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Matérias / Religião

Como o cristianismo conquistou o coração do mundo antigo?

Entenda de que maneira a religião se expandiu no passado, disseminando os ensinamentos

Arquivo Aventuras na História Publicado em 28/11/2021, às 12h00 - Atualizado em 05/04/2023, às 16h52

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Imagem meramente ilustrativa de estátua de Jesus - Divulgação/ Pixabay/ pixel2013
Imagem meramente ilustrativa de estátua de Jesus - Divulgação/ Pixabay/ pixel2013

No século 1, quando o Império Romano estirava seus domínios por toda a costa do Mediterrâneo, uma pequena comunidade de pobres e marginalizados começou a florescer no Deserto da Galileia. Eles viviam numa espécie de comunismo, distribuindo roupa, remédios e comida a quem necessitava. E seguiam à risca o espírito de caridade e amor ensinado por seu mestre, Jesus de Nazaré.

A Palestina vivia um período conturbado. Em meio à crescente hostilidade romana, profetas judeus cruzavam o deserto anunciando que o Reino de Deus estava próximo. Jesus foi um deles. Sua procissão irrompeu em Jerusalém ao redor do ano 30 e chamou a atenção de Roma, que via esse tipo de atitude como afronta ao seu poder.

Jesus recebeu a pena capital mais degradante que os romanos impunham aos rebeldes: a crucificação. Mas seus seguidores se convenceram de que ele havia ressuscitado da tumba. E decidiram espalhar a fé em Cristo, o Messias, que em breve voltaria para julgar a humanidade e inaugurar uma era de paz, igualdade e justiça.

Só que a chance de sucesso deles era praticamente zero. A começar pelo deserto escolhido como palco inicial da missão. Para ter uma ideia, a província da Judeia ficava na periferia do Império Romano.

E a empobrecida Galileia, mais ao norte, era a periferia da periferia. Como esse movimento de excluídos se tornou a religião oficial de Roma? De que maneira o cristianismo conquistou o coração do mundo antigo, que lhe serviu de trampolim para atingir os bilhões de fiéis que tem hoje? É o que veremos nesta reportagem.

Aparecimento de Jesus Cristo a Maria Magdalena (1835) por Alexander Andreyevich Ivanov / Crédito: Wikimedia Commons

Os judeus cristãos

O cristianismo nasceu em meio ao tumulto. Pôncio Pilatos assumiu o governo da Judeia, no ano 26, zombando do monoteísmo judaico. Inclusive espalhou retratos de César por Jerusalém. Isso gerou o temor de um novo ataque ao Templo, que havia sido destruído em 586 a.C. pelo rei babilônio Nabucodonosor. E aprofundou a sensação de apocalipse: os rabinos diziam que um rei da linhagem de Davi inauguraria o Reino de Deus.

Chamavam-no de mashiah (christos, em grego), que significa “ungido”, já que Davi havia sido ungido com óleo. Mas, em vez de se juntar contra os romanos, os judeus estavam divididos em suas próprias seitas. Os saduceus, por exemplo, eram aristocratas e conservadores. Os fariseus, mais populares, eram abertos a ideias novas, como a ressurreição dos mortos e à versão oral da Torá (o livro sagrado judeu).

Os essênios viviam como se o fim dos tempos já tivesse começado: moravam em comunidades isoladas, que faziam refeições em conjunto seguindo estritas leis de pureza. Já os zelotes, mais radicais, defendiam a luta armada contra Roma. Foi nesse clima de confusão que surgiu uma nova facção judaica, a dos seguidores de Cristo.

“A Igreja de Jerusalém não era uma Igreja separada, e sim parte do culto judaico. Não tinha seus próprios sacrifícios nem lugares, momentos sagrados ou sacerdotes”, diz o historiador Paul Johnson no livro 'História do Cristianismo'. “Para muitas pessoas ela era um pouco mais que uma seita judaica piedosa, humilde e inclinada à caridade.”

