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Caminhar sem rumo: Flanando em Paris

Historiador pesquisa a evolução do hábito de andar pela capital francesa. E conclui que os caminhantes começaram nos parques para depois perambular pelos grandes boulevards

Fernando Eichenberg Publicado em 01/04/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Em 1863, o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) eternizou, no ensaio O Pintor da Vida Moderna, a figura do flâneur, o cidadão que anda pela cidade sozinho e sem rumo – foi graças a ele, em grande parte, que “flanar” tornou-se um verbo em várias línguas, inclusive o português. “Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado”, o poeta escreveu, “é um imenso prazer fixar residência na multiplicidade, em tudo o que se agita e que se move, evanescente e infinito: você não está em casa, mas se sente em casa em toda parte; você vê todo mundo, está no centro de tudo, mas permanece escondido de todos.” Nas grandes cidades modernas, hoje é corriqueiro encontrar pessoas flanando pelas ruas só pelo prazer de entrar em contato com a vida urbana. Mas nem sempre esse comportamento foi comum. A figura do caminhante solitário surgiu em Paris durante o Iluminismo, no século 18, e foi moldada pelas transformações que a cidade sofreu na época. Essa é a tese do livro Le Promeneur à Paris au XVIII Siècle (“O andarilho na Paris do século 18”, sem tradução no Brasil), de Laurent Turcot, doutor em história e professor das universidades de Québec e Laval, no Canadá.

Turcot conta que, nos séculos 16 e 17, quando as caminhadas livres e solitárias ainda não existiam, era comum que os parisienses ricos praticassem o “passeio de civilidade”. Era uma forma de circular entre as pessoas da mesma classe, com o único objetivo de ver e ser visto. Para isso, o espaço dos parques era considerado o ideal, já que podia ser policiado para que os populares não tivessem acesso. Não por acaso, é nessa época que surge na França a “arte do jardim”. Os projetos de André Le Nôtre em Versalhes e nas Tulherias, na segunda metade do século 17, tornam-se referências para os paisagistas. A composição do parque é pensada para fazer as pessoas caminharem por suas alamedas, se cruzarem e se julgarem. O Cours-la-Reine, composto de três grandes alamedas, de 1813 metros de comprimento e 38 metros de largura, é o principal palco desse ritual. Já o jardim das Tulherias, um dos mais belos ornamentos da capital, era um espaço fechado e totalmente separado da cidade. Como testemunha a baronesa D’Oberkirch (1754-1803), famosa por descrever a vida na corte de Luís XVI: “Como os parisienses fazem tudo por capricho, adotaram uma alameda desse jardim e não colocam os pés nas outras. Fica-se sufocado, quase se batendo”.

Essa situação muda no século 18, quando a primazia do comportamento coletivo, cheio de normas de conduta, é superada pela valorização da intimidade. Com isso, a prática da caminhada se torna mais livre, natural e, principalmente, individual. O passeio passa a ser considerado um lazer organizado para contentar o homem em seus prazeres, e não para fixar normas sociais. Em seu Dicionário Crítico, de 1768, o poeta e escritor Louis-Antoine de Caraccioli (1719-1803) escreve: “Só os franceses é que sabem passear a pé e que fizeram dessa inocente recreação um espetáculo dos mais divertidos e curiosos”. Com essa mudança, a caminhada urbana passa a servir como diversão – e também para fazer bem à saúde. Os livros de medicina da época difundem a idéia de que andar é saudável. O estímulo médico ao “caminhar” e ao “ter uma vida mais ativa” provoca mudanças na moda, com a criação de vestidos de tecidos mais leves e que favorecem os movimentos. Os saltos dos sapatos, por exemplo, diminuem em 5 centímetros a partir de 1780.

A transformação dos locais de passeio contribui para essas mudanças. No fim do século 17, o rei Luís 14 ordena a destruição das muralhas de proteção edificadas nos limites da cidade, tornadas desnecessárias desde que a linha de defesa militar prioritária passou a ser a fronteira do país. Os muros são substituídos por largas avenidas retilíneas, margeadas de árvores, que separam a área dos pedestres da ocupada pelas charretes. Diferentemente dos jardins, os novos boulevards são abertos para a cidade, de forma que, nesse momento, o plebeu e o senhor passeiam em total igualdade de condições. “A transformação desse espaço se torna verdadeiramente uma das condições da gênese do passeante”, escreve Laurent Turcot.

Os boulevards multiplicam a abertura de ruas adjacentes. Em 1670, a largura dessas alamedas é estabelecida por lei em 30,4 metros. Em 1783, é fixada a largura mínima de 9,75 metros para as ruas de Paris – antes, elas mediam entre 2 e 6 metros. A iluminação dos boulevards, feita por candeeiros a óleo introduzidos no século 18, torna o espaço mais seguro e prolonga o tempo disponível ao passeio. A administração pública edita regras para priorizar o pedestre em detrimento da charrete, como a limitação da velocidade dos cavalos (medida pelo trote e pelo galope). Em pouco tempo, a novidade se integra à cidade, funcionando como via de circulação e de passeio público.

