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Matérias / Japão

Camuflagem e ataque-surpresa: a instigante saga dos ninjas

Espiões, informantes e até mesmo assassinos: entenda como esses guerreiros subverteram métodos de combate dos samurais

Eduardo Ribeiro Publicado em 27/07/2020, às 13h20

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A sombra de um ninja - Divulgação
A sombra de um ninja - Divulgação

Poucas organizações militares na História são tão populares e ao mesmo tempo incompreendidas como os ninjas japoneses. Apesar das contestações a respeito de sua existência, historiadores afirmam que, sim, eles existiram.

A questão é que há muitos mitos e exageros em torno de sua trajetória, em boa parte sustentados pela liberdade narrativa da cultura pop. De qualquer modo, a arte da guerra ninja está entre as mais fascinantes de todos os tempos.

Subprodutos da tradição samurai, os ninjas, em essência, eram guerreiros experts em lutas marciais que atuavam dentro do serviço de inteligência do poder japonês. Embora diversas mortes tenham sido oportunamente atribuídas a eles nos conflitos do país, é impossível ter certeza de quais realmente mereceram ir para a conta dos ninjas, por se tratar de ações sigilosas.

Grande número desses lutadores vinha de classes sociais desfavorecidas, então seus modos de agir, nebulosos e furtivos, eram o exato oposto dos ideais de nobreza cultivados pelos samurais, avessos ao ataque “pelas costas”.

O mito de que os ninjas gozavam de superpoderes, como flutuar ou desaparecer, nasceu junto às práticas de ataque-surpresa e sabotagem, fosse por bomba ou armadilha. Tais lendas começaram a se espalhar com mais força no início do século 17, quando uma série de fatos passou a se misturar com a fantasia popular.

Operações secretas, guerrilhas e assassinatos de líderes rivais já vinham, no entanto, sendo atribuídos a indivíduos especialmente treinados desde meados do século 15. A maior parte dessas ações foi registrada nas regiões de Iga e Koga, mais ao centro do Japão.

Fator surpresa

“As técnicas do ninjutsu provêm do shinobi no jutsu e shinobi jutsu, práticas as quais implicam que o oponente desconheça a existência do atacante, e para tanto oferecem treinamento específico. Durante o Período Sengoku (1467-1568), essas técnicas eram usadas nas campanhas, e incluíam as aplicações do sekko (observar) e kancho (espionar)”, explica o historiador japonês Kiyoshi Watatani em sua enciclopédia das artes marciais nipônicas, de 1972.

O termo shinobi, na versão original shinobi no mono, segundo ele, é meramente um sinônimo da palavra “ninja”. Esta acabou sendo mais disseminada por estabelecer referência fonética às técnicas “no jutsu” e se adequar melhor às línguas ocidentais.

Durante o século 14, uma guerra eclodiu quando o imperador Go-Daigo tentou retomar o poder que lhe fora tirado pelo Xogunato Kamakura (primeiro regime militar feudal japonês, 1185-1333). Como resultado, o Japão passou a contar com dois governos rivais.

Em The Taiheiki, épico sobre a guerra entre a Corte do Norte, de Ashikaga Takauji, em Kyoto, e a Corte do Sul, de Go-Daigo, em Yoshino, conta-se como os ninjas estiveram envolvidos no incêndio de uma fortaleza: “A queda do castelo beneficiaria os oponentes da Corte Sul. Certa noite, sob chuva e ventania, Hachiman-

yama [o nome da fortaleza] foi incendiada por shinobis muito bem treinados”. Está contido no Taiheiki também o primeiro registro de um assassinato ninja. O criminoso foi o jovem Hino Kumawaka, de 13 anos, filho de Hino Suketomo, que havia sido mandado ao exílio por fazer uma conspiração contra Go-Daigo. Suketomo, posto sob custódia do monge Homma Saburo, foi condenado por este à execução. Seu filho, inconformado, jurou vingança contra o monge.

Ele se fez de doente de modo a não ser enviado de volta a Kyoto junto com os restos mortais de seu pai, e o fingimento lhe garantiu um lugar para se hospedar na casa de Saburo. O adolescente, então, aguardou pelo momento ideal para o ataque.

Foi durante uma noite de tempestade, ao encontrar os guardas dormindo em serviço em suas cabines com vista para o pátio. O monge tinha até trocado de aposentos, mas Kumawaka o descobriu, decidido a matá-lo com sua própria espada.

O que lhe rendeu o crédito de ninja foi a maneira como impediu que a vítima percebesse sua presença no quarto:“... em volta da luminária que trazia consigo, uma nuvem de mosquitos se formava, já que era verão.

Ele abriu a porta, deixando um feixe para que os insetos entrassem e fossem em enxame em direção à lâmpada do quarto. Assim que se fez sombra, ele apagou a lâmpada rapidamente. Kumawaka então puxou cuidadosamente a espada de Saburo, colocou a ponta ao peito da vítima e a afundou.”

Sua estratégia de fuga também foi digna de um ninja. O menino escalou o topo de uma árvore de bambu sobre a água, o caule se dobrou até a superfície do lago e ele o utilizou como se fosse uma ponte para chegar do outro lado. Essa prática conta com duas técnicas ninjutsu de ataque e fuga.

A mokuton, que significa “uso da árvore”, como quando o guerreiro se esconde atrás de troncos ou agita galhos para confundir o oponente, e a suiton, “uso da água”, ato que pode exigir que o guerreiro passe várias horas submerso, respirando por tubos de bambu, ou que tire a atenção do inimigo com barulhos aquáticos. O mais famoso truque, no entanto, é o katon, “uso do fogo”, técnica de enganar o alvo com explosões pirotécnicas de fumaça de pólvora.

Como o ninjutsu era um conhecimento oculto, transmitido exclusivamente de pessoa a pessoa, historiadores creem, sem exatidão, que tenha começado na época do imperador Shotoku (718-770), difundindo-se ao longo do Período Sengoku. Naquele tempo, o Japão enfrentou uma série de guerras civis, e a cultura ninja foi adotada pelas comunidades que viviam nas montanhas da ilha de Honshu, pela necessidade que as famílias tinham de se proteger dos invasores.

Os mais celebrados ninjas profissionais foram os mercenários de Iga e Koga, contratados pelos rivais dos daimyo (senhores feudais) de 1485 a 1581, quando um ataque feroz incidiu sobre a província. A invasão de Iga foi encabeçada pelo daimyo Oda Nobunaga, o primeiro dos três “superdaimyos”, que mais tarde reconciliariam o país.

A execução de Oda Nobunaga pelos rebeldes ninjas foi vingada pelo segundo dos unificadores, Toyotomi Hideyoshi, que marchou com seu exército contra Kyoto e derrotou o ex-samurai e general rebelado Akechi Mitsuhide, a quem se atribui a morte de Nobunaga, na batalha de Yamazaki. De batalha em batalha, ao longo de 20 anos, Hideyoshi acabou conquistando todo o Japão.

Com a derrota do clã Hojo em 1590, ele deu ao samurai encarregado Tokugawa Ieyasu os territórios como recompensa. Ieyasu, o terceiro grande unificador, preferiu não se instalar na fortaleza principal dos Hojo, em Odawara, mas numa pequena cidade do leste chamada Edo. O lugar acabou virando Tóquio em 1868, quando tornou-se capital do Império, e o que conhecemos hoje como o Palácio Imperial foi, no passado, o castelo de Ieyasu.

Eles fizeram história

O destacamento de Iga em Edo ficava sob o comando de ninguém menos do que o mais célebre dos ninjas, Hattori Hanzo Masashige, aquele a quem Quentin Tarantino faz referência numa passagem de Kill Bill Vol. 1. Hanzo, antes de ser um guerreiro, trabalhou como guia em Iga. Nasceu em 1541, filho do samurai Hattori Yasunaga, e enfrentou sua primeira batalha aos 16 anos, num ataque notívago ao castelo de Udo.

Serviu ainda com distinção nas batalhas de Anegawa (1570) e Mikataga Hara (1572). Por conta da performance sanguinária em tais embates, ganhou o apelido de “Diabo Hanzo”. Morreu em 1596, aos 55, e foi sucedido pelo filho, Hattori Masanari.

Outro guerreiro ilustre foi Kato Danzo, o grande responsável por popularizar o mito dos poderes paranormais dos ninjas. Exímio na prática do ilusionismo, Danzo empreendia truques de desaparecimento, não só de si mesmo mas também de objetos. Ele era um mestre na arte da hipnose, o que contribuiu para aumentar as lendas de surrealidade.

Já Ishikawa Goemon, nascido em 1558, foi o Robin Hood japonês. Após fugir da escola de Sandayu Mochizuki, ele passou a roubar dos ricos para dar aos camponeses.

Em Mikawa Go-fudoki, escrito clássico japonês em 45 volumes, sobre o clã Tokugawa, Tomo Sukesada é citado como líder de um ataque ninja contra o castelo de Imagawa. Na ação, 200 mercenários enfrentaram os guardas, invadiram o local, atearam fogo nas torres e arrasaram com toda a tropa do clã inimigo.

Kido Yazaemon, por sua vez, entrou para a História como o mestre dos explosivos. O episódio que lhe rendeu cadeira cativa entre os guerreiros lendários foi a tentativa de execução do líder Oda Nobunaga, em 1579, usando uma tanegashima, um tipo de arma de arcabuz (rifle medieval).

Apesar de não ter conseguido matar o nobre, o ataque acabou com a vida de sete pessoas que o acompanhavam. A ousadia da missão foi registrada no texto histórico Iranki.

