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Matérias / Mundo

O lado tétrico de nosso convívio com os animais: As epidemias

De tempos em tempos, surge alguma manifestação da problemática relação

Sara Duarte Publicado em 28/11/2021, às 08h00

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Imagem meramente ilustrativa - Divulgação/ Pixabay/ useche70
Imagem meramente ilustrativa - Divulgação/ Pixabay/ useche70

Ainda que algumas variações de gripes se mantenham sob controle em determinadas regiões, o medo é contínuo em diversos lugares. E a razão disso é simples: vírus parecidos já dizimaram dezenas de milhões de pessoas em curtos espaços de tempo.

Tudo começou há cerca de 10 mil anos, quando o ser humano passou a domesticar os animais. Bichos antes esparsos na natureza passaram a ser aglomerados em criações. “Vírus e bactérias presentes nos organismos desses animais encontraram um terreno fértil para se disseminar”, explicou o infectologista Stefan Cunha Ujvari, autor do livro 'A História e suas Epidemias'.

Segundo o médico, é a ação humana que faz com que doenças de bichos se tornem nocivas para nós. “Hábitos como aglomerar os animais em locais sem condições de higiene, somados à invasão do meio ambiente e o consequente contato com espécies selvagens, colocam o mundo em constante ameaça.” O H5N1 foi descoberto em aves silvestres em 1925. Nelas, ele não causa problemas. Mas, em apenas três dias, mata oito em cada dez galinhas que infecta.

Representação de cenário de peste / Crédito: Divulgação

Em humanos, contaminados por secreções ou carne crua de aves infectadas, o vírus causa diarreia, falência renal e hemorragia. A falta de vacina e a gravidade dos sintomas fazem com que o mundo tema uma catástrofe. A OMS estima que o vírus possa infectar até 7,4 milhões de pessoas.

Mesmo assim, os pesquisadores acreditam que não há motivo para pânico. “Até agora a gripe aviária vem sendo transmitida de aves selvagens para aves domésticas e, destas, para o homem”, afirmou o médico Isaías Raw, de São Paulo. Para ele, somente se o vírus sofrer mais mutações, a ponto de ser transmitido rapidamente de pessoa para pessoa, é que haverá um real agravamento.

A seguir, veja quatro casos em que essa possibilidade de agravamento se concretizou.

Varíola

Do dia para a noite, os corpos e os rostos de homens, de mulheres e também de crianças começaram a ser tomados por grandes e numerosas pústulas. Como no Egito de 3000 a.C. ainda não se suspeitava da existência de bactérias e vírus, a moléstia foi atribuída a uma praga dos deuses. Era a varíola — ou “bexiga” (nome inspirado nas pústulas). Os doentes eram tidos como pessoas impuras e banidos do convívio social.

A origem da doença pode ter sido um bicho que os egípcios estavam acostumados a ter perto de si. “A varíola humana surgiu provavelmente a partir de um vírus mutante encontrado no camelo”, explica o infectologista Stefan Ujvari. A doença era transmitida pela saliva e pelas vias respiratórias. Até mesmo o contato com objetos de pessoas contaminadas era uma ameaça. Durante milênios, a varíola seguiu matando. Em 1157 a.C., ela fez sua vítima mais ilustre: o faraó Ramsés V.

Nos primeiros séculos da Era Cristã, a varíola invadiu o Império Romano e, a partir do século 16, migrou para a América, trazida pelos colonizadores europeus. Ao lado do sarampo, da gripe e da catapora, ela foi uma das grandes responsáveis pela destruição dos nativos americanos — juntas, essas quatro doenças chegaram a matar mais de 90% da população do continente. Enquanto a varíola seguia sem controle no Ocidente, os chineses já haviam encontrado uma forma primitiva de cura. Por volta do ano 1000, eles passaram a esfarelar crostas de lesões de varíola e assoprá-las nas narinas de crianças.

Restos mortais de uma transportadora de varíola da Era Viking / Crédito: Divulgação / The Swedish National Heritage Board

Isso fazia com que os organismos delas criassem defesas contra o vírus. No mundo ocidental, no entanto, o antídoto contra a varíola só surgiu em 1796, graças ao cirurgião inglês Edward Jenner. Ao observar que pessoas que ordenhavam vacas não contraíam a varíola, apenas uma variante mais leve chamada varíola bovina, ele decidiu fazer uma experiência.

