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Matérias / Jesse Owens

Jesse Owens, a carreira do atleta que triunfou sob a ira de Hitler

Durante as Olimpíadas de Berlim, na Alemanha Nazista, Jesse Owens provou que as teorias da supremacia ariana não possuíam qualquer fundamento

Rodrigo Casarin / Atualizado por Giovanna Gomes Publicado em 03/08/2019, às 03h00 - Atualizado em 02/12/2022, às 10h00

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Jesse Owens em 1968 - Domínio público / Acervo Arquivo Nacional
Jesse Owens em 1968 - Domínio público / Acervo Arquivo Nacional

10,3 segundos nos 100 metros rasos; 8 metros e 5 centímetros no salto em distância; 20,7 segundos nos 200 metros rasos; e 39,8 segundos na corrida de revezamento 4x100 metros. Foi com esses números que o atleta Jesse Owens triunfou sob os bigodes de Adolf Hitler durante as Olimpíadas de 1936, em Berlim.

O homem negro dos Estados Unidos subiu ao ponto mais alto do pódio nas provas de 100 metros rasos, salto em distância, 200 metros rasos e corrida de revezamento 4x100 metros, provando para o ditador que a tal supremacia física e intelectual ariana só existia em sua cabeça doentia. Não bastassem as medalhas douradas, ainda estabeleceu recordes mundiais nos 200 metros e no salto em distância.

Tal feito do rapaz de 22 anos era muito para Hitler, que já colocava em prática sua política de extermínio. Atletas, quando não eram assassinados ou forçados a deixar o país, eram relegados por uma política que, a partir de 1933, privilegiou esportistas que representavam o ideal almejado pelo ditador – branco, de ascendência alemã e, se possível, com corpo que remetesse às esculturas clássicas gregas.

Ao vencer a prova de 100 metros / Crédito: Getty Images

Dessa forma, judeus e ciganos, dentre outros, foram afastados do esporte formal na Alemanha, como no caso do judeu Erich Seelig, expulso da Associação de Boxe Alemã mesmo ostentando títulos amadores. 

Como então se conformar com um negro triunfando soberbamente no principal evento esportivo que o país já havia sediado? Há quem diga que Hitler não suportou aquilo e, ao cabo das competições, deixou o Estádio Olímpico de Berlim sem sequer olhar no rosto do grande nome daquelas Olimpíadas. Outra versão, no entanto, garante que o ditador reconheceu o feito de Owens longe dos holofotes, cumprimentando o atleta nos bastidores da arena.

Entretanto, outra pergunta é cabível para que entendamos o contexto no qual tudo isso se passou: como o Comitê Olímpico Internacional permitiu que um país que era liderado por um dos maiores monstros do século 20 e que já colocava em prática suas ideias nefastas recebesse o evento que se orgulha em se intitular uma festa entre povos?

Pausa na barbárie 

Foi em 1931 que o Comitê Olímpico Internacional definiu Berlim como sede das Olimpíadas que aconteceriam dali a cinco anos. Além de celebrar o esporte, a ideia era que o evento ajudasse a recolocar o país no cenário global, de onde andava afastado desde a derrota na Primeira Guerra Mundial. Em 1933, ao ver Hitler assumindo o cargo mais alto da administração alemã, países como Estados Unidos, França, Suécia, Holanda e Checoslováquia se posicionaram pedindo o cancelamento das Olimpíadas, mas a solicitação foi em vão.

O historiador Kimon Speciale Ferreira indica em Os Jogos Olímpicos de 1936 (Berlim) e a Busca da Perfeição Atlética que “no ano de 1933, ninguém estava plenamente ciente a respeito da posição dos nazistas sobre os esportes, contudo Hitler já havia apresentado forte intenção de realizar uma grande política voltada ao desenvolvimento das práticas corporais. Era seu desejo institucionalizar a cultura física no processo educacional alemão, através da crença de que a noção de uma cultura física compete ao Estado, e não ao próprio indivíduo”, mostrando como o ditador valorizava a questão. 