Champs-elysées

Outro espaço importante para a formação do passeante de Paris são os Campos Elíseos, hoje a célebre avenida de Champs-Elysées. Projetados no século 17, inicialmente como uma continuidade do jardim das Tulherias, com o tempo se tornaram um passeio público independente (o que foi promulgado oficialmente em 1769). Os Campos Elíseos e os boulevards revelam algumas semelhanças: foram criados na mesma época, 1667 e 1670, respectivamente; pelo mesmo homem, Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), ministro de Luís XIV; e possuem alamedas de medidas similares. Uma das diferenças é que na época, ao contrário dos boulevards, os Campos Elíseos não apresentavam uma população residente e comerciante. Mas sua popularidade como passeio público é comprovada. Em dias de festa ou nos domingos, de 12 mil a 15 mil pessoas se deslocam em caminhadas entre o jardim das Tulherias e os Campos Elíseos.

Os guias de viagem também cumprem um papel decisivo na descoberta e na utilização do espaço urbano pelo caminhante. Com nove edições entre 1684 e 1752, o guia Descrição da Cidade de Paris, do escritor e arquiteto Germain Brice (1625-1727), inova ao cruzar informações estéticas e práticas em um livro de dois volumes em formato reduzido, que pode ser levado para consulta no decorrer da caminhada. Com isso, pela primeira vez, a descoberta da cidade é associada a um deslocamento individual em seqüência planejada. No Almanaque do Viajante (1781), o artista Luc-Vincent Thiery (1734-1811) coloca o boulevard parisiense como o grande passeio da moda, depois dos jardins das Tulherias, do Luxemburgo e do Palais-Royal. Nos Números Parisienses, o médico e escritor François-Amédée Doppet (1753-1799) aponta as ruas da capital como espaços de passeio: “Há bairros em Paris nos quais não se ouvem mais ruídos que no campo; não se vê jamais a confusão dos veículos, e as crianças, assim como os velhos, podem passear sem perigo”.

À parte os guias, no gênero literário, os escritores Louis Sébastien Mercier (1740-1814) e Nicolas Edme Réstif de la Bretonne (1734-1806) são, segundo Laurent Turcot, modelos exemplares da figura do caminhante. O primeiro é o autor de Tableau de Paris, editado em 1781, e o segundo escreveu Les Nuits de Paris, obra publicada em 12 volumes, de 1781 a 1788. Para Mercier, o aspecto físico da cidade ajuda a avaliar as influências que suas transformações provocam em seus habitantes. “O olho possui oito músculos”, diz, e é preciso observar para poder julgar. Paris é feita “para interessar vivamente o homem sensível e o homem observador. Que quadro para um pintor! Que narrativa para um filósofo! Que instrução para um homem da lei!”

La Bretonne escreve: “Erro nas ruas solitárias. Eu errava só para conhecer os homens”. O vagar curioso lhe serve de base para a descoberta da cidade. “Eu me extravio, me perco nessa cidade imensa”, reforça Mercier. Nas peregrinações da dupla de escritores observadores-caminhantes, o espaço não é ficção, mas real, e o leitor é entregue à geografia urbana e às visões particulares de Paris. Caminhar serve para apreender a cidade. Mais do que isso: para o historiador e professor Laurent Turcot, o andarilho estabelece uma atividade dinâmica que é essencial para a vida urbana. Caminhar provoca o espírito, estimula a inteligência e, por fim, acaba definindo a própria cidade.

Pensadores pioneiros

Dois filósofos influenciaram o surgimento dos caminhantes solitários

Charles Baudelaire é famoso por sacramentar o mito do flâneur, mas antes dele dois grandes filósofos franceses defenderam o caminhante solitário: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Denis Diderot (1713-1784). Laurent Turcot aponta a importância de Rousseau por defender que o homem, para retornar a seu estado natural, deve estar em comunhão com seus mais profundos sentimentos interiores. “Nunca pensei tanto, existi tanto, vivi tanto, tanto fui eu, se assim ouso dizer, como nas coisas que fiz só a pé. A caminhada tem algo que anima e aviva minhas idéias; já não posso quase pensar quando estou parado; é preciso que meu corpo esteja em movimento para que invista meu espírito”, escreveu ele em seu livro Confissões. Mas o filósofo defende a caminhada longe das cidades. A contemplação filosófica, para ele, está relacionada às paisagens do campo. Já Diderot argumenta a favor do perambular urbano. Em Sobrinho de Rameau, ele escreve: “Que faça sol, que faça chuva, é meu hábito ir às 5 horas da tarde passear no Palais-Royal. Sou eu que se vê sempre só, sonhando no banco d’Argenson”. Para Laurent Turcot, somados, os dois são fundamentais na gênese do caminhante urbano. “Diderot funda, com Rousseau, uma estética da caminhada que define o olhar do filósofo para seus semelhantes”.

A obra

Le Promeneur à Paris au XVIII Siècle, Laurent Turcot, Gallimard

26,50 euros