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Matérias / Ditadura militar brasileira

Ameaças de estupro, agressões e prisão com cobra: as torturas sofridas por Miriam Leitão

Presa durante a ditadura militar, enquanto estava grávida de apenas um mês, aos 19 anos, a jornalista teve cruéis momentos de sua vida ironizados por Eduardo Bolsonaro

Fabio Previdelli | @fabioprevidelli_ Publicado em 09/04/2022, às 00h00

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Miriam Leitão quando foi presa, em 1972 - Divulgação: Pedro Ladeira / Arquivo pessoal
Miriam Leitão quando foi presa, em 1972 - Divulgação: Pedro Ladeira / Arquivo pessoal

Nos últimos dias, o deputado federal Eduardo Bolsonaro gerou uma enorme polêmica nas redes sociais. Ao compartilhar uma publicação da jornalista Miriam Leitão, na qual ela divulga sua coluna de domingo para o jornal O Globo, onde discute: “Qual é o erro da terceira via? É tratar Lula e Bolsonaro como iguais. Bolsonaro é inimigo confesso da democracia”, o parlamentar ironizou o fato de Leitão ter sido torturada durante a Ditadura Militar: “Ainda com pena da [emoji de cobra]”.

No dia 4 de dezembro de 1972, Miriam, então com 19 anos e grávida de apenas um mês, foi presa e torturada no quartel do Exército em Vila Velha, cidade próxima à capital Vitória, no Espírito Santo. 

Durante cerca de três meses, Miriam sofreu os mais diferentes tipos de atrocidades, inclusive ser deixada nua em uma sala escura onde havia uma cobra. Militante do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) à época, a jornalista demorou 42 anos para reviver seus traumas e contar tudo o que sofreu nos porões da Ditadura em entrevista ao jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha. Os relatos de Leitão foram publicados pelo Observatório da Imprensa em 2014. 

“Eu morava numa favela de Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para ir à praia do Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na Prainha”, recordou sobre o dia em que foi presa. 

Na ocasião, Miriam relembrou que estava prestes a completar um ano de profissão, trabalhando na redação da rádio Espírito Santo. O dia parecia normal, mas tudo mudou quando os dois ouviram: “Ei, Marcelo?".

Nos viramos e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci um rosto que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em frente à sede da PF e eu tentava guardar os rostos”, disse ela. 

Reconhecendo que eram agentes da Polícia Federal, a jornalista chegou a alertar o companheiro, mas, em instantes, se viu cercada por mais homens que apareceram em um carro. 

Algemados, Marcelo foi empurrado até um camburão, uma caminhonete Veraneio, sem placa de identificação. Leitão, por sua vez, diz que teve uma reação “curiosa” ao ser detida. "Antes que me empurrassem sentei no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca gente circulando. Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances eu teria de sair viva".

Porém, os gritos só serviram para os agentes agirem de forma mais truculenta. Puxando a jornalista pelos cabelos, ela foi imobilizada para ser levada até o carro. Questionando se os policiais possuíam uma ordem de prisão para levá-la, um dos oficiais colocou uma metralhadora em seu peito: "Esta serve?".

A jornalista Miriam Leitão/ Crédito: Marcos Corrêa via Wikimidia Commons

"As algemas eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso. Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo. Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas. Achei que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo", revela. 

Mas Miriam estava enganada. Ao chegarem no pátio do quartel, no batalhão de infantaria, os dois foram separados. “Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e eu o meu. Sobre mim jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam ainda mais enfurecidos quando os soldados gritavam: ‘Terrorista, terrorista!’”.

A prisão de Amélia

A jornalista conta que só entendeu o motivo de sua prisão quando os soldados começaram a cantar uma canção de Ataulfo Alves: “Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”.

Miriam conta que Amélia era o codinome que havia recebido por seu chefe de ala do PCdoB — alcunha que ela nunca gostou muito, mas que preferiu não discordar. À época, o batalhão para qual Miriam foi mandada era comandado pelo tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira.

No entanto, ela aponta que o oficial não era a verdadeira voz de autoridade do local. “O homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado. Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei”.

Manifestação contra a ditadura militar no Brasil/ Crédito: Divulgação/Domínio Público

Levada a uma enorme sala vazia, sem móveis e com as janelas tampadas com plástico preto, Leitão conta como foi os primeiros momentos de abuso que viveu. “Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos”.

Constrangida e já completamente nua, a situação ficou ainda mais tensa quando foi ordenado que 10 soldados entrassem na sala. Leitão recorda que foi ameaçada pelo homem de cabelo preto, que chegou a ameaçá-la ao dizer que poderia ordenar que “todos eles para irem para cima de você”. Dizendo que quando tudo começasse, não existiria “volta”. “Quando começamos, vamos até o fim”. 

Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras”, recorda. 

Dividindo cela com uma cobra

Após os homens saírem, Miriam recorda que o homem de cabelo preto que a ameaçou foi chamado por alguém de Dr. Pablo. Quando ele retornou à cela, porém, o medo se tornou ainda maior. 

Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá”, revela. 

Sabendo que o animal é atraído pelo movimento, Miriam diz que ficou em silêncio, estática e que mal respirava. “Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía”. 

Imagem de manifestantes durante o período militar/ Crédito: Wikimedia Commons

Por conta do quarto escuro, Leitão aponta que não sabe quanto tempo ficou naquela sala sozinha e nua. Com o medo de não saber por onde a cobra estava, aponta que não era possível nem mesmo chorar, visto que poderia atrair o animal. 

“Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino”, diz. 

Após ser interrogada e sofrer outras agressões, a jornalista relembra que bateu com a cabeça tão forte na parede após sofrer um ataque que começou a sangrar na nuca e que o sangue molhou todo o seu cabelo. Incerta em relação sobre se alguém sabia o que havia acontecido com ela, Miriam diz que, depois de três dias que ela estava presa, seu pai recebeu uma ligação anônima avisando sobre sua condição. Ele só conseguiu encontrá-la no fim daquele mês.  

“Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico”, recorda. 

A luta pela vida 

Entretanto, essa preocupação tomou conta da jornalista depois que ela saiu. Quando estava presa, sua obsessão era outra: sobreviver. “Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror e de intimidação”.

Após voltar a se encontrar com Dr. Pablo, Miriam diz que foi constatemente ameaçada de estupro e morte. Após os dois dias de interrogatórios, aponta que passou pelo maior momento de dúvida sobre se aqueles seriam seus últimos dias com vida ou não. 

“Um dia achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento", relata.

Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: ‘Eu sou muito nova para morrer. Quero viver’”.

As ameaças de estupro e a liberdade

Um dos episódios de mais tensão que viveu aconteceu quando foi levada para ser interrogada na sala do capitão Guilherme, onde sofreu novas ameaças de estupro. “Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo”.

Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro”, completa. 

Miriam relembra que as três primeiras semanas na prisão foram as mais terríveis, mas as coisas começaram a melhorar quando Pablo e seus dois outros companheiros voltaram para o Rio de Janeiro. 

“Até que chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu pensava estar morto”, recorda. 

Após os militares saírem da sala, ela se aproximou de Marcelo para conversarem, mas logo ele fez um sinal para que ficassem em silêncio. Ao levantar um quadro pendurado em uma parede, Marcelo lhe mostrou uma fiação cheia de microfones. O quarto estava grampeado. 

Marcelo acabou sendo levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, onde ficou por nove meses numa solitária. “Sem banho de sol, sem nada para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer”, diz a jornalista. 

“Nós, todos os presos, e os que já estavam soltos nos encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que eles chamam de sumário de culpa, o único momento em que o réu fala. Eu com uma barriga de sete meses de gravidez. O processo, que envolvia 28 pessoas, a maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Ao fim, eu e a maioria fomos absolvidos”, conta Leitão.

Marcelo acabou sendo condenado a um ano de cadeia. “Nunca pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram”, continua Miriam

Sobrevivente dos horrores da tortura militar, Miriam Leitão acabou dando luz à Vladimir em agosto. Seu filho nasceu forte e saudável e hoje é pai de duas meninas: Manuela e Isabel. Pouco depois, a jornalista voltou a engravidar, desta vez de seu caçula, Matheus, pai de outros dois netos da jornalista: Mariana e Daniel. “Eles são o meu maior patrimônio”.

“Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país”, completa Leitão.


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