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Matérias / Idade Moderna

Interesses políticos: as consequências do bizarro incesto na realeza

Casamentos entre famílias reais europeias uniram parentes próximos e geraram descendentes com problemas físicos e mentais

Pedro Procópio Publicado em 25/05/2020, às 11h14

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O queixo protuberante: uma das consequências do incesto na realeza - Wikimedia Commons
O queixo protuberante: uma das consequências do incesto na realeza - Wikimedia Commons

Conta-se que, ao pisar na Espanha pela primeira vez, Carlos V, do Sacro Império Romano-Germânico, ouviu o grito de um homem do povo: "Majestade, feche a boca, pois as moscas deste país são muito insolentes". Corria o ano de 1517, e o abusado camponês, se existiu, percebeu de cara um defeito no nobre nascido na cidade de Gante (atual Bélgica) que vinha assumir o trono espanhol.

Carlos V (e I da Espanha), que lá estava como herdeiro de seus avós maternos, Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, os chamados Reis Católicos, era dono de um queixo descomunal. Tanto que não conseguia unir os lábios e impedir o acesso de possíveis insetos voadores, ficando com o ar apalermado, que teria motivado o gracejo do petulante plebeu.

Seu trineto Carlos II da Espanha, além da coroa, levou de brinde a deformação óssea da face conhecida como prognatismo - a mandíbula se projeta em relação ao maxilar e o lábio inferior se torna mais saliente. No caso de Carlos II, o queixão acarretava dificuldades de mastigação e de fala. Os Carlos, você deve ter reparado, partilhavam de um defeito genético.

Estigma marcante durante séculos nos Habsburgos, a poderosa dinastia originária da Suíça à qual pertenciam os dois monarcas, o prognatismo ficou tão identificado com a família que é conhecido também como mandíbula ou lábio de Habsburgo ou de Áustria.

Os rostos desses e de outros soberanos - Filipe IV da Espanha, pai de Carlos II, por exemplo - estão bem documentados em pinturas. Considerada a hipótese de que os pintores de corte - mesmo um mestre como Diego Velázquez - amenizavam os traços para não irritar seus retratados, é possível imaginar queixadas mais avantajadas ainda. 

O queixo e seu dono, Carlos V / Crédito: Wikimedia Commons

O culpado de tudo isso — o primeiro Habsburgo prognata - foi possivelmente Ernesto I da Áustria (1377-1424). Se a praxe fosse buscar gente de outras origens para os casamentos, o gene queixudo de Ernesto encontraria novos DNAs e provavelmente sumiria em sua descendência.

Acontece que os Habsburgos, como outros nobres, apreciavam matrimônios com parentes, a endogamia. Era um jeito de preservar o sangue azul e estabelecer alianças políticas. A falta de sangue novo na herança genética, no entanto, perpetuava (e acentuava) características físicas indesejáveis, provocava o surgimento de doenças congênitas e aumentava a mortalidade infantil naquelas famílias.

Geneticistas espanhóis traçaram a árvore genealógica de Carlos II e constataram que sua carga genética era equivalente à de um incesto entre irmãos ou entre pais e filhos. "Provavelmente, o gene do prognatismo atuava combinado com outros, o que fazia com que alguns dos Habsburgos apresentassem a má-formação e outros não", afirma Jaime Anger, cirurgião plástico do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo. 

Maldição

O prognatismo aberrante não era a única desgraça de Carlos II, sugestivamente alcunhado de o Enfeitiçado. Só começou a andar aos 4 anos e tinha desarranjos intestinais e febres, além de certo atraso mental. De todas as mazelas, nada superou, para fins dinásticos, sua incapacidade de gerar um herdeiro em seus dois casamentos - Carlos era estéril. Quando morreu, aos 38 anos, aparentava uma idade muito mais avançada. 

Além do célebre queixo de Habsburgo, discute- se a presença de outros males de origem genética transmitidos pelos repetidos casamentos entre parentes das dinastias europeias. A porfiria, um distúrbio do metabolismo, permaneceu por muito tempo sendo a explicação para a insanidade mental do rei George III do Reino Unido (1738-1820).

Nos anos 1960, apareceram artigos com títulos como A Insanidade do Rei George 3º: Um Caso Clássico de Porfiria e Porfiria nas Casas Reais de Stuart, Hanôver e Prússia, escritos pelos psiquiatras e historiadores Ida Macalpine e Richard Hunter. Segundo essa visão, Mary Stuart (1542-1587) seria a primeira personalidade documentada a passar a enfermidade adiante em sua árvore genealógica.

No entanto, há outras hipóteses para a instabilidade de George - em cujo reinado os Estados Unidos se tornaram independentes dos ingleses. Já na década de 40, falava-se em psicose maníaco-depressiva. Timothy Peters, da Universidade de Birmingham, num estudo do ano passado, prefere considerar a possibilidade de transtorno bipolar.

Como a porfiria não tem uma manifestação visual facilmente identificável em pinturas e não se desenterraram os nobres para fazer um diagnóstico retrospectivo, cravar explicações científicas definitivas é mais difícil que no caso do escancarado prognatismo mandibular.

Carlos II da Espanha / Crédito: Wikimedia Commons

Outra enfermidade que foi tida como praga endogâmica é a hemofilia, que teria se espalhado como verdadeira doença real por culpa da rainha Vitória do Reino Unido (1819-1901). Há que se considerar dois fatos. Primeiro, que Vitória provavelmente não herdou o gene hemofílico dos costumeiros matrimônios entre parentes - no caso dela, teria ocorrido uma mutação cromosômica espontânea.