Extraiu o pus da mão de uma ordenhadora doente e o aplicou em James Phipps, um menino saudável de 8 anos. O garoto contraiu a doença de forma branda e logo ficou curado. Seis semanas depois, Edward Jenner inoculou no mesmo menino o líquido extraído de uma pústula de varíola humana. Para surpresa (e alegria) de todos, o jovem James não contraiu varíola — havia sido imunizado.

Anos depois, esse procedimento deu origem à vacinação (e à própria palavra “vacina”, que faz referência às vacas). Em 1980, após ter provocado mais de 300 milhões de mortes ao redor do planeta, a varíola foi finalmente erradicada no mundo — o vírus, entretanto, não foi totalmente destruído: ainda é guardado em laboratórios de alguns países para ser usado como arma biológica em caso de guerra.

Quadro Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt / Crédito: Getty Images

Peste negra

Depois da varíola, que assombrou a humanidade por quase 5 mil anos, a zoonose mais persistente entre nós é a peste negra — nome inspirado nas manchas escuras deixadas por ela na pele. Causada por uma bactéria, a peste é essencialmente uma doença de roedores que, por intermédio das pulgas, pode ser transmitida ao homem.

De acordo com a arqueóloga Eva Panagiotakopulu, da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, a moléstia teria surgido em 1500 a.C., no Egito. Ratos das margens do rio Nilo teriam infectado outros ratos que viajavam em navios mercantes vindos da Índia. A bordo dessas embarcações, os roedores, então, levaram a praga para o resto do mundo.

O relato mais antigo da doença está na Bíblia, no episódio em que os filisteus são atacados por uma praga de camundongos ao roubar a Arca da Aliança. Em 542, a doença atingiu Constantinopla, capital do Império Bizantino. Cem anos depois, alcançaria a Europa, onde adquiriu forma de endemia (uma doença característica da região), graças às grandes quantidades de pessoas que viviam juntas, em péssimas condições sanitárias.

Entre 1347 e 1351, a peste matou 25 milhões de europeus, o equivalente a um terço da população da época. E ninguém conhecia a origem do mal. Desde a Antiguidade, acreditava-se que o ar continha “miasmas”, substâncias que, quando inaladas, podiam causar doenças.

Arte do período da Peste Negra / Créditos: Getty Images

Os médicos acreditavam que incensos e cigarros podiam afastar o miasma da peste - alguns andavam com máscaras com bicos que soltavam fumaça. No século 14, a peste já havia feito 200 milhões de vítimas. Nessa época se tornou popular a lenda do Flautista de Hamelin, que seria capaz de atrair ratos com sua flauta mágica e levá-los para longe das casas. Era um sinal de que já existia a identificação entre a doença e os roedores.

Aos poucos, os europeus foram aprendendo a combater a peste, matando os ratos e adotando medidas de higiene (saiba mais sobre a doença na matéria A Grande Peste, página 12 desta publicação).

Em 1894, o bacteriologista suíço Alexandre Yersin identificou o bacilo causador da doença. Foi então que se descobriu que as pulgas recolhiam a bactéria do sangue de ratos e a passavam para cães, gatos e seres humanos. Hoje a doença é facilmente tratável com vacina ou antibióticos e passou a ser chamada de peste bubônica. Os dados mais recentes da OMS indicam que há focos da moléstia na África, Ásia, América e países da antiga União Soviética, em locais com más condições sanitárias.

Imagem sobre a Peste Negra / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Gripe espanhola

Tida como uma doença sem importância, ela era tratada com repouso, chás e sopas. Mas a variação da enfermidade que surgiu naquele 1918 era duas vezes e meia mais letal que a gripe comum. Seu causador, o H1N1, era um vírus então desconhecido, para o qual o organismo humano não tinha defesas e a medicina não tinha remédio. O resultado foi devastador. Chamada de gripe espanhola, ela se tornou a maior epidemia do século 20.

No início, a doença também era uma gripe aviária. O H1N1 era restrito a aves silvestres, mas foi se modificando e migrou para os porcos. “Sabe-se que o H1N1 causava gripe aviária e suína, mas qual das duas espécies infectou o homem ainda é uma incógnita”, afirmou o infectologista Stefan Ujvari. Outra dúvida é o país em que a gripe espanhola surgiu, já que nenhuma das nações envolvidas na Primeira Guerra queria assumir que sua população estava sendo dizimada pela epidemia.

“Admitir que o povo estava enfraquecido no meio da luta era propaganda negativa”, explica Ujvari. Como a Espanha estava fora da guerra, sua imprensa ficou livre para divulgar a epidemia — e o país acabou levando a culpa. A versão mais difundida é que o primeiro grande foco da gripe espanhola teria surgido em um acampamento militar no Kansas, Estados Unidos.