Assim como os essênios, os judeus cristãos se reuniam para comer e rezar juntos. Pertenciam a camadas sociais empobrecidas, uma espécie de proletários da época. Seu líder era Tiago, irmão de Jesus. Mas essa nova seita estava em perigo, pois podia ser reabsorvida pelo judaísmo ou desaparecer em meio às disputas entre as facções.

Era natural que o movimento se abrisse aos gentios para difundir a fé em Cristo. A pregação dos valores cristãos teve início na Galileia, a terra natal de Jesus, no norte de Israel. Missionários iam ao encontro de necessitados, sem distinguir sua classe ou sua origem. E, além de converter gentios, o movimento também atraiu essênios e fariseus para suas fileiras. Mas alguns proselitistas logo perceberam que não teriam futuro ali. Deveriam ampliar o seu raio de ação se quisessem prosperar.

Mosaico de Jesus Cristo / Crédito: Divulgação/ Pixabay/ Didgeman

As viagens de Paulo

Por volta do ano 50, quase duas décadas após a morte de Jesus, a mensagem cristã ganhou o mundo. E talvez o principal responsável por sua difusão seja Saulo, um homem que não conheceu Jesus, vivia fora da Palestina e falava grego — língua que Cristo provavelmente desconhecia. Oriundo de Tarso (atual Turquia), Saulo parecia destinado a seguir no seio do judaísmo. Havia até perseguido cristãos. Mas se converteu à nova fé supostamente após ter uma visão.

Passou a ser conhecido como Paulo, o apóstolo, e realizou longas viagens ao redor do Mediterrâneo para pregar a crença no Filho de Deus. Enquanto pregava, Paulo escrevia epístolas. Dos 27 livros do Novo Testamento, 14 são atribuídos a ele — embora só sete sejam de sua autêntica autoria. Certo é que converteu multidões e aproximou a fé cristã do centro do Império. O crescimento não era pacífico e houve cismas entre os cristãos.

O grupo de Jerusalém, liderado por Tiago, aproximou-se do judaísmo e do nacionalismo dos zelotes. O grupo da diáspora, de Paulo, não queria se manter atado à busca de um Estado judaico. Paulo era cidadão romano e sabia que o messias judeu nada significava a seus conterrâneos. Por isso, processou o monoteísmo judaico dando-lhe uma feição universal. Em 49, os dois polos se reuniram em Jerusalém para tentar um acordo.

“O Concílio foi um fracasso. Delineou um consenso, mas foi impossível levá-lo à prática”, diz Johnson. Jerusalém via Paulo como um personagem externo. Muitos nem o reconheciam como apóstolo. Tiago morreu em 62. Jerusalém vivia o auge da crise. Em 64, o procurador romano Floro pilhou o Templo e os judeus revidaram atacando a pequena guarnição romana da cidade.

Roma enviou mais tropas, e os zelotes deflagraram uma revolta que durou quatro anos. Em 70, o imperador Vespasiano arrasou o Templo. O historiador antigo Flávio Josefo fala em 1,5 milhão de mortos — um exagero, mas que expressa a dimensão da tragédia. Os judeus nunca reconstruíram o santuário.

“O que assegurou a sobrevivência do cristianismo não foi o triunfo de Paulo, e sim a destruição de Jerusalém — e, com ela, a destruição da fé judaico-cristã”, diz Johnson. Para os cristãos, a tragédia significou que os judeus haviam perdido o elo com Deus.

E eles agora ocupariam esse lugar. “O cristianismo se tornou um partido dos gentios, hostil ao judaísmo”, diz o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira. O legado da mensagem de Jesus — a Igreja de Jerusalém — perdeu força. O sistema paulino prevaleceu. Agora o objetivo era chegar até Roma.

Representação de Paulo de Tarso / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ WIkimedia Commons

Cristãos no Império

O movimento de Jesus com Jesus era uma coisa. Já o movimento de Jesus sem Jesus era outra bem diferente. Para começar, o primeiro grupo falava aramaico e o segundo, grego. Aliás, não era só um grupo, mas uma porção de pequenas comunidades disseminadas pela bacia do Mediterrâneo.

