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Matérias / França

Luís XVI, o rei guilhotinado que deu fim aos mais de mil anos de monarquia francesa contínua

Alvo de uma das execuções mais memoráveis da história da humanidade, o fim do marido de Maria Antonieta causa debate

Raphaela de Campos Mello Publicado em 19/02/2023, às 13h00 - Atualizado em 23/03/2023, às 18h02

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Ilustração retrata Luís XVI em guilhotina - Arquivo Aventuras na História
Ilustração retrata Luís XVI em guilhotina - Arquivo Aventuras na História

Pouco antes de ter a cabeça decepada pela guilhotina, às 10h22 de 21 de janeiro de 1793, Luís XVI bradou à multidão: “Eu morro inocente de todos os crimes que me imputam. Perdoo os autores de minha morte. Rogo a Deus que o sangue que vocês derramarão jamais recaia sobre a França”. Sem mais delongas, os tambores rugiram e ele foi amarrado.

É dito que o rei subiu ao cadafalso, localizado na Praça da Revolução (atual Praça da Concórdia), em Paris, calmo, de barba feita e com o rosto descansado. Os termômetros marcavam somente 3 graus. Parte do povo gritava “misericórdia”; a outra, “vai dar certo, vai dar certo, os aristocratas serão enforcados, o despotismo expirará, a liberdade triunfará”, refrão emblemático da Revolução Francesa.

Do abade Edgeworth de Firmont o condenado ouviu: “Filho de São Luís, ascenda aos Céus!”. O rei da França tinha acordado às 5 horas naquela que seria sua última manhã. “Dormi bem. Eu estava precisando”, disse para seu mordomo, Jean-Baptiste Cléry, que o acompanhava em seu aposento na Torre do Templo, antiga fortaleza construída pelos templários e convertida numa prisão.

Sua esposa, a arquiduquesa austríacaMaria Antonieta de Habsburgo, e seus dois filhos, Maria Teresa e Luís Carlos, estavam alojados no andar de cima. Por volta das 6 horas, Edgeworth havia realizado uma missa de comunhão improvisando o altar sobre uma cômoda. Luís XVI passou o ofício inteiro de joelhos, tendo se confessado na noite anterior, quando também recebeu a visita de seus familiares.

Na véspera, aliás, a Convenção, que o havia condenado por “conspiração contra a liberdade da nação”, enviara uma delegação para comunicar-lhe o veredicto. O ministro da Justiça, Garat; Hébert, substituto do procurador da Comuna; e um dos advogados do monarca, Malesherbes, notificaram-no de seu fim iminente. Plácido a ponto de causar espanto, ele disse ao seu defensor: “Eu esperava o que suas lágrimas me informam; recomponha-se, meu caro Malesherbes”.

Luís XVI tinha 35 anos quando a Revolução Francesa eclodiu, em 1789; 38 quando fora deposto, em 1792; e 39 em sua execução pelas mãos do famoso carrasco Carlos-Henri Sanson. Diante da multidão ensandecida, em truculenta disputa por amostras do sangue real, morria não apenas um rei, mas também o Antigo Regime na França.

Parece legítimo pensar que houve, a partir desse dia, um antes e um depois, e que foi nesse 21 de janeiro de 1793 que iniciou, dessa vez para sempre, o Ano I da França moderna”, sustenta o historiador francês Bernard Vincent na biografia intitulada Luís XVI (ed. L&PM). As demais monarquias europeias se horrorizaram diante do ocorrido.

“Na Câmara dos Comuns, o primeiro-ministro Pitt, o Jovem, considerou-a ‘o mais louco e atroz feito que a história do mundo já teve oportunidade de atestar’. A Espanha imediatamente expulsou o embaixador francês e em dois meses aderiu à guerra ao lado da Áustria e da Prússia. Em São Petersburgo, Catarina, a Grande, ficou tão chocada pela notícia que ficou de cama. A Corte russa recebeu ordem de luto completo por seis semanas”, conta Munro Price, especialista em França do século 18, na obra A Queda da Monarquia Francesa (ed. Record).

Herdeiro do caos

Pode-se dizer que o acaso coroou o monarca francês, que assumiu o trono aos 19 anos, em maio de 1774. Na verdade, seu destino fora vaticinado quando ele ainda era uma criança. É que seu pai e seu irmão mais velho, herdeiros do trono francês, morreram, transferindo precocemente para ele a sucessão do reinado de seu avô, Luís XV.