Mesmo com esportistas de diversos países anunciando que boicotariam a competição, a decisão tomada pelo Sindicato dos Atletas Amadores dos Estados Unidos em 1935 de participar dos Jogos foi decisiva para que mais boicotes não surgissem e, possivelmente, comprometessem o evento, que, ao todo, recebeu equipes de 49 nações. Como era de esperar, a maior foi a alemã, com 348 atletas, seguida dos Estados Unidos, com 312 integrantes – 18 deles negros, como o próprio Owens. O Brasil esteve representado por 94 atletas, que não ganharam medalha.

Falsa impressão

O que se viu ao longo dos 16 dias de jogos – entre 1º e 16 de agosto – foi, mais do que as competições em si, um esforço enorme dos nazistas para passar uma falsa impressão da Alemanha a todos os estrangeiros que estavam no país. Painéis com mensagens contra os judeus foram removidos de Berlim, turistas homossexuais não respondiam às mesmas leis dos homossexuais locais e qualquer truculência contra minorias era mantida bem longe de onde as disputas ocorriam. Talvez fosse de estranhar as bandeiras nazistas, com suas suásticas, que enfeitavam as ruas junto da bandeira olímpica. 

Owens no pódio / Crédito: Arquivos Federais Alemães via Wikimedia Commons

Ao cabo desse hiato na barbárie, a Alemanha foi quem levou o maior número de medalhas. Além de Owens, no entanto, alguns vencedores provavelmente causaram grande incômodo ao ditador. “Hitler conseguiu mostrar ao mundo o poder totalitário do nazismo alemão e impressionou a todos com a organização social promovida pelo regime, mas não teve sucesso em demonstrar a suposta supremacia racial dos alemães arianos, que foram derrotados por atletas negros, asiáticos e judeus”, apontam Mario Sigoli e Dante de Rose Junior, pesquisadores da USP, no artigo A História do Uso Político do Esporte.

No entanto, quando o evento acabou, o nazista estava livre para seguir com sua carnificina. Dois dias depois das Olimpíadas, por exemplo, o chefe da Vila Olímpica, Wolfgang Fuerstner, suicidou-se após saber que tinha sido dispensado do Exército por causa de sua origem judaica. Era hora de Hitler intensificar as perseguições e expansões que culminariam na Segunda Guerra Mundial.

Trajetória improvável

Na guerra todos sabem o que aconteceria e como a imagem de Hitler passaria para a História. E como sinal de seu fracasso uma das cenas mais fortes e representativas que há é justamente a de Jesse Owens no topo do pódio do Estádio Olímpico de Berlim. A própria trajetória do atleta, no entanto, é tão improvável quanto o sucesso que se repetiu quatro vezes diante do ditador.

Owens nasceu em setembro de 1913 em Oakville, cidade rural no Alabama, lugar um tanto inóspito para um neto de escravos, e foi batizado como James Cleveland – chamado pela família de JC, passaria a ser tratado como Jesse na escola, após uma confusão sonora com seu nome. No ensino médio seu professor Charler Riley notou que o rapaz tinha talento para o atletismo. Riley tornou-se o primeiro técnico de Owens, que a partir de 1930 começou a se dedicar àquela carreira, ainda que trabalhasse como engraxate para garantir o sustento.

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Owens / Crédito: Getty Images

Em 1932, aos 19 anos, fracassou ao disputar as seletivas para as Olimpíadas de Los Angeles, mas não esmoreceu. No ano seguinte já se apresentava em outro patamar, tanto que venceu 75 das 79 provas que disputou e quebrou o recorde mundial das 100 jardas. Ofertas de bolsas de estudo surgiram e ele aceitou a da Ohio State University, o que lhe serviu de base para, em 1935, cravar recordes mundiais no salto em distância, 100 jardas, 220 jardas e 220 jardas com barreira, colocando seu nome como um dos inegáveis destaques das Olimpíadas que aconteceriam no ano seguinte.