Outra é que casamentos entre primos (Vitória se casou com Albert, seu primo de primeiro grau) raramente aumentam as chances de uma possível transmissão desse transtorno da coagulação sanguínea. Isso posto, Vitória, de fato, legou a hemofilia a algumas pessoas de sua farta descendência. Entre elas, figura o bisneto Alexei Nikolaevich Romanov, herdeiro do trono russo assassinado em 1918, aos 13 anos, pelos bolcheviques.

Tudo isso era apenas especulação até 2009, quando se publicaram os resultados de exames de  DNA feitos em ossos dos Romanov descobertos dois anos antes. Comprovado: Vitória passou ao menino que não foi czar a hemofilia B, segundo tipo mais comum da doença.

O rei Paquita

Características como elevado apetite sexual e loucura foram associadas aos Bourbons ao longo do tempo. O rei Fernando VI da Espanha (1713-1759) teria feito sexo com a esposa, Bárbara de Bragança, enquanto agonizava. Seu meio-irmão e sucessor, Carlos III, era obsessivo: fazia tudo exatamente nos mesmos horários. A mandíbula de Áustria, em virtude de ancestrais comuns, também se fez presente no rosto dos Bourbons.

Como os Habsburgos, eles também se casaram muito entre si. Uma das histórias mais curiosas está ligada à rainha Isabel II da Espanha (1830-1904) e ao seu marido, o rei consorte Francisco I (1822-1902). Eles eram primos em dose dupla — o pai dele era irmão do pai dela, e a mãe dele era irmã da mãe dela. Acontece que Francisco era gay, e Isabel começou a pular a cerca.

Nos salões e nas ruas de Madri, Francisco tinha o apelido de Paquita (Chiquinha). Existe até a possibilidade de os 11 filhos de Isabel (só 5 chegaram à idade adulta) não serem de Francisco. Por essa tese, o rei Afonso XII, bisavô do rei Juan Carlos I, seria fruto de um caso de Isabel com o capitão Enrique Puigmoltó. Se assim foi, as traições de Isabel serviram como antídoto contra os males da endogamia bourbônica.

A mandíbula desembarca no Brasil

A instituição do matrimônio consanguíneo levou à formação de um grande clã internacional de monarcas. O inglês e o russo médios tinham (e ainda têm) tipos físicos distintos, mas o mesmo não se podia dizer de dois soberanos que reinavam separados por milhares de quilômetros. George VI do Reino Unido (1865-1936) e o czar Nicolau II da Rússia (1868-1918) eram netos do rei Christian IX da Dinamarca, apelidado de O sogro da Europa graças ao sucesso dos casamentos políticos de seus filhos.

Os primos George e Nicolau mais pareciam gêmeos. Em 1893, quando George, então príncipe e duque de York, casou-se, a plebe presente à cerimônia, em Londres, chegou a se confundir ao ver o convidado Nicolau. 

Por essa época, a mandíbula de Habsburgo já havia cruzado o oceano e chegado ao Brasil. Produto de casamentos entre parentes e com diferentes sobrenomes dinásticos nas costas — Bragança, Orleans, Habsburgo, Bourbon —, o nosso dom Pedro II (1825-1891) também foi prognata.

Seu avô, dom João VI, era filho de um tio com uma sobrinha. Seu pai, Dom Pedro I, e sua mãe, a imperatriz Leopoldina (filha do imperador do Sacro Império Romano-Germânico e, portanto, Habsburgo de alta linhagem), eram primos em segundo grau. João, Pedro e Leopoldina tinham o queixo deslocado para a frente.

Em As Barbas do Imperador, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz defende que Pedro II deixou os pelos crescerem no rosto para parecer mais velho e respeitável. Reza outra lenda que o visual servia mesmo para camuflar o queixão.

A endogamia, no entanto, não se restringiu às monarquias europeias. Exemplos são encontrados no Egito antigo, onde havia casamentos entre irmãos. Cleópatra casou-se com dois, o Ptolomeu XIII e o XIV. Em Roma, ocorriam enlaces entre primos, caso de Nero e Claudia Octavia. Há indícios de que os incas na América do Sul também casavam irmãos e irmãs sem drama de consciência.

Ainda que haja nobres que gostem de se casar entre si, existe uma diversificação bem maior de fontes conjugais. O rei Eduardo VIII, em dezembro de 1936, abdicou do trono britânico para se unir a Wallis Simpson, uma americana duas vezes divorciada. Quem ficou no seu lugar foi George VI, o gago retratado no filme O Discurso do Rei e pai da rainha Elizabeth. Filipe de Bourbon, atual rei da Espanha, filho de Juan Carlos I e da rainha Sofia, casou-se em 2004 com a plebeia Letizia Ortiz.

O príncipe William, filho de Charles e Diana, encontrou nos corredores da faculdade sua carametade, Kate Middleton. Em 2018, seu irmão, príncipe Harry, se casou com Meghan Markle, uma atriz de descendência afro-americana. A outrora fechada família europeia de monarcas, de uns tempos para cá, é capaz até de aceitar em seu seio um descendente do lendário e irreverente camponês espanhol. Aquele do mosquito na boca do rei.


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