Polciais observam vítima da Gripe Espanhola / Crédito: Biblioteca Nacional

“Acredita-se que os soldados tenham sido contaminados pelos porcos de uma fazenda vizinha”, afirma o historiador Cláudio Bertolli Filho, da Universidade Estadual Paulista, autor do livro 'A Gripe Espanhola em São Paulo: 1918'. “Quando embarcaram para o front na Europa, levaram consigo o vírus.” Sem anticorpos para combater a moléstia, populações foram sucumbindo. Da Europa a doença seguiu para o Sudeste Asiático, a Índia, a China, o Japão, o Caribe, a América do Sul.

No mundo todo, estima-se que o vírus tenha matado entre 30 milhões e 100 milhões de pessoas. No Brasil, a epidemia causou 300 mil mortes e fez uma de suas vítimas mais famosas: o presidente da República Rodrigues Alves, morto em 1919. “Aqui a doença era tratada com alho, limão, sais de ouro, quinino e canja de galinha”, diz Bertolli.

“Claro que nada disso combatia o vírus, e a gripe evoluía para uma pneumonia ou broncopneumonia graves. O indivíduo entrava em coma e morria em poucos dias”. Diante da gravidade da pandemia, a comunidade científica internacional se debruçou sobre o problema.

Em 1920, depois do fim do surto, o virologista americano Richard Shope isolou o vírus da gripe suína. Em 1933, os ingleses Wilson Smith, Christopher H. Andrewes e Patrick P. Laidlaw isolaram, pela primeira vez, o vírus da gripe humana. Quatro anos depois, seria lançada a primeira vacina contra a doença. O mundo voltaria a ter grandes surtos de gripe em 1957 e 1968, mas nunca com a mesma violência do início do século.

Soldados doentes de gripe espanhola nos EUA / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Aids

Silenciosamente, ela avançou. O primeiro caso conhecido da síndrome da imunodeficiência adquirida, a aids, ocorreu cerca de 40 anos atrás. Estima-se que o vírus da doença, o HIV, tenha contaminado 40 milhões de indivíduos em todos os continentes e matado 25 milhões.

Transmitido pela corrente sanguínea ou por contato sexual, ele ataca o sistema imunológico, deixando o organismo vulnerável a doenças — como, por exemplo, a pneumonia. Desde os anos 80, admitia-se que a aids poderia ter vindo de macacos.

Em maio de 2006, a teoria foi confirmada. Pesquisadores da Universidade do Alabama isolaram o vírus da imunodeficiência símia (SIV) achado nas fezes de um chimpanzé e o compararam com o HIV. “Descobriu-se que o HIV tipo 1, causador da pandemia, surgiu a partir de uma mutação do SIV encontrado nesse chimpanzé”, afirmou o infectologista Ricardo Sobhie Diaz. “Esse chimpanzé é comum na África, onde pessoas caçam primatas, comem sua carne ou se inoculam com seu sangue manuseando ossos e facas.”

Imagem meramente ilustrativa de vacinas / Crédito: Imagem de AdelinaZw por Pixabay

Depois de sair da África, o HIV chegou ao Haiti, país que atraía turistas norte-americanos. “Dali se espalhou por comunidades dos Estados Unidos e em seguida foi para o resto do planeta”, afirma Diaz. A eclosão da epidemia, na década de 1980, causou terror e preconceito.

Sem saber como se contraía a doença, as pessoas isolavam os soropositivos, evitando qualquer contato físico com eles. Como os primeiros casos foram registrados em homossexuais, a doença era chamada pejorativamente de “peste gay”. Nos Estados Unidos, por exemplo, em vez de investir a fundo em pesquisa, o governo conservador de Ronald Reagan pregava a abstinência sexual como forma de prevenção.

Em 1984, o HIV foi isolado pela primeira vez. Dois grupos de cientistas reclamaram a descoberta. Um era chefiado por Luc Montagnier, do Instituto Pasteur de Paris. O outro, era liderado por Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos.

O americano recebeu dos franceses uma amostra do HIV para análise e, com base nela, anunciou o achado como sendo seu — Robert Gallo só se retratou nos anos 90. De tempos em tempos, o vírus sofre mutações, o que torna difícil o desenvolvimento de uma vacina. Mas, hoje, a aids pode ser controlada por um tratamento feito por meio do uso de antivirais, prevenindo complicações.