Racismo

“O êxito de Jesse Owens foi interpretado como um golpe contra a pretensa superioridade ariana”, considera Alfredo Oscar Salun, doutor em história social pela USP, no artigo Esportes e Propaganda Política na Década de 1930 ao falar da medalha de ouro de Owens no salto em distância, modalidade na qual desbancou o alemão Lutz Long, considerado imbatível na modalidade.

Se na Alemanha Owens triunfou sobre a barbárie, quando regressou aos Estados Unidos, porém, nem as quatro medalhas de ouro que carregava no peito foram suficientes para que a lamentável realidade então em voga no país tivesse alguma mudança. Na volta, o atleta desfilou por Nova York, onde foi recebido por chuvas de papeis picados, muitos aplausos e calorosas saudações.

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Owens durante salto / Crédito: Arquivos Federais Alemães via Wikimedia Commons

Contudo, ao colocar os pés num suntuoso hotel onde seria homenageado por autoridades, logo foi orientado para que utilizasse o elevador de serviço. Nem toda a glória do mundo seria capaz de solapar o racismo: os elevadores sociais só podiam ser usados pelos brancos, e Owens não seria a exceção.

O atleta aproveitou seu prestígio para levantar algum dinheiro. Passou a participar de corridas festivas, algumas que se aproximavam do bizarro. Em Cuba, por exemplo, ainda no final de 1936, ganhou 2 mil dólares por vencer uma disputa contra cavalos. Também competiu com cães e até mesmo automóveis. Foi expulso da Associação Amadora de Atletismo por tais atividades sob alegação de que aquilo era degradante, mas ele precisava se sustentar, alegava, e aquela era a maneira que encontrou para isso.

Mas não passou a vida fazendo essas apresentações. Também trabalhou em escolas, foi frentista, teve uma lavanderia e atuou como relações-públicas, emprego no qual se deu muito bem. Chegou a ser embaixador do Departamento de Estado e foi ensinar atletismo em países do sudeste asiático.

Apesar de viver em uma nação onde negros possuíam escassos direitos civis, Owens estava longe de ser alguém engajado nas questões raciais. Em 1968, inclusive, criticou publicamente os atletas Tommie Smith e John Carlos pelo gesto político que fizeram nas Olimpíadas do México. Foi somente no final da vida – morreu aos 66 anos em 1980 – que o esportista, ícone de oposição a Hitler, reconheceu que vivia em uma nação também seriamente marcada pelo desrespeito ao ser humano.

“Depois de todas aquelas histórias sobre Hitler e como ele me esnobou, voltei para o meu país, um lugar onde eu não podia sentar na parte da frente de um ônibus. Então, qual era a diferença?” A Alemanha nazista e os Estados Unidos segregacionistas de alguma forma se refletiam.

Panteras Negras

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Os atletas Tommie Smith e John Carlos / Crédito: Getty Images

Nas Olimpíadas da Cidade do México, em 1968, dois negros dos Estados Unidos se tornaram símbolo da resistência. Tommie Smith ganhou a medalha de ouro nos 200 metros rasos, enquanto John Carlos ficou em terceiro lugar. Ao subirem no pódio, na hora do hino nacional, baixaram a cabeça e ergueram o braço com o punho cerrado.

O gesto era o sinal dos Panteras Negras, movimento que nascera em 1966 para combater o racismo e lutar pelo empoderamento dos negros no país. A foto de ambos no pódio em tal posição se tornaria uma das imagens mais emblemáticas da história das Olimpíadas.

No entanto, as consequências imediatas não foram boas para os corredores, ao menos no âmbito esportivo. Como o Comitê Olímpico Internacional veta que os atletas realizem gestos políticos nos jogos, Tommie e John acabaram expulsos daquela edição da competição e suas medalhas foram caçadas. Coube à História transformá-los em heróis.