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Descubra os bastidores da vida política de Tancredo Neves

O embaixador Rubens Ricupero revela os bastidores da jornada diplomática que o presidente eleito cumpriu antes de morrer. E apresenta um "ser humano que não era perfeito", preocupado com o que enfrentaria no Brasil

Regina Echeverria Publicado em 01/03/2012, às 16h20 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

O embaixador Rubens Ricupero fez parte da pequena comitiva que testemunhou a única performance de Tancredo Neves como presidente do Brasil. Eleito pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, mas não empossado, ele viveu por 12 dias no exterior o que poderia ter sido, caso uma anunciada diverticulite não tivesse se transformado na tragédia que lhe tirou a vida em 21 de abril. Foi o chamado "momento Tancredo", que Ricupero acompanhou como assessor especial e transformou no livro recém-lançado Diário de Bordo - A Viagem Presidencial de Tancredo. Ele anotou suas impressões (numa agenda que a Editora Abril distribuía como presente), dia a dia, da passagem do presidente por Portugal, Itália, França, Espanha, Estados Unidos, México e Argentina entre 26 de janeiro e 6 de fevereiro. Guardou o relato por 25 anos e apresenta um Tancredo pouco afeito à política exterior, preocupado com o que teria de enfrentar no Brasil e sem sinais da doença que mudaria o rumo da História. Um homem formal, embora revelasse jovialidade e simpatia aos 75 anos.

Por que a demora em lançar o livro?

Uma das razões é que, apesar da certeza de que Tancredo sai engrandecido do livro, a imagem que descrevo dele é de um ser humano que não era perfeito. Por exemplo, em política exterior, ele não estava muito familiarizado, precisava ser atualizado. Não era o interesse predominante dele. Ao contrário de (José) Sarney, que sempre gostou das Nações Unidas, Tancredo era focado em economia e administração. Uma vez o Mário Berenguer, grande engenheiro que foi presidente da Eletrobrás e trabalhou no governo de Minas, me disse: "Tancredo foi o único político em toda a minha vida com quem trabalhei que sabia ler um balanço e fazer as perguntas pertinentes". Porque ele foi diretor da Carteira de Redesconto do Banco do Brasil, presidente do Banco do Brasil e presidente do BNDE, que na época não tinha o S. Então ele tinha o treinamento de banqueiro, era capaz e gostava de economia, negócios, administração, financiamento de pontes, de rodovias, de usinas. Para ele, o principal eram os assuntos internos.

Qual a sua postura diante das informações que detinha?


Fui muito fidedigno ao que aconteceu. Até hoje, estou convencido de que Tancredo teria feito diferente, uma presidência provavelmente melhor do que o Sarney e por várias razões, independente da comparação entre eles. Tancredo tinha dois atributos que o vice não possuía, um é que era respeitado no MDB, era mais antigo do que Ulysses (Guimarães). Tancredo e Ulysses eram veteranos do antigo PSD, nos anos 1950, no tempo que o Sarney era da UDN. Ulysses, portanto, sempre achou o Sarney um usurpador. No fundo, embora não dissesse, achava que ele tinha tomado o lugar que lhe pertencia. Tinha sido o chefe da oposição, combateu os militares, ele foi quem enfrentou os cães policiais e, de repente, as coisas acontecem: vem um político que tinha sido presidente da Arena e toma conta.

Qual seria o segundo atributo?


Tancredo Neves tinha condições de discutir com os melhores economistas de igual para igual.

A comitiva do presidente consultou os relatos da viagem de Juscelino Kubitschek antes de deixar o Brasil. O que vocês encontraram?

Não tinha nada. Era uma coisa muito burocrática. Quando eu soube disso pelo embaixador Paulo Tarso (Flecha de Lima), resolvi me encarregar de fazer todas as anotações dos detalhes da viagem. Eu tinha recebido de presente uma agenda da Editora Abril, com capa vermelha, cheia de arvorezinhas, e achei perfeita para o trabalho. Passei a anotar todos os dias, passo a passo, os compromissos de Tancredo, além de um pequeno resumo do que havia se passado.

Vocês foram os primeiros a ter contato com o presidente eleito. Como ele lhes pareceu na viagem?


Tancredo era jovial, muito simpático. Agora, era um homem de outro tempo, usava gravata mesmo no avião. Ele era mais formal que os militares, não do que o (Ernesto) Geisel, mas certamente mais do que o (João Batista) Figueiredo. E a comitiva era pequena.

Ele estava estimulado com seu próprio futuro no comando do Brasil?


Eu penso que ele estaria estimulado por tudo aquilo que aconteceu, pela vitória, ele saindo como presidente e preocupado talvez não com aquelas questões que iria discutir, mas com o que iria resolver aqui depois. Estava perfeitamente consciente da dimensão do trabalho que enfrentaria. Agora, era alguém que sabia ser capaz de enfrentar os problemas. Tinha uma presença de espírito muito grande. Mas acho que havia uma expectativa exagerada porque o país não crescia havia muito tempo e era difícil satisfazer a essa expectativa. Tinha o problema da inflação, da dívida externa.

O encontro com a Santa Sé não foi lá grande coisa...

Foi curioso porque o Tancredo era um homem sinceramente católico, tradicional, mas ele não imaginava que esses cardeais eram ainda do tempo em que ele era menino. Eram muito conservadores. Depois de ser recebido pelo papa João Paulo II (ele não nos contou o teor da conversa), foi recebido pelo cardeal (Agostino) Casaroli, secretário de estado do Vaticano. Foi quando Tancredo falou de sua devoção por Nossa Senhora Aparecida e de sua inquebrantável adesão à Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ele usou todas aquelas expressões que se usavam antigamente. E disse: "O povo brasileiro é um povo católico". O velho cardeal secretário de estado ouviu tudo com atenção e, na mesma nota de unção e formalismo, replicou usando palavras parecidas, mas se encaminhando a uma conclusão bem diferente: "Senhor presidente, tenho a certeza de que o Santo Padre terá acolhido com grande alegria esse fervoroso testemunho de filial devoção do querido povo brasileiro, tão próximo do coração do Santo Padre. E terá certamente comentado com vossa excelência que, juntamente com a satisfação pela fidelidade desse povo à Santa Igreja, é preciso nunca esquecer que a fé profunda e a religiosidade são sempre admiráveis, mas não bastam. É necessário igualmente agir para mudar a situação, para melhorar as condições de vida do povo, não só resignar-se. É preciso realizar a reforma agrária e as demais reformas sociais aconselháveis". Senti que o doutor Tancredo não esperava por esse tipo de resposta. Sua intenção tinha sido positiva.

O senhor não notou nada de anormal quanto à saúde do presidente eleito?

Tancredo comia mais do que eu, bebia vinho, gostava. E comia coisas pesadas. Feijoada, por exemplo. Você não notava nada de anormal nele. Andava, tinha boa energia e você não percebia. Na verdade, diverticulite não mata ninguém. Não é um tumor. Acredito que ele foi vítima daquela loucura que se transformou sua doença. A começar com 40 pessoas numa sala de cirurgia. Onde é que se viu uma coisa dessas? Só por milagre ele teria sobrevivido. Era o problema daquele vácuo de poder. Não tinha ninguém mais que mandava. Nem o governo que entrava. Não havia alguém que desse um grito e acabasse com aquilo.

Mas comenta-se que ele passou mal na Europa. Vocês não perceberam nada mesmo?


