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Matérias / Dom Sebastião

Dom Sebastião, o rei que Portugal não queria deixar morrer

O curioso mito do rei português que 'retornou dos mortos', explicado pelo historiador André Belo em entrevista exclusiva ao Aventuras na História

Ingredi Brunato Publicado em 12/11/2023, às 12h35 - Atualizado em 04/01/2024, às 16h51

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Pintura retratando Dom Sebastião - Domínio Público
Pintura retratando Dom Sebastião - Domínio Público

Existiram muitos reis odiados através da História: eram tiranos, insanos ou simplesmente péssimos governantes que conquistaram o desprezo de seus súditos. Dom Sebastião, no entanto, que governou Portugal entre 1557 e 1578, não foi um deles. 

Seu nascimento e crescimento foram acompanhados com expectativa pelo povo português. Era um período em que filhos muitas vezes "não vingavam" e a monarquia se encontrava em uma situação instável. 

Na época, o rei era João III, o avô de Sebastião, que se encontrava doente. Seu herdeiro — o único sobrevivente de nove irmãos — era D. João Manuel, que faleceu enquanto seu filho ainda estava no ventre da mãe.

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Capa do livro 'Morte e ficção do Rei Dom Sebastião' /Crédito: Divulgação

Assim, Dom Sebastião nasceu já órfão de pai, encarou o trono com apenas três anos, quando João III acabou sucumbindo à doença. Ele cresceu saudável, mas, infelizmente para a situação política de Portugal, acabou não se casando e faleceu aos 24 anos sem deixar herdeiros, o que gerou uma verdadeira crise de sucessão. 

Este é parte do contexto por trás do sebastianismo, nome dado à lenda popular que defendia que o monarca continuava vivo. Existiu, inclusive, mais de um farsante que apareceu nos holofotes públicos afirmando ser o rei que havia falecido. 

Para compreender melhor as narrativas por trás deste curioso fenômeno, a equipe do Aventuras na História realizou uma entrevista exclusiva com o historiador André Belo, autor do livro "Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião".

Morte acima de qualquer dúvida 

Belo assegura, antes de qualquer outra coisa, que não "existe margem para dúvidas" a respeito da morte do monarca. D. Sebastião pereceu ao combater os mouros em 1578 durante a batalha de Alcácer-Quibir, que se deu no norte da África. A morte é confirmada pelos relatos históricos de uma série de testemunhas oculares que participaram do conflito. 

[Ele] acabou por levar com uma grande obstinação a ideia de fazer uma cruzada no Marrocos, onde Portugal tinha interesses e onde ele queria fazer também os seus feitos de cavalaria e se provar... Portanto, havia uma espécie de obsessão de fazer esta viagem e de fazer uma batalha e combater no Marrocos", explica ele.

Sem planejamento, diz o escritor, o "rei acabou por morrer sem descendência". Na época, também não existiu questionamento por parte da população de Portugal. Esses dados apenas seriam questionados mais tarde, quando se criaram teorias conspiratórias a respeito do corpo de Sebastião nunca ter sido encontrado, por exemplo — o que não é verdade. 

[Ele] morreu, o seu corpo foi reconhecido no dia a seguinte à batalha pelos nobres portugueses, por um juiz português que tinha como função enterrar o Dom Sebastião na cidade mais próxima, e foi ele também que enviou uma carta oficial para Lisboa, para oficializar a morte do rei. Portanto, digamos que entre as autoridades não houve dúvidas, a partir desse momento, que o rei tinha morrido", afirma André Belo

A próxima pessoa a assumir a Coroa foi Dom Henrique, um tio-avô do jovem governante. O homem, no entanto, já era um senhor de idade e ainda por cima atuava como cardeal, de forma que era proibido de se casar pela Igreja Católica.

Após seu falecimento — que ocorreu apenas dois anos mais tarde —, aconteceu o que todos temiam: a pessoa mais próxima na linha de sucessão era Filipe II da Espanha. Até então, Portugal vivia um período de realçado patriotismo, e passar a ser governado pelo monarca de um reino rival foi uma reviravolta difícil de engolir para muitos portugueses. 

"Foi um período muito conturbado também porque a batalha teve consequências  negativas para o reino de Portugal, com muitos mortos (membros da nobreza, membros dos combatentes mais populares), muito dinheiro que se perdeu. Foi preciso pagar os resgates dos presos, muitas pessoas estiveram presas na África, e tudo isso teve grandes custos. Portanto, na memória portuguesa, é uma das derrotas mais célebres e mais catastróficas. Assim, Dom Sebastião tem essa fama, está associado a esse desastre", pontuou o pesquisador. 

Esses detalhes tornam ainda mais curioso que, a seguir, tenha se desenvolvido o sebastianismo, essa negação coletiva da realidade dura em que o rei de Portugal não estava mais entre os vivos. 

