Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História
Matérias / Ditadura Militar

Escritora relembra tortura e prisão na ditadura: 'Não dá para esquecer o golpe'

Em memória aos 60 anos do golpe de 1964, a escritora e jornalista Mariluce Moura relança 'A Revolta das Vísceras'; confira a entrevista completa

Éric Moreira Publicado em 31/03/2024, às 09h00

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Capa do livro 'A revolta das vísceras e outros textos' e a escritora Mariluce Moura - Divulgação
Capa do livro 'A revolta das vísceras e outros textos' e a escritora Mariluce Moura - Divulgação

No mês de março, os brasileiros relembram os 60 anos do início de um dos períodos mais turbulentos e sombrios da história do Brasil: o início da ditadura militar. Este período se iniciou com a deposição do então presidente João Goulart. Assim, o país ficou por mais de 20 anos sob o poder dos militares, até a redemocratização em 1985.

Nos anos sombrios, os militares no poder alegavam ter, como um de seus grandes objetivos, "combater o comunismo". No entanto, para que cumprissem com sua meta, eles foram responsáveis pela prisão, tortura, desaparecimento e até mesmo morte de centenas de opositores ao regime, um dos períodos mais repressivo de nossa história.

+ Relembre 5 músicas famosas que criticavam a ditadura militar brasileira

Assim, a escritora e jornalista Mariluce Moura republicou o livro 'A revolta das vísceras', de 1982, desta vez com uma entrevista da autora de 2015, e uma apresentação do militante e ex-deputado federal Emiliano José. Sua filha, Tessa Moura Lacerda, lança a obra 'Pela Memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, Presente!'.

Na obra, ela narra a história da jovem militante Clara, no contexto da ditadura militar, que se tornou viúva de Gildo enquanto ainda grávida de sua primeira filha, a partir de anotações enquanto presa política.

Recentemente, a equipe do site Aventuras na História entrevistou Mariluce Moura. Além de refletir sobre suas próprias experiências na ditadura, a autora também fala sobre inspirações para o livro. 

O golpe

Baiana, Marilucetinha 13 anos quando ocorreu o fatídico golpe de 1964. Apesar de nova, já tinha "certa proximidade com discussões políticas", como ela mesma conta, graças à convivência com os "moradores de um bairro de periferia, extremamente críticos, conscientes, democratas, ativos."

Quando acontece o golpe de 64, nós já vínhamos acompanhando de perto desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. A gente acompanhava como criança e adolescente, os desdobramentos dos acontecimentos políticos do país", continua.

Mariluce recorda que foi à escola normalmente na manhã do dia 31 de março, entretanto, logo voltou para casa, pois, as aulas foram suspensas. "No centro de Salvador estavam tropas militares, caminhões do exército, etc", descreve.

Mariluce Moura / Crédito: Divulgação

Anos depois

Nos anos que se seguiram ao golpe, em paralelo com o crescimento de Mariluce, ocorreram os movimentos estudantis. Em 1965, surgiram as primeiras manifestações de reação à ditadura. Porém, com a chegada do Ato Institucional de nº 5 (o AI-5), em 1968, uma "extrema violência começa a cercear o movimento estudantil", destaca a escritora.

"Quando acontece o AI-5, eu tinha entre 17 e 18 anos, e estava fazendo vestibular para a universidade. Quando eu entro na universidade, já havia um cerceamento muito maior das liberdades de reunião, organização, etc.", recorda a escritora. Porém, na época, ela também já era ligada a um partido clandestino, que resultou em sua prisão em 1973.

Prisão e torturas

Em 1973, não só Mariluce foi presa, como também outros sete jovens militantes, entre os quais estava Gildo Macedo Lacerda, seu marido e com quem esperava um bebê. 

+ Veja 5 filmes que mostram o que foi a ditadura militar

"Veja, quando eu falo de assassinatos na ditadura, nós precisamos considerar que chegou se a um número de 434 militantes jovens, assassinados ou desaparecidos", afirma ela. 