Caça ao ninja

Durante o Período Edo (1603-1868), os ninjas sumiram um pouco de cena, com o cessar das guerras internas, ainda que não completamente. As famílias adeptas do ninjutsu, inclusive, foram muito perseguidas pela sociedade feudal no poder, que lhes cobrava impostos bem acima de sua renda. Isso só contribuiu para que o ninjutsu se tornasse ainda mais secreto, acirrando os conflitos entre ninjas, que eram o exército popular, contra os samurais, guardiões a serviço do poder feudal.

“Foi nesse período de suposta paz que o mito dos ninjas como os conhecemos hoje começou a se solidificar, com toda a mistura de verdade histórica acrescida de contos fantasiosos e lendas que acabaram produzindo uma espécie de ninja super-homem, que podia voar pelos ares e ficar invisível”, explica o historiador britânico Stephen Turnbull, autoridade no assunto e autor de mais de 50 livros sobre ninjas e samurais.

Já no período seguinte, o do império Meiji, a partir de 1868, tanto os ninjas quanto os samurais foram proibidos de usar armas, como estratégia política de modernizar o Japão e estreitar relações com outros países do mundo. Porém, durante a ocupação da Manchúria, na China, pelo Japão, em 1931, os ninjas foram recrutados novamente. Agora como espiões.

Mitologia própria

A mais famosa lenda de assassinato ninja é a de como Uesugi Kenshin, que governou a província de Echigo, teria sido morto em seu lavatório por um ninja que se escondeu no poço de esgoto e lhe enfiou uma espada direto no ânus quando o daimyo se agachou para defecar. Kenshin morreria dias após o atentado, e espalhou-se que Oda Nobunaga teria encomendado seu assassinato.

“As reais circunstâncias da morte de Kenshin são bem documentadas”, esclarece Turnbull, “ele parece ter sofrido algum tipo de crise, provavelmente uma parada cardíaca, no lavatório. Em Kenshin Gunki afirma-se que, no nono dia do terceiro mês após o infarto, ele sentiu uma forte dor de estômago. A crise persistiu até o 13º dia, quando veio a morrer”.

Segundo Stephen Turnbull, “a tradição de transformar ninjas em figuras sobrenaturais está no fato de que eles realmente levavam uma vida misteriosa e fugitiva. Os dois grandes heróis Minamoto Yoshitsune (1159-1189) e Kusunoki Masashige (1294-1336) estão entre os mais mencionados, a tal ponto que deram origem às duas escolas ninjutsu distintas  Yoshitsune-ryu e Kusunoki-ryu. Mas não há evidências históricas de que eles tenham pessoalmente criado essas vertentes”.

Outra razão da mitologia vem da ligação com os seguidores da religião shugendo, os yamabushis, eremitas ascéticos que, de acordo com o misticismo tradicional japonês, teriam poderes sobrenaturais. Ninjas e yamabushis na verdade têm pouca coisa em comum, a não ser seu inerente mistério, como avalia Turnbull.

“Talvez isso seja porque o disfarce de um yamabushi era perfeito para um ninja envolvido em missão de viagens e espionagem. É possível que os próprios yamabushis tenham agido como espiões a serviço dos daimyo, lançando mão de seu direito de viajar livremente. A verdade é que, como alguns assassinatos ninjas eram difíceis de explicar, o uso da mágica ou da invisibilidade parecia ser a única conclusão razoável.”

Ninja em formação

Os ninjas de Iga e Koga recebiam treinamento de suas famílias desde a infância. Como em muitas tradições marciais japonesas, aqui o conhecimento também era passado de pai para filho ou por um sensei (mestre) a seus pupilos, escolhidos a dedo.

Nesse caso, o pupilo nem sempre era um parente. O sensei precisava enxergar no aprendiz o espírito de ninja. Em outras palavras, ninguém virava ninja, apenas descobria-se ninja. Nas famílias proprietárias de pequenas terras nessas regiões, era costumeiro que os meninos fossem treinados para ser guerreiros logo aos primeiros passos.

Eles eram ensinados a manipular a espada samurai, a lança, o arco e flecha. Também aprendiam a cavalgar, correr e nadar. Conforme o treinamento evoluísse, o estágio seguinte trazia ensinamentos sobre explosivos, venenos, camuflagem e sobrevivência. Depois, vinham as técnicas de como purificar a água e cozinhar arroz em meio à selva, envolvendo o alimento em pano úmido e aquecendo-o enterrado na terra, sob uma fogueira.

No aspecto psicológico, o jovem aprendiz era ensinado a superar o medo da morte. Em situações de derrota, havia a incorporação da tradição samurai do ritual de suicídio (seppuku), num ato em que se realizava o corte do ventre seguido de decapitação. Para um ninja, melhor morrer que ser humilhado.