Inepto, indeciso e fraco. Características marcantes do monarca, incensadas por parte da historiografia, são questionadas por uma análise mais abrangente, que também leva em consideração seu apreço pela ciência e pelas artes, o apoio decisivo na Guerra de Independência dos Estados Unidos, episódio que elevou a condição bélica e diplomática da França, embora tenha custado caro aos cofres públicos franceses, além de seus esforços pela tolerância religiosa e pela abolição tanto da tortura como da servidão.

Por outro lado, o fim da escravidão não estava entre seus intentos. “A monarquia francesa, desde Luís XIV, financiava o tráfico de pessoas escravizadas – havia 700 mil pessoas nessas condições no Império francês. Esse financiamento só foi abolido no período jacobino, quando também foi abolida a escravidão, em 1794”, pontua Daniel Gomes de Carvalho, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Revolução Francesa (ed. Contexto).

Luís XVI tinha, sim, uma prioridade inadiável: ordenar as finanças estatais. Era preciso encarar o monumental déficit público. Ele, então, implementou sucessivos cortes de gastos. Cargos públicos foram abolidos; salários limados; bem como o número de cavalos do estábulo real. Também tentou reformular o sistema fiscal francês, injusto e sufocante para o povo, tentando acabar com os privilégios da nobreza e do clero. Como era de se esperar, a aristocracia se enfureceu.

“A França tinha uma série de exceções (privilégios, diferenças locais, parlamentos, países de estado e países de exceções) que tornavam difícil Luís XVI aplicar essas medidas sem ser visto pela nobreza (ou melhor, pelas ‘nobrezas’, já que havia muitos tipos de nobreza, e eles estavam em constante conflito, caso da luta entre a nobreza de toga e a nobreza de espada) como um inimigo da liberdade”, analisa o acadêmico.

Segundo ele, o monarca se equilibrava numa navalha: advogava pelas reformas e, ao mesmo tempo, tentava preservar a ligação com os nobres, de quem dependia. Algo impossível de ser alcançado. Herdeiro tanto da política externa desastrosa de Luís XV como da opulência de Luís XIV, o soberano recebeu um fardo triplamente desfavorável: a economia, a política e o clima estavam fora do prumo.

Nas décadas anteriores, a França havia sofrido derrotas em série nas Guerras de Sucessão Espanhola (1701-1714), de Sucessão Austríaca (1740-1748) e dos Sete Anos (1756-1763). Além da humilhação internacional, teve de engolir uma gigantesca dívida pública. Sem falar que as péssimas condições climáticas no campo geraram escassez alimentar, aumento dos preços, fome e justificado descontentamento popular, tornando as condições de vida ainda mais críticas.

Em 1788, o desemprego em Paris era estimado em 50%. Em paralelo, os ideais Iluministas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade fomentavam o pensamento revolucionário. Faíscas ziguezagueavam por todos os cantos.

A Revolução se aproxima

Aconselhado pelo ministro Jacques Necker e pressionado pela nobreza, o rei convocou a Assembleia dos Estados Gerais, que se reuniram em maio 1789, em Versalhes, para, inicialmente, debater as demandas reformistas. Isto não acontecia desde 1614.

A Assembleia foi divididaem três ordens sociais (estados) que representa vam a nação: o clero, a primeira ordem, com 291 deputados eleitos; a segunda ordem, a nobreza, com 270 representantes; e o resto da população, o Terceiro Estado, com 578 delegados. O último grupo superava numericamente o clero e a nobreza juntos, porém seus votos valiam apenas metade daqueles das duas classes superiores. Simplesmente, não era justo.

Quadros mostram cenas da Revolução Francesa / Crédito: Arquivo Aventuras na História

Ao ter recusada a proposta de votos por cabeça, o Terceiro Estado unilateralmente se declarou uma Assembleia Nacional Constituinte. O rei revidou enviando suas tropas a Paris a fim de reprimir a iniciativa, mas a multidão se insurgia de modo irreversível. Em 14 de julho de 1789, a Bastilha, antiga prisão sím bolo da opressão do Antigo Regime francês, estava sob o domínio dos revolucionários. E, em 26 de agosto, era aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A massa, então, invadiu Versalhes. Capturada, a família real foi obrigada a morar no Palácio das Tulherias, em Paris. À medida que a Revolução se radicalizava, antigos apoiadores começaram a duvidar de seus benefícios, a exemplo de Honoré Mirabeau, defensor de uma transição pacífica para a monarquia constitucional, ao estilo da monarquia britânica.

Nesse clima de grande incerteza, um plano de fuga fora traçado pelo barão de Breteuil, antigo ministro da casa real; pelo marquês de Bouillé, antigo comandante do exército real no norte; e pelo conde de Fersen, embaixador sueco na corte francesa. Munida de passaportes falsos, a família real deixaria Paris e viajaria para o leste.

Mas a fuga fora interceptada em Varennes, a poucos quilômetros da fronteira, em 21 de junho de 1791. Críticos alegam que a lentidão e a indecisão do monarca ao longo de todo o estratagema favoreceram a recaptura – ele teria demorado horas para deixar as Tulherias e, uma vez na estrada, teria parado para conversar com seus anfitriões. Sem saída, tiveram de regressar sob escolta vistos como traidores.

Alguns historiadores alegam que o monarca esperava contar com o auxílio da Áustria, terra natal da rainha Maria Antonieta, e assim se reorganizar para retomar o comando do país. Mas há quem analise o episódio sob outra perspectiva, caso da historiadora Mona Ozouf, autora de Varennes: A Morte da Realeza (ed. Companhia das Letras).

Segundo ela, não há indícios de que, quando houve a fuga de Varennes, Luís XVI queria de fato fugir do país e invadir a França; o mais provável é que ele queria localizar-se em uma cidade mais favorável para melhor negociar com a Assembleia”, pondera Daniel.

O fato é que, antes de fugir, o monarca deixou redigido um longo documento endereçado ao povo, no qual, entre outros pontos, recriminava a Assembleia por tê-lo destituído de seus poderes, a ponto de sobrar-lhe um “simulacro” de realeza.

Depois do fiasco, manifestações começaram a pipocar exigindo a remoção do rei: “Agora todos compreendiam que um rei trazido à força para Paris debaixo de insultos e vigiado dia e noite não poderia dar fé à Revolução; que a Assembleia, ao restabelecer esse rei desonrado e instalá-lo como relíquia arcaica no meio de sua estrutura renovada, condenara-se a parecer sua cúmplice e a perder a confiança popular”, reflete Mona Ozouf.

O monarca prosseguiria, mas cerceado por novas leis. Em 3 de setembro foi declarada a Constituição Francesa de 1791, que estabelecia o estado de direito, impunha limites ao poder real e instituía a Assembleia Nacional Legislativa. As novidades se sucediam como que cuspidas por um caldeirão fumegante.

Meses à frente, mais uma reviravolta se somaria ao já caótico cenário interno. Sentindo-se ameaçada pela crescente articulação da Áustria e da Prússia para intervirem militarmente na França em defesa de Luís XVI, a Assembleia Legislativa declarou guerra aos inimigos em abril de 1792. O que só aumentou a suspeita de que o rei estaria mancomunado com os invasores.

Porém há que se olhar o conflito com lentes de aumento. “A guerra com as potências absolutistas havia tido o consentimento do próprio monarca, uma vez que que a França era uma monarquia constitucional. Se perdessem, ele poderia restaurar o absolutismo; se ganhassem, ele seria visto como um rei glorioso”, destaca Daniel.

Após a vitória francesa, o desejo de se abolir a monarquia estava cada vez mais perto de sua realização. “Thomas Paine, republicano desde o início da Revolução Francesa, dizia que Luís XVI não era um déspota, nem autoritário – porém, o problema, dizia ele, não era o monarca, mas a monarquia. Dessa forma, embora Luís XVI não fosse déspota, ele tinha à disposição instrumentos que, nas mãos de um monarca autoritário, poderiam ser a ruína da nação. O ponto, então, não era a pessoa, mas o sistema”, frisa.

O julgamento

Em 10 de agosto de 1792, a Comuna Revolucionária de Paris derrubou Luís XVI, enviando-o, três dias depois, à Torre do Templo, onde passou o restante de sua vida. Pouco tempo depois, a Revolução Francesa adentrava uma nova fase: em 20 de setembro era criada a Convenção Nacional, regime que vigorou até outubro de 1795 – quando se iniciou o Diretório –, e que fazia da França uma República.

Com isso, o monarca fora despojado de seus títulos e honrarias. E, dali por diante, passou a ser tratado como “cidadão Luís Capeto”. Outra reviravolta sacudiria a já combalida França. Em 20 de novembro daquele ano, foi encontrado um armário de ferro no Palácio das Tulherias, onde estavam escondidos documentos secretos que supostamente comprovavam as tramoias do rei junto com os aliados estrangeiros.

“Os historiadores dizem de forma unânime que o armário não continha provas de sua traição, mas apenas de sua atitude sempre indecisa e cambaleante. Embora não houvesse prova formal do conluio do rei com potências inimigas, os documentos foram a público apresentados dessa forma”, esclarece Daniel. Foi, então, aberto um processo contra o rei. A Convenção nomeou uma comissão para examinar os documentos e fazer um relatório.