Porém, o número de vítimas é incerto até hoje. Só recentemente, por exemplo, foram discutidas as inúmeras mortes de indígenas e camponeses na ditadura. "Ou seja, nós ainda não sabemos de fato quantas pessoas, militantes, e mesmo civis foram mortos como efeito da repressão da ditadura civil militar", acrescenta.

No momento de sua prisão, ela recorda que a operação se parecia, na verdade, muito mais com um sequestro: "chegava um carro junto de você, enfiava um capuz e te enfiava na força dentro de um carro e levava. [...] Eu fui presa por volta do meio-dia, num lugar público dos mais frequentados de Salvador, em frente ao Elevador Lacerda."

Eu fui mandada para o quartel do Forte de São Pedro. O Gildo, meu marido, foi mandado para o quartel do Forte do quartel do Barbalho. São quartéis do Exército que eu tô falando. E há o quartel do Barbalho em Salvador. Era, de fato, o lugar onde ocorriam as piores torturas em Salvador", explica.

"No dia que fui torturada, nas noites que eu fui torturada, eu era tirada do quartel do Forte de São Pedro e levada para o quartel do Barbalho, para ali, sem roupa, levava chute, porrada, choque, humilhações de todo tipo, choques no corpo todo, etc", descreve. "No caso, em Salvador, não ocorreu nenhum assassinato neste período", ela ainda acrescenta.

Jovem sendo agredido por policiais durante a Ditadura Militar / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Assim, a morte de Gildo ocorreu no dia 25 de outubro do ano da prisão, que ela descobriu pelos jornais da época, que noticiavam as mortes, davam nome aos homens, mas muitas vezes eram mentiras que omitiam o assassinato.

"Morreram torturados aproximadamente 50 militantes que por ali passaram, em graus variados de tortura e violência. [...] Este é um Estado terrorista que a gente tinha."

+ Sobrevivente da ditadura relembra tortura no DOI-CODI: 'Até 3 vezes ao dia'

Morte de Gildo

Mariluce relembra que só descobriu a morte de seu marido, Gildo, pelo capelão do Exército da Bahia, no dia 31 de outubro. Segundo as autoridades na época, morreu em um tiroteio, em uma área movimentada em Recife, Pernambuco. Entretanto, ele foi preso no dia 22 de outubro. Era uma teia de mentiras.

Na época, Mariluce soube que a nota era uma grande mentira, e que seu marido foi morto enquanto era torturado.

"A nota era tão mentirosa que ainda dizia que um dos policiais tinha sido ferido nessa ação, operado e que estava bem (...) A Mércia Albuquerque [advogada de presos políticos], logo no dia seguinte a essa nota, foi levantar se houve alguma movimentação na Avenida Caxangá com a General Polidoro. Não aconteceu nada. Era mentira. E depois, no decorrer do tempo, com os depoimentos de companheiros que estavam presos na mesma em Recife, nós ficamos sabendo que isso é oficial. Isso está nos documentos da Comissão da Verdade, na Comissão da Verdade de Pernambuco, principalmente", explica ela.

Escrevendo o livro

Conforme narra Mariluce Moura ao site Aventuras na História, ela começou a escrever alguns textos como contos e ficções para lidar com o luto, enquanto presa. Porém, na década de 1980, estes textos foram compilados e, assim, seu romance ganhou forma.

"Os capítulos são amarrados por uma carta que a personagem vai escrevendo para alguém e que não fica claro nos primeiros capítulos para quem ela está escrevendo essa carta", explica a autora.

Sobre a importância de sua obra e de seu relançamento no tempo atual, ela finaliza alegando que a obra é importante para encararmos esse evento sombrio do passado como algo que não podemos renunciar. "Nós precisamos, sim, conhecer bem esse passado, e a partir do conhecimento desse passado é que nós temos condições de fazer futuros."