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Matérias / Teatro

Peça em São Paulo encena questões não resolvidas e invoca desejo de criação de parque

Mutação de Apoteose encerra temporada no Teatro Oficina com reflexão sobre questões políticas e climáticas, homenagem a Zé Celso e luta por liberação do Parque do Rio Bixiga

Arthur Pazin Publicado em 25/07/2023, às 15h28 - Atualizado em 26/07/2023, às 16h22

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Cena da peça “Mutação de Apoteose” - Giovana Pasquini
Cena da peça “Mutação de Apoteose” - Giovana Pasquini

Em cartaz há quase dois meses, “Mutação de Apoteose” encerra sua temporada neste sábado, 29, no Teatro Oficina Uzyna Uzona, em São Paulo. A peça, composta por mais de 60 atores e atrizes em seu elenco, encena questões não resolvidas historicamente e invoca o desejo de criação do parque do Rio Bixiga, entre as ruas Jaceguai, Abolição, Japurá e Santo Amaro.

Com dramaturgia de Cafira Zoé e direção de Camila Mota, a primeira mulher a dirigir um espetáculo no Teatro Oficina, “Mutação de Apoteose” também incorporou ao longo do espetáculo, após a morte de José Celso Martinez Corrêa, um vídeo com uma homenagem ao criador do espaço, além de modificações no texto e subtexto com citações e referências a Zé Celso e Silvio Santos, figura antagônica ao diretor na disputa pelo terreno onde se idealiza o parque.

Em entrevista ao Aventuras na História, Camila conta que há dois 'fortes troncos' que constituem a dramaturgia do espetáculo. Uma delas é 'Os Sertões', obra de Euclides da Cunha, de 1902, que retrata sobre o massacre de Canudos, no final do século XIX. De acordo com a diretora, o livro-reportagem do escritor e jornalista brasileiro já vinha sendo trabalhado há muitos anos pelo Teatro Oficina como inspiração para a luta pelo Parque do Bixiga, que é uma luta que começa junto com a luta pela existência do teatro no atual espaço.

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A diretora Camila Mota |Crédito: Arquivo pessoal

Outro “forte tronco” para a peça, segundo Camila, são as canções compostas ao longo de décadas por nomes como Tom Zé, Arnaldo Antunes, e Chico César, que mesmo já apresentadas, durante a primeira temporada, em 2019, durante o Festival Literário de Paraty (Flip), ganharam nova significação. 

"A gente fez uma nova interpretação com outro roteiro, sem se preocupar em contar o enredo da guerra, mas pensando que esse livro dialogava com o tempo, com o que a escolha do repertório cria agora em 2023 com essa saga toda”, destaca Camila.

Entidades em cena delimitam territórios

Além de invocar “Os Sertões” como matéria para sua composição, Camila Mota conta que “Mutação de Apoteose” também coloca em cena entidades como “Cacilda”, dramaturgia de quase mil páginas, escrita por Zé Celso e Marcelo Drummond, que originou até hoje sete espetáculos. 

Para ela, entidades como “Cacilda”, em alusão a Cacilda Becker (1921-1969), e a luta de Canudos são importantes em cena principalmente após o trabalho realizado com a Universidade Antropófaga, que selecionou atores para o Teatro Oficina após a pandemia do coronavírus, fazendo do espetáculo a primeira experiência em multidão. 

“Essas entidades delimitam, demarcam os territórios ao longo da peça para botar fé que o teatro é uma tecnologia política, de luta e encenar determinadas questões que há séculos não são resolvidas, colocando em outros contextos onde necessariamente você tem que se deparar com outros pontos”, explica a diretