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Matérias / Ucrânia

Como a herança da União Soviética se relaciona com a guerra na Ucrânia

Para entender a origem do conflito, é necessário olhar para o passado

Ricardo Lobato* Publicado em 09/04/2022, às 06h00

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Exibição exalta o Exército Vermelho Soviético na libertação da União Soviética em Kiev, Ucrânia - Getty Images
Exibição exalta o Exército Vermelho Soviético na libertação da União Soviética em Kiev, Ucrânia - Getty Images

A Rússia entrou enfraquecida no século 20. Mesmo com o fim da servidão, as desigualdades sociais eram latentes e a economia ia de mal a pior.

A defasagem industrial em relação à Inglaterra e Alemanha colocava a potência em um assento menor na geopolítica mundial e, para piorar, o czar Nicolau II havia herdado precocemente o trono e não sabia como usar todo o poder que detinha em suas mãos.

Nicolau II /Crédito: Divulgação / Klimbim

Além de ser malvisto pela população – em mais de uma oportunidade fez com que as tropas disparassem contra manifestantes pacíficos –, a derrota para o Japão na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e o sofrimento imposto ao povo pelas duras condições da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), cobraram seu preço.

Em fevereiro de 1917, veio a primeira revolução e, oito meses depois, a segunda e definitiva, o chamado Outubro Vermelho. Inspirados pelos escritos socialistas de Karl Marx, os revolucionários mudaram a história da Rússia e consequentemente do mundo. À frente do processo estava Vladimir Ilyich Ulyanov, ou Lenin.

Lenin /Crédito: Divulgação / Klimbim

Com a Revolução e a Guerra Civil (1917-1922) que se seguiu, boa parte do que era o Império Russo se viu mergulhado no caos e dividido entre se tornar independente ou se sujeitar aos novos senhores que prometiam igualdade e poder aos sovietes. Na Ucrânia não era diferente.

Segundo o historiador e professor Paul Kubicek em The History of Ukraine (A História da Ucrânia, em tradução livre), várias entidades que aspiravam a estados ucranianos independentes surgiram entre 1917 e 1920, durante sua breve independência.

“Este período, no entanto, foi extremamente caótico, caracterizado por revolução, guerra civil e internacional e falta de uma autoridade central forte. Em última análise, a independência ucraniana durou pouco porque a maioria das terras do país foi incorporada à União Soviética e o restante, no oeste, foi dividido entre a Polônia, a Tchecoslováquia e a Romênia”.

Depois da Guerra Civil, quem sucedeu Lenin foi Joseph Stalin, o “Czar Vermelho”. Enquanto Lenin era mais pragmático, Stalin não media esforços na hora de conseguir resultados.

Justamente por isso, e sabendo da importância estratégica da Ucrânia (não apenas geográfica, mas como “grande celeiro”) para a Rússia, na hora de empreender as mudanças que colocariam a União Soviética no século 20, o país estava no centro de seus planos.

Coletivização das fazendas

No início da década de 1930, a campanha de coletivização das fazendas promovida pelo líder soviético produziu uma grande fome que provocou a morte de milhões de ucranianos – este período ficou conhecido como Holodomor.

Este episódio ainda está vivo na memória dos ucranianos, e foi uma das razões pelas quais muitos lutaram ao lado dos alemães quando Hitler invadiu a União Soviética em 22 de junho de 1941, fazendo com que o avanço nazista na Rússia fosse mais rápido pelo sul.

Hitler /Crédito: Getty Images

Mas, ainda que alguns tenham se aliado aos invasores, havia um grande contingente ucraniano nas tropas soviéticas. Vários marechais e generais de Stalin eram de origem ucraniana e o país sofreu bastante durante a ocupação alemã.

Alguns dos combates mais mortíferos da frente oriental, aliás, foram travados em seu território e, na batalha final na capital do Reich, boa parte do Exército Vermelho era composto de ucranianos.

Com a conquista de Berlim em maio de 1945, o leste da Europa e metade da Alemanha estavam agora na mão dos russos. O premiê soviético conseguira expandir as fronteiras, deixando as demais potências do continente bem longe da Rússia.

Depois da guerra, Stalin importou um grande número de russos e outros cidadãos soviéticos para ajudar a repovoar o leste. Muitos não falavam ucraniano e tinham poucos laços com a região. A manobra não foi aleatória.

Ombro a ombro

Antevendo o que poderia ser um renascimento do nacionalismo ucraniano, visto que haviam lutado ombro a ombro com os camaradas russos no Exército Vermelho, o governante repetiu a técnica que, antes dele, os czares já haviam utilizado.

Ao assentar “russos étnicos” na Ucrânia, buscava “russificar” a região. Outras partes da União Soviética experimentaram algo semelhante. A divisão que existe no atual conflito entre as regiões pró-Rússia e as que se identificam mais com um sentimento nacional ucraniano é, em parte, fruto desta manobra de Stalin.

Outra herança dos tempos soviéticos é o fato de o leste ter mais indústrias que o oeste. Os líderes no Kremlin revitalizaram o país e fomentaram sua economia, tornando-a, inclusive, mais pujante do que era antes da guerra.