Ilustração representando batalha de Alcácer-Quibir / Crédito: Wikimedia Commons 

Os rumores surgiram, e destes rumores desenvolveu-se, mais tarde, toda uma lenda, um mito sebastianista que vai durar séculos. Portanto, Dom Sebastião está associado a esta derrota, mas também a uma tentativa para, através da lenda, de uma certa forma, superar a derrota e transformá-la em outra coisa", analisa Belo

O escritor identificou duas motivações principais por trás do reforço dessa lenda popular pelas pessoas da época. A primeira é política, na tentativa de evitar a reivindicação do trono por Filipe II

"Houve quem alimentasse, em meios próximos do poder, a dúvida e o rumor de que o rei estaria vivo, como forma de adiar a decisão sobre a sucessão, uma forma de ganhar tempo: houve um aproveitamento político do rumor, da falsa notícia", explicou. 

A segunda motivação, por sua vez, é mais sentimental, e apareceu entre indivíduos que perderam seus entes queridos na batalha de Alcácer-Quibir. Acreditar que Dom Sebastião ainda estava vivo e poderia retornar, a partir desta perspectiva, poderia oferecer conforto: se ainda havia esperança para o monarca, também havia para seus amigos e familiares que foram para a África e não voltaram. 

Falsidade ideológica 

Para analisar o sebastianismo, também é importante falar dos farsantes que afirmavam ser o governante retornado do além. O livro "Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião" dedica todo um trecho seu a um caso específico, inclusive, que surgiu em Veneza, na Itália, vinte anos após Alcácer-Quibir.

Começou a haver casos de impostura, de gente que se fez passar por D. Sebastião, ou que se dizia que era D. Sebastião. As histórias acabaram mal, em geral com condenação à morte, porque era um crime grave dizer-se que era um monarca que se dava por morto, portanto, era uma usurpação de identidade, e, em geral, o que acontecia nessa época era sem piedade, era uma condenação à morte", afirmou o autor. 

O chamado "Sebastião Italiano", em particular, foi um homem que ganhou notoriedade apesar de sua mentira ser óbvia: ele não falava português e era fisicamente diferente do monarca falecido (com cabelos escuros em vez de claros, por exemplo). 

Conforme revelou André Belo em nossa entrevista, um dos elementos que mais o surpreendeu durante sua pesquisa para o livro foi justamente a maneira como historiadores deram repercussão ao mito e trataram como fontes legítimas os relatos enganosos produzidos por sebastianistas. 

"Surpreendeu-me que houvesse alguns estudiosos que continuassem a dizer que era um caso um pouco perturbador, porque ele [o Sebastião Italiano] falava bem português e lembrava-se de tudo. Ora, isso tudo são projeções, mais uma vez, das fontes sebastianistas produzidas no período. Portanto, o que eu digo no livro é que os primeiros sebastianistas nascem ou ganham importância em volta deste caso de Veneza. Os textos que vão ser escritos são em torno deste episódio", apontou. 

Além disso, vale mencionar que a farsa do impostor de Veneza teve uma duração muito maior do que poderia ser esperado. Para tentar explicar esse episódio aparentemente desprovido de lógica, o pesquisador teorizou que deveria haver interesses políticos na continuidade da fraude. 

"Depois também me surpreendeu que uma história como esta, sem pé nem cabeça, como se diz em Portugal, não sei se se diz no Brasil, durasse cinco anos. Durou. Ele esteve preso em várias prisões e essa duração interrogou-me e surpreendeu-me. E uma das interpretações que eu dou, enfim, a principal, é que havia interesses políticos dos diferentes Estados que tiveram em mãos esta pessoa em mantê-lo na prisão, em mantê-lo vivo, não o condenar à morte", acrescentou André Belo

Pinturas mostrando Dom Sebastião em diferentes momentos de sua curta vida / Crédito: Domínio Público 

Reescrevendo a memória coletiva 

Para produzir seu livro, o pesquisador consultou fontes históricas de muitos países diferentes, em diversas línguas, até pelo sebastianismo ter sido alvo de curiosidade internacional. 

Em Florença encontrei fontes muito ricas, muito interessantes, entre as quais, um exemplo que eu gosto sempre de dar, é um teste de tradução que um português que estava em Florença fez para certificar-se de que o calabresa [o Sebastião italiano] não era português", contou Belo

O homem pediu que o impostor traduzisse um texto do italiano para o português. O resultado, que pode ser lido na íntegra nestes arquivos antigos, foi desastroso: "é um português macarrônico, uma espécie de mistura entre italiano, português, alguma coisa de espanhol", descreveu o autor. 

Esta história já tinha sido estudada, mas, na minha opinião, foi de uma forma não satisfatória ou que era preciso atualizar", refletiu ainda André Belo, que, com sua obra, buscou preencher essa lacuna, explicando o famoso mito de maneira a deixá-lo menos místico, e mais histórico.