De acordo com 691 dos 721 deputados, Luís XVI era um criminoso, culpado por traição. Mas qual seria a punição justa? Prisão, exílio ou pena de morte? O debate se mostrou uma teia embaraçada por opiniões diversas. Os girondinos queriam manter o rei deposto na prisão. Na qualidade de refém, ele poderia ser um trunfo em manobras futuras, além disso temiam tanto a radicalização política quanto o fortalecimento dos realistas, que ganhariam um mártir.

Já os Membros da Comuna de Paris e os deputados mais radicais, como Robespierre e Saint-Just, defendiam a execução imediata de Luís. A linha de raciocínio dessa ala era a seguinte: “Se Luís XVI fosse a julgamento, significaria que existia uma possibilidade de ele ser inocente. E se ele fosse inocente, toda a Revolução seria culpada, a Convenção seria criminosa, perderia o direito de existir e, consequentemente, de julgar”, expõe o docente.

Thomas Paine, por sua vez, considerava mais sensata a prisão seguida do exílio. Contrário à pena de morte, o deputado achava que a execução superestimava a importância do rei. “É o cargo de rei, antes que o detentor do cargo, que acarreta consequências funestas”, argumentou.

O republicano ainda salientou que a morte de Luís XVI era por demais arriscada, pois despertaria o ódio dos príncipes europeus e estimularia os sucessores do trono a recuperar o poder. Por último, chamou a atenção dos presentes para a necessidade de se reconhecer a ajuda que Luís XVI dera aos norte-americanos. Agora, só faltava o réu ser informado do que pesava contra ele.

Então, em 11 de dezembro, ouviu da Convenção que estava sendo acusado de alta traição e crimes contra o Estado, o que incluía episódios que remontavam aos primeiros dias da Revolução: ser conivente com os massacres nas Tulherias e no Campo de Marte, quebrar os juramentos, ter deixado uma insígnia revolucionária ser pisoteada em Versalhes, ter apoiado os sacerdotes refratários, encorajado a emigração, fugido para Varennes e sabotado a defesa nacional.

“Em sua própria defesa, Luís XVI argumentou que nada anterior à Constituição de 1791 poderia ser utilizado contra ele. E, em diversos momentos, culpabilizou seus ministros e recusou a autoria de diversos documentos apresentados por seus acusadores”, destaca Daniel. Como para muitos deputados a ideia de uma execução sem o devido processo legal soava indigesta e inconstitucional, ficou decidido que o monarca deposto fosse julgado.

Cinco dias depois, iniciaram-se as votações: 366 votos pela morte imediata, 34 pela morte com adiamento, 319 pela detenção e exílio, dois votos pelo trabalho forçado. Sob protestos de alguns deputados, foi feito um escrutínio retificativo no dia 18 de janeiro: 361 deputados votaram pela morte imediata, 360 contrários.

No dia 19, a última votação: o adiamento da morte foi rejeitado, por 380 votos contra 310. Inclusive, Philippe Égalité, primo do ex-rei, votou pela execução. “Aqueles que atacaram a soberania do povo merecem a morte”, justificou. O voto de Egalité foi visto como oportunista edesonroso, mesmo por aqueles que apoiavam a mesma punição. “Lamento muito pensar que Monsieur d’Orléans, meu parente, deve ter votado pela minha morte”, desabafou Luís.

Longe de ser consenso, a legalidade da decisão é até hoje discutida por historiadores. “Diante de invasões estrangeiras e de revoltas internas, a morte do rei privaria os realistas de seu líder natural. Esse é o argumento de Jean Clemént Martin, maior historiador do mundo sobre o tema. Para ele, apesar de toda a retórica dos jacobinos, a grande razão da morte do rei foi pragmática, isto é, tirar dos realistas seu líder, o que se explica pela lógica de guerra na qual a França estava praticamente sozinha contra toda a Europa”, afirma Daniel.

Na segunda-feira, 21 de janeiro de 1793, Luís XVI foi decapitado. O pedestal vazio à frente dele, outrora, apoiava a estátua de seu avô, Luís XV, demolida durante a Revolução. Talvez esta tenha sido a última imagem gravada em suas retinas. “A execução acirrou os problemas preexistentes, fortalecendo a posição dos monarquistas e dando mais argumentos antifranceses para os inimigos. Em contrapartida, a morte do rei retirou um aliado das potências estrangeiras dentro da própria França”, analisa.