Mas foram cautelosos em desenvolver a infraestrutura ucraniana do lado mais próximo da Rússia. Nos anos da Guerra Fria, a Ucrânia estava no centro do mundo soviético, perdendo em importância apenas para a própria Rússia.

Depois da morte de Stalin, com a chegada de Nikita Khruschev ao poder (que possuía ascendência ucraniana), o país recebeu de volta a região da Crimeia, em 1954. A entrega foi extremamente contraditória – inclusive do ponto de vista do Direito Soviético – e a data escolhida não foi casual.

Para fomentar a “amizade russo-ucraniana”, Khruschev devolveu a Crimeia no aniversário de 300 anos do Tratado de Pereslávia – 60 anos depois, porém, nos desdobramentos da Revolução da Dignidade (2013-2014), a Rússia (re)anexou a península.

Nas décadas seguintes da Guerra Fria, a relação entre os dois países foi calma até a explosão do reator nuclear de Chernobyl (na Ucrânia), em 1986, quando a liderança ucraniana começou a se distanciar de Moscou, culminando na independência em 1991.

A nova ordem mundial

Na noite de 9 de novembro de 1989, aconteceu o que nem o mais ferrenho opositor do regime soviético podia imaginar: caiu o Muro de Berlim, a barreira física que simbolizava a divisão entre o leste e o oeste, entre o socialismo e o capitalismo.

Em pouco tempo, todo o bloco soviético se desintegrou, a Alemanha se reunificou e, finalmente, em 25 de dezembro de 1991, a União Soviética sumiu do mapa, dando origem a 15 novos Estados, entre eles a Rússia e a Ucrânia.

Este episódio repercute até hoje e já foi chamado pelo atual presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, de “maior catástrofe geopolítica do século 20”. A origem do conflito russo-ucraniano de 2022 pode ser traçada até a formação dos dois povos, com Rurik e o rus, no entanto, os problemas atuais são também uma consequência direta do fim da Guerra Fria.

Guerras são fenômenos humanos e são grandes marcos da História, mas, enquanto os mongóis foram derrotados em combate, Napoleão capitulou em Waterloo e a Alemanha se rendeu incondicionalmente, os russos nunca perderam no campo de batalha.

Um capítulo de algo maior

O conflito direto entre Estados Unidos e União Soviética nunca aconteceu, e a Rússia, além de ter herdado porção significativa das terras da antiga URSS, também manteve seu arsenal nuclear. Politicamente esgotados, economicamente quebrados, mas militarmente invictos.

Enquanto a Ucrânia experimentou em 1991, pela primeira vez, uma independência de fato, a Rússia viu seu status de potência desaparecer, mas sem perder seu poderio. No mundo que começou com o fim da Guerra Fria muito se especulou que fosse o “fim da História”.

Mas, como podemos observar agora, não foi o fim, e sim um capítulo de algo maior. A prosperidade por meio do comércio fez com que a Rússia ressurgisse como um grande ator internacional, enquanto a Ucrânia alternou momentos de flerte com Moscou e outros com Bruxelas.

Tudo o que se sucedeu desde então, Euromaidan (2013-2014), (re)anexação da Crimeia e finalmente a guerra que vemos, são frutos de uma longa história e de um mundo em reconcerto.

A expansão da OTAN – a organização militar da Guerra Fria para fazer frente à “ameaça comunista” – para leste, mesmo depois do fim do “Império Vermelho”, explica em parte a obsessão de Moscou com a Ucrânia.

Como explica Tim Marshall, “Vladimir Putin diz ser um homem religioso, um grande apoiador da Igreja Ortodoxa Russa. Nesse caso, ele pode muito bem ir para a cama todas as noites, fazer suas orações e perguntar a Deus: ‘Por que não colocou montanhas no leste da Ucrânia?’ Se tivessem montanhas no leste da Ucrânia, então a grande extensão que é a planície europeia não teria sido um território tão convidativo para os invasores que atacaram a Rússia de lá repetidamente ao longo da história.”

A origem do atual conflito é um lembrete de que a História da humanidade é a história de ascensão e queda de grandes potências. O mundo unipolar do fim da Guerra Fria entrou em declínio e novos (velhos) atores, como União Europeia, Turquia, Irã, Arábia Saudita e tantos outros, buscam se afirmar na nova geopolítica global.

Neste novo capítulo da história humana, a Rússia deu o primeiro passo, mas não podemos esquecer que tudo começou com Rurik e os varegues buscando o caminho para uma antiga rota de mercadores. Tampouco que a Ucrânia é uma porta do comércio da Ásia para a Europa. E que o novo século olha para o Oriente, para a origem da Rota da Seda: para a China.


*Confira a primeira parte da reportagem aqui: Como o passado ajuda a entender a origem da guerra na Ucrânia.


Ricardo Lobatoé Sociólogo e Mestre em economia pela UNB, Oficial da Reserva do Exército brasileiro e Consultor-chefe de Política e estratégia da Equibrium — Consultoria, Assessoria e Pesquisa.