviéticos foram os primeiros a libertarem prisioneiros dos campos de concentração; quando Majdanek, na Polônia ocupada, foi tirada das mãos dos nazistas

O Exército Vermelho enfim chegou à Auschwitz-Birkenau em 27 de janeiro de 1945, data que completa 79 anos neste sábado. O Dia Internacional da Lembrança do Holocausto serve para jamais ser esquecido o genocídio que ceifou a vida de cerca de seis milhões de judeus (sendo 1/6 deles apenas em Auschwitz). 

Entrada de trem de Auschwitz - Getty Images

Nos anos posteriores à Guerra, a memória do Holocausto ainda vivia sua fase de massificação e pouca personificação, como recorda Carlos Reiss, Coordenador-Geral do Museu do Holocausto de Curitiba, em entrevista à equipe do site Aventuras na História em 2021. Clique aqui!

"Era os anos 50, um momento em que era importante mostrar ao mundo a dimensão do que foi o Holocausto, o tamanho da tragédia, a extensão, a grandeza do extermínio — e isso inclui o número de vítimas", contextualiza.

Foi neste período, aliás, que além do assustador número de seis milhões de vítimas, os museus e memoriais passaram a representar os horrores nazistas por meio do choque de quantidade: mostrando as pilhas de roupas, sapatos e os mais diversos assessórios usados pelos judeus.  

Por mais que a coletivização de uma tragédia seja importante, a memória individual e de resistência tampouco pode ser esquecida. E é justamente nesta área de trabalho que a historiadora Silvia Lerner passou os últimos dez anos envolvida. 

'A música e os músicos em Tempos de Intolerância: o Holocausto' (Editora Rio Books) apresenta um trabalho inédito no Brasil: as músicas produzidas nos guetos, campos de concentração, campos de extermínio e também nas florestas, onde os guerrilheiros judeus se escondiam.

"Existiram dois tipos de resistência: a armada e a psicológica (com a qual eu trabalho). A armada, como o nome já diz, foi o momento em que grupos de prisioneiros resolveram pegar em armas e se sublevar", explica Lerner, autora da obra, em entrevista exclusiva à equipe do site Aventuras na História. 

A resistência psicológica foi aquela em que a arte tomou seu lugar, no sentido de se produzir arte (desenhos, poemas, músicas, teatro) para ocupar o tempo, para se esquecer, um pouco, a tragédia em que viviam e sublimar a saudade, a dor, a dúvida e a desesperança", contextualiza. 

+ Thomas Geve: O menino que desenhou os horrores de Auschwitz;

Os sons do Holocausto

Dividido em nove capítulos, distribuídos ao longo de 375 páginas, o livro apresenta a tradução inédita de composições para o nosso idioma — todas elas, que vão desde músicas de ninar até hinos e canções orquestradas, foram escritas originalmente em iídiche ou alemão. 

Ao criarem as músicas, os prisioneiros recordavam tudo que eles haviam deixado para trás, como família, filhos, amigos e principalmente queriam manter sua dignidade em tempos tão indignos", conta Silvia

A historiadora também diz que as canções eram usadas para expressarem seus sentimentos e emoções. "Ao apresentarem para os companheiros desse espaço concentracionário, eles dividiam entre si suas saudades, suas vidas passadas, suas preocupações com o futuro, e também partilhar um pouco de arte, de momentos de 'lazer' em um lugar onde esse nome era totalmente desconhecido".

Apesar de serem um conjunto de um período da História, Lerner destaca as diferenças entre cada composição e como isso ajuda a entender a vida de diferentes formas em cada local. 

Em um primeiro momento, conta, a maioria dessas músicas foram compostas em diferentes guetos, e cada um compunha de acordo com sua vontade. "Encontramos um grande número de músicas compostas em ritmo de tango criadas em diferentes espaços". 

"Não havia letras que falavam de felicidade, de festas, de casamentos. Através das diferentes letras podemos entender um pouco como foi a vida dentro desses espaços, quando falam da fome, da saudade, das dúvidas, da necessidade de reagir, da vida das crianças", compartilha. 

A orquestra dos prisioneiros no campo de concentração de Buchenwald/ Crédito: United States Holocaust Memorial Museum

Outro ponto levantado por Lerner, que ajuda a entender como a doutrina nazista era instalada em diferentes camadas, diz respeito ao ritmo musical das músicas. Afinal, a aceitação pelas canções em ritmo de tango era maior do que as compostas em jazz. Mas o que explica isso? "A origem desses ritmos", diz a escritora. 

"O tango teve origem na Argentina e a partir de 1910 foi bastante aceito pela burguesia. E uma dança que sugere submissão. Inicialmente os dançantes não se olhavam, sendo que um deles é submisso ao outro. A mulher está sempre em poder do homem", aponta. 

O surgimento do jazz tem como matriz principal a cultura africana. Cultura essa que não combinava como os valores culturais, estéticos e morais da ideologia nazista", continua.

A história por trás das canções

Acredita-se que cerca de 300 músicas foram compostas por judeus durante o Holocausto; das quais 31 delas foram selecionadas pela historiadora, que ainda contextualizou o espaço concentracionário onde elas foram produzidas e o que aconteceu com seus autores — além de outras informações reveladas ao longo da obra. 

"Na verdade, tive que fazer uma escolha, senão eu não escreveria um livro, mas sim uma enciclopédia", brinca sobre o processo de seleção das composições. "A escolha foi para poder contemplar vários espaços concentracionários, entre guetos, campos de concentração e de extermínio". 

Uma das canções destacadas por Silvia Lerner se chama 'Friling' (ou 'Primavera', em tradução livre), composta em ritmo de tango por Schmerke Kaczerginsky, que viveu no gueto de Vilna, atual Lituânia, após o assassinato de sua esposa. 

Poeta, escritor, educador e partisan, Kaczerginsky era criança quando perdeu seus pais pela falta de alimentos ocasionada pela Primeira Guerra. Ainda na escola, juntou-se ao movimento de jovens comunistas, tornando-se um político radical que publicava artigos em jornais locais e composições que aclamavam uma revolta social. 

Judeus do campo de concentração de Auschwitz - Getty Images

Em 1939, quando Vilna se tornou capital da Lituânia, ele deixou sua comunidade, mas voltou no ano seguinte, sendo enviado ao Gueto de Vilna em 1942; onde organizou produções teatrais, eventos literários e programas educacionais como forma de resistência. 'Friling' foi composta em abril de 1943, após a morte de sua esposa, Barbara. Leia!

"Eu vago no gueto
De ruela em ruela
E não consigo achar um lugar; 
Não encontro minha amada. 
Como se pode aguentar?
Gente, diga pelo menos uma palavra. 
Sobre meu ser se reflete
O céu azulado
O que me resulta disso agora?
Estou parado como um pedinte
Junto a cada portão
Eu imploro um pouco de Sol. 

Primavera, leve minha tristeza
E traga minha amada, 
Minha adorada de volta. 
Primavera, sobre suas asas azuis
Leve meu coração consigo
E devolva minha felicidade.
Primavera, sobre suas asas azuis,
Leve meu coração consigo
E devolva minha felicidade.

Neste ano, a primavera
Chegou bem cedo.
Floresceu a saudade por você,
Eu a vejo como se fosse agora
Carregada de flores,
Com alegria, você veio a meu encontro
O Sol esparramou
Seus raios no jardim,
O verde brotou na terra. 
Minha adorada, minha querida
Onde você está?
Você não sai da minha mente. 

Primavera, leve minha tristeza
E traga minha amada, 
Minha adorada de volta. 
Primavera, sobre suas asas azuis
Leve meu coração contigo
E devolva minha felicidade.
Primavera, sobre suas asas azuis,
Leve meu coração contigo
E devolva minha felicidade".

A música é um poema e nos perguntamos como foi possível, após essa perda, compor algo tão sublime, tão afetuoso?", questiona Lerner

A mesma pergunta foi feita a Schmerke Kaczerginsky após a primeira apresentação de Primavera. "Nós fazemos canções e as cantamos, pois as canções unem nossas almas, elevam nossos sentimentos e sustentam nossos músculos".