E cada uma delas produzia seus próprios textos sobre Jesus. “Havia uma tradição oral compartilhada em algumas dessas comunidades. Mas os retratos de Jesus — e os relatos sobre o que ele disse e sobre o que ele fez — são muito amplos”, diz André Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Paulo, por exemplo, nunca menciona o fato de Jesus ter feito milagres para curar pessoas. Já os Evangelhos falam que Jesus curou pessoas. E, quando se analisa que curas são essas, as descrições dos Evangelhos são diferentes entre si.”

Ou seja: o movimento de Jesus sem Jesus foi multifacetado. E, por isso mesmo, as relações daquelas comunidades com o Império Romano variaram muito. Parte do mosaico cristão aceitou negociar com os cônsules, procônsules e senadores romanos. Outra se negou a conversar com os representantes do Império.

A parte que negociou levou a melhor: seus escribas decidiram quais livros entrariam para compor o Novo Testamento — daí ser conhecida como “ortodoxia”. Já os cristãos que não quiseram trocar figurinha com Roma ficaram conhecidos como “heterodoxos” ou “hereges”. Eles seriam alvo de perseguição da Igreja Católica nos séculos seguintes.

Com o contato crescente entre a ortodoxia cristã e Roma, o Império começou a assimilar a nova experiência religiosa. Ao mesmo tempo, a ortodoxia incorporou estruturas de organização romanas. Nos séculos 2 e 3, a Igreja já apresentava uma hierarquia. Havia bispos no topo, líderes intermediários e um rebanho de fiéis. Existia também uma clara divisão de gênero, já que a liderança era sobretudo masculina.

“No fundo, o que está sendo dito na época? Que Jesus vai voltar e, enquanto ele não voltar, precisamos existir. Para existir, precisamos deixar o gueto. Então há uma aceitação de todas as injustiças que o mundo apresenta”, diz Chevitarese.

“O Reino de Deus é centrado na justiça social e na participação igualitária de homens e mulheres. Mas, enquanto Jesus não volta, a injustiça e a fome fazem parte deste mundo. E a gente tem que conviver com elas. As hierarquias também fazem parte do mundo. Esse é o processo de negociação.”

Para a ortodoxia, negociar foi uma forma de sobreviver e se multiplicar num ambiente hostil. A bacia do Mediterrâneo estava repleta de religiões de todo tipo. Os cristãos bem que podiam ter suas igrejas, mas volta e meia sofriam discriminação. A doutrina da eucaristia, por exemplo, era vista pelos romanos como canibalismo.

Pregadores rivais da Igreja chamavam cristãos de “malditos” e “conspiradores”. Pior: o movimento de Jesus era alvo de perseguições ocasionais. O bispo Eusébio de Cesarea, um dos primeiros historiadores do cristianismo primitivo, cita uma carta do ano 177 que narra um surto de violência pagã. Segundo o documento, uma “turba enfurecida” torturou e decapitou cristãos, jogando partes de seus corpos às feras.

No final do século 3, contudo, o Estado romano percebeu que era hora de abraçar o inimigo e convertê-lo em aliado. Afinal, a Igreja em boa medida era o espelho do Império: ecumênica, legalista, multirracial e ordenada, com divisões e subdivisões criadas à imagem e semelhança de Roma.

O cristianismo era governado por homens cultos que faziam as vezes de burocratas. E os bispos, assim como os governadores imperiais, tinham amplos poderes para interpretar a lei. A Igreja também lançou mão das dioceses para sua organização. Não é à toa que diocese significa “administração” em grego. Já o termo “Católica” vem do grego katholikos, que significa “universal”. Tal como o império almejava ser.

Representação de Jesus Cristo, líder religioso / Crédito: Wikimedia Commons

O sinal da cruz

Em 312, o imperador romano Constantino marchou com seus soldados para travar um combate contra Magêncio, que queria lhe usurpar o trono. Ao se aproximar da ponte Mílvia, nos arredores de Roma, Constantino teve uma visão. Olhou para o Sol e viu uma cruz logo acima, que dizia: “Com este sinal, você conquistará”.

Naquela noite, Cristo apareceu em seu sonho e lhe explicou que deveria colocar o símbolo nos escudos da tropa. Dito e feito: Constantino pintou a cruz nos escudos e venceu a batalha. Depois se converteu ao cristianismo. Bem, pelo menos essa é a história contada por Eusébio, que acompanhava o imperador. Ninguém sabe se foi esse mesmo o motivo da conversão.

Pode ser que Constantino tenha apenas seguido os passos de sua mãe, Helena, que havia abraçado a fé em Jesus. Supersticioso que era, o imperador talvez tenha decidido cultuar todos os deuses para não irritar nenhum. De fato, mesmo depois de se tornar cristão ele nunca deixou de adorar o Sol.

Hoje, historiadores apontam outra hipótese: a conversão teria sido um ato político. “A parte oriental do Império Romano já era majoritariamente cristã. Assim, Constantino pode ter simplesmente chamado para si essa parte do Império — que era também a mais rica”, diz Chevitarese.

Com o Edito de Milão, em 313, Constantino instituiu a tolerância religiosa. E, mais importante: o cristianismo tornou-se a religião oficial de Roma. “A hierarquia cristã, com seus bispos e presbíteros, tinha um paralelo na estrutura imperial: haveria um Estado, uma religião, um imperador”, diz o historiador Simon Sebag Montefiore no livro 'Jerusalém, uma Biografia'.

Os arquitetos de Constantino construíram basílicas — edifícios retangulares com um anexo em semicírculo, onde o clero se sentava. O altar ficava na interseção entre a nave e o anexo. As basílicas inauguraram uma era de imponência na Igreja, que colecionava terras e relíquias da nobreza europeia. Esses templos serviam também como lugares de reunião, tribunais e salões de recepção de monarcas.

Tanto que “basílica” vem do grego basileus (“rei”). A conversão do imperador abriu espaço para a futura criação do papado, que implantaria uma rígida hierarquia entre o clero e acabaria com a divisão de poder entre os patriarcados primitivos. Ainda no século 4, os bispos realizaram concílios para reafirmar a doutrina cristã e combater os questionamentos aos dogmas católicos. O primeiro deles foi convocado pelo próprio Constantino em Niceia, na atual Turquia, em 325.

Mosaico de Constantino, o Grande / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ WIkimedia Commons

O resto do mundo

No fim das contas, o movimento originário da Galileia não foi o que se tornou religião oficial do Império Romano. “O movimento que se tornou a religião oficial do Império foi resultado das intensas negociações e de diferentes culturas que transformavam a mensagem de Jesus”, diz Chevitarese. No século 5, veio outra reviravolta.

Povos “bárbaros” penetraram em diversas partes da Europa e estremeceram o poderio imperial. Roma continuou ocupando um papel simbólico no cristianismo. Mas foi Bizâncio (atual Istambul) que emergiu como o novo altar das decisões.

Situada entre a Europa e a Ásia, Bizâncio era uma ex-colônia grega, batizada de Constantinopla por Constantino. O sonho do imperador era manter a unidade política e religiosa do Império Romano. Mas os bizantinos desenvolveram sistemas políticos distintos, e suas igrejas elaboraram suas próprias liturgias.

No século 8, surgiram os estados papais, situados no centro e no norte da Itália. Neles, os sumos pontífices instauraram uma monarquia absoluta, acumulando o papel de autoridades civis, líderes religiosos, senhores feudais e chefes de exércitos.

A missão da Igreja só assumiria caráter global graças à Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada no século 16 por Santo Inácio de Loyola. Os jesuítas espalharam a fé cristã na Ásia e na África junto com as grandes navegações. Os missionários trouxeram o cristianismo para a América, dando uma dimensão planetária à religião. O esforço valeu a pena: hoje temos Francisco, o primeiro papa jesuíta — e argentino — da História.