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Franceses X Alemães: rivais seculares

O conflito entre as duas potências européias é antiqüíssimo, e o histórico inclui guerras longas e disputas que resultariam em guerras até o século 20

Cristiano Dias Publicado em 01/09/2005, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

De um lado o rei Luís XIV, Napoleão Bonaparte e o general Charles De Gaulle. Do outro, o déspota da Prússia Frederico II, o chanceler Otto von Bismarck e o führer Adolf Hitler. As duas potências continentais européias têm uma longa história de desentendimentos e crises. A relação conflituosa entre franceses e alemães arrastou o continente a pelo menos quatro guerras.

A americana Ruth Putnam, autora de Alsace and Lorraine: from Caesar to Kaiser (ainda sem tradução para o português), diz que o começo da rivalidade está nas escaramuças entre tribos celtas e germânicas, que no tempo do Império Romano ocupavam o que viria a ser os territórios atuais de França e Alemanha. Já o historiador francês René Lauret não vai tão longe. "Celtas e germânicos se espalhavam em tribos isoladas e não se adequavam ao conceito moderno de nação", afirma o autor de France and Germany: the Legacy of Charlemagne (também sem tradução para o português). A primeira fagulha entre franceses e alemães, portanto, esperou pelo nascimento de França e Alemanha, séculos mais tarde.

Lauret, como a maioria dos pesquisadores, considera como marco zero das duas nações a partilha de Verdun, em 843. O tratado dividiu o reino de Carlos Magno entre seus três netos: Lotário, Carlos e Luís. Carlos ganhou as terras ocidentais, que mais tarde se tornariam a França. Luís recebeu o reino oriental, de tradição germânica. No meio dos dois ficou o neto mais velho, Lotário, que herdara a cereja do bolo: todo o prestígio imperial, a capital, Aachen, e a região central do antigo reino. Mas, sem a menor unidade política, seu reino se esfacelou e o espólio passou a ser disputado freneticamente pelos outros dois. Desde então, franceses e germânicos passaram por pequenos desentendimentos de fronteira, nada grave. Isso porque a França, até o século 16, só tinha olhos para o Atlântico, alimentando uma rivalidade mais antiga com os ingleses. Já os vizinhos alemães se mantinham ocupados com a Itália e os Bálcãs, tentando sempre expandir sua esfera de influência para além dos Alpes. Mas o quadro mudou quando os franceses expulsaram os ingleses do continente ao conquistar o porto de Calais em 1558. Só restava apontar a espada contra a Germânia.

Nunca é demais lembrar: o que entendemos hoje por Alemanha era, na época, um punhado de pequenos reinos que gravitavam em torno de uma confederação conhecida por Sacro Império Germânico, capitaneada pela Áustria e governada pela dinastia dos Habsburgos. O império era uma colcha de retalhos, o que o colocava em posição de desvantagem à França. Freqüentemente, os franceses apenas assistiam de camarote as pendengas internas, esperando tirar algum proveito territorial em intermediações de paz.

ATÉ QUE A GUERRA OS SEPARE

Foi exatamente isso o que aconteceu no primeiro grande choque entre os dois novos rivais, na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O conflito teve início por causa de diferenças religiosas entre católicos e protestantes no Sacro Império Germânico e arrastou várias nações para uma guerra travada em solo alemão. O resultado foi desastroso. A população alemã foi reduzida de 16 para 8 milhões de habitantes, e o império, fragmentado em mais de 300 territórios soberanos. "A França saiu como vitoriosa. Em meio ao cenário caótico, anexou a Alsácia e rapidamente começou a escalada para se tornar a maior potência do planeta. O território seria fundamental para deflagrar conflitos futuros entre as duas nações", diz a inglesa Mary Fulbrook, professora de história da University College, de Londres.

No século seguinte, aproveitando-se da debilidade do adversário, os franceses expandiram o país à custa de pequenos reinos alemães. Conquistaram a Lorena, a cidade de Estrasburgo e fincaram o pé na margem esquerda do Reno. Com a Alemanha dividida, ninguém poderia deter esse avanço. Manter os alemães enfraquecidos se tornou ponto comum na diplomacia francesa.

O século 18 trouxe um novo componente à rivalidade: o surgimento da Prússia. No início, austríacos e prussianos lutaram ferozmente pela hegemonia regional. Esses conflitos eram tudo o que os franceses queriam - claro, torciam para que ninguém saísse vencedor. Durante a Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748), apoiaram a Prússia contra a Áustria. Dez anos mais tarde, na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), cerraram fileiras com a Áustria contra a Prússia. "A rivalidade austro-prussiana neutralizava as duas nações e deixava os territórios germânicos à mercê da intervenção externa", escreveu o inglês Geoffrey Barraclough em The Origins of Modern Germany (ainda sem tradução para português).

Se a ascensão da Prússia acirrou a rivalidade interna com a Áustria e facilitou a vida da França, a Revolução Francesa teve o efeito contrário. Em 1792, pela primeira vez prussianos e austríacos se uniram contra os franceses, formando a primeira de uma série de coalizões contra os revolucionários que queriam varrer as monarquias da Europa. Apesar de terem sido fregueses de carteirinha da grande armée de Bonaparte, Prússia e Áustria foram sempre um obstáculo em todo o período napoleônico. Foi somente após a fracassada campanha de Napoleão na Rússia, em 1812, que prussianos e austríacos conseguiram derrotar o inimigo pela primeira vez - em 1813, na Batalha de Leipzig.

A derrota significou o maior equilíbrio entre franceses e alemães. O Congresso de Viena, em 1815, que redesenhou o mapa europeu, foi generoso com a Prússia, que herdou territórios na Renânia e na Vestfália, dobrando sua população e aumentando consideravelmente a influência sobre a recém-criada Confederação Germânica, a Deutsche Bund, o embrião da atual Alemanha.

O período que se seguiu à queda de Napoleão foi de relativa tranqüilidade para as relações franco-prussianas. A Prússia deu prioridade à consolidação frente aos estados germânicos. O plano era conseguir tomar a liderança regional, que até então sempre fora da Áustria. Por sua vez, a França continuava monitorando tudo de perto, mas não tinha tanta liberdade de ação por ainda se ressentir bastante das últimas desastrosas batalhas de Napoleão.

O crescimento da Prússia, porém, fez com que uma vitória contra a Áustria fosse questão de tempo. Lentamente, sob a batuta do chanceler Otto von Bismarck, os prussianos foram colocando os austríacos para escanteio até confiná-los em um estado à parte. Bismarck sabia que a França jamais permitiria que a Prússia anexasse determinados estados germânicos e patrocinasse a unificação. Não sem outro conflito. Assim, em 1870 estourou a Guerra Franco-Prussiana. O embate durou cerca de um ano e foi uma rápida e contundente vitória da cada vez mais poderosa nação alemã, agora unificada sob a égide do kaiser Guilherme I da Prússia.

A vitória sobre a França deu à Alemanha o direito de reaver a Alsácia, boa parte da Lorena e ainda pedir uma fortuna de indenização aos franceses. Com isso, estava inventada uma fórmula incendiária que culminaria em duas guerras mundiais no século seguinte. Com a França batida e uma economia que não parava de crescer, o império alemão começou a procurar colônias.

Esse expansionismo embaralhou os interesses da Alemanha com os das potências coloniais já estabelecidas, principalmente Inglaterra e França. Um novo confronto era inevitável. Isoladas, Alemanha, Áustria e Itália formaram a Tríplice Aliança, à qual se opôs a Tríplice Entente, de russos, ingleses e franceses. E o barril de pólvora da Europa foi de novo pelos ares.

O Tratado de Versalhes, que deveria selar a paz após a Primeira Guerra Mundial, foi uma sentença humilhante para os alemães, parecido com o acordo que pôs fim à Guerra Franco-Prussiana anos antes. Novamente a paz deveria ser mantida à base de indenizações bilionárias e de uma total desmilitarização do inimigo. Não demorou muito para que o conflito fosse retomado. Dessa vez, a Alemanha, sob o comando de Hitler, invadiu a França com facilidade e ocupou o país por quatro anos.

A Segunda Guerra Mundial enterrou quase 40 milhões de pessoas. E, paradoxalmente, com elas morreu a hostilidade. França e Alemanha descobriram a parceria. Mas o caminho do diálogo foi longo. Os franceses só permitiram que os alemães reconquistassem a soberania em 1955. A importância estratégica da Alemanha Ocidental na Guerra Fria lhe garantiu lugar de honra na Otan e no nascente Mercado Comum Europeu. Ainda hoje franceses e alemães discordam de direções econômicas dentro da Comunidade Econômica Européia - mas uma nova guerra entre Paris e Berlim é algo inimaginável.

 

Do outro lado da mancha

Antes de a Alemanha surgir no cenário, as mais cruentas guerras européias tinham dois adversários comuns: franceses e ingleses. A primeira vez foi em 1066 - quando Guilherme, o Conquistador, deixou as praias da Normandia e invadiu a Inglaterra, despejando uma batelada de francesismos na até então isolada cultura anglo-saxônica. Apesar de fundar uma dinastia francesa em solo inglês, logo os normandos se esqueceram das origens e Inglaterra e França voltaram a se engalfinhar - agora na Guerra dos Cem Anos (1337-1453). O conflito mais encarniçado da Idade Média produziu heróis da estirpe de Henrique V, do lado inglês, e Joana D·Arc, heroína francesa. As duas nações ainda viveriam às turras por muito tempo. Napoleão tentaria dobrar os ingleses com o Bloqueio Continental, e o almirante Nelson varreria a marinha imperial francesa na Batalha de Trafalgar, em 1805. No fim, franceses e ingleses souberam dividir, sozinhos, colônias no mundo inteiro. Isso parece ter aproximado os inimigos, que finalmente lutaram juntos e derrotaram por duas vezes a Alemanha, na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Hoje, a luta entre os dois é só um bate-boca para saber quem usa o sistema métrico mais eficiente...

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