Eu não percebi e posso dizer que acho difícil. Em Roma, o que houve foi que dona Risoleta (primeira-dama) teve um ataque de bronquite, que eu até falo no livro. Tanto que ela não foi para Biarritz. Ficou em Roma. Pode ser que o fato de que tenha se chamado um médico no hotel a posteriori tenha alimentado essa informação, mas eu não percebi. Depois da morte de Tancredo, quando eu já era subchefe da Casa Civil, cujo titular era o José Hugo Castelo Branco, nós comentamos essa possibilidade. E o José Hugo me contou que efetivamente Tancredo tinha muito receio de os militares não darem posse a José Sarney. Eu não podia acreditar nisso, mas, para minha surpresa, o José Hugo confirmou. Tancredo tinha realmente esse temor. (Em entrevista a AVENTURAS, Aécio Neves, ex-governador de Minas Gerais, não só confirmou o receio do avô, como afirmou que ele apresentava fortes dores abdominais desde junho de 1984. Também Sarney disse que Tancredo teve uma crise durante o voo entre Espanha e Estados Unidos e uma ambulância chegou a ser colocada à disposição no aeroporto de Nova York. Na mesma reportagem, publicada na 20ª edição, de abril de 2005, há o registro das diferentes versões apresentadas sobre o mal que acometeu o presidente. O médico Élcio Miziara, que assinou o laudo sobre o divertículo extraído na primeira cirurgia de Tancredo após a internação, admitiu que o material era, na realidade, um tumor benigno. O atestado de óbito cita o mioma e a septicemia - infecção generalizada - como causa da morte.)

Na foto de capa do seu livro, Tancredo aparece com dona Risoleta descendo do avião na chegada a Washington. Aconteceu algo interessante naquele voo?

Ele se escondeu atrás de um jornal e não conversou com o embaixador americano, que estava ao lado. Eu achei estranho. Estávamos no avião oficial que serve ao vice-presidente americano (então George Bush pai). Fiquei na cabine principal, ao lado de Paulo Tarso e Aécio, num banco horizontal ao longo da parede do avião e diretamente em frente a Tancredo, sentado numa mesa, tendo, do outro lado, Tony Motley (nascido no Rio de Janeiro e falando português fluentemente, tinha sido o embaixador dos Estados Unidos no Brasil e era o subsecretário para Assuntos Hemisféricos do Departamento de Estado) e o embaixador do Brasil em Washington, Sérgio Corrêa da Costa. Pude observar bem o presidente eleito, que, ou por querer evitar conversas embaraçosas com seus acompanhantes, ou por falta de disposição, se refugiou na leitura, primeiro do Washington Post (como a imensa maioria dos brasileiros de sua geração, o doutor Tancredo se sentia muito mais à vontade com o francês do que o inglês. Lia inglês com certa dificuldade). Felizmente, logo veio alguém em seu socorro, trazendo a sinopse de notícias do Brasil, que leu e releu como quem interpreta um texto bíblico, confirmando que ou estava muito cansado da viagem, ou pouco disposto a conversar.

O presidente Ronald Reagan surpreendeu a todos no encontro?

Ele apareceu maquiado com ruge, já que era ator. Por isso, ele era bonito assim, todo vermelhinho. O Sarney ficaria horrorizado porque ele estava de marrom da cabeça aos pés. O senador tem horror a marrom.

Em Portugal, Tancredo fez um discurso exagerado?


Ele disse: "Todo brasileiro quando acorda tem dois pensamentos, um para Deus e outro para Portugal". Ele tinha essa oratória exagerada, que era um pouco o espírito da geração dele. Para eles, a diplomacia era a evocação sentimental dos laços com Portugal, quando na verdade todos os brasileiros que tiveram de ir para lá você viu como foram tratados.

Há poucas referências à intimidade de Tancredo no livro, mesmo porque o senhor conta que ele só usava terno e gravata e deveria botar um pijama para dormir. Mas isso é o que o senhor imaginava...
Sabe por quê? Aí é bom também ser fidedigno. Eu tinha uma boa proximidade com ele nesse terreno intelectual, mas quem era íntimo mesmo era o Aécio Neves. O Aécio era menino, mas era de fato quem estava com o avô e com a avó o tempo todo. Em segundo lugar, era o Paulo Tarso Flecha de Lima, porque era mineiro, era amigo da família. Eu nunca fui daquele grupo. Estava lá mais pela contribuição intelectual.


Saiba mais


LIVRO

Diário de Bordo - A Viagem Presidencial de Tancredo, Rubens Ricupero, Imesp, 2010
O relato do assessor especial do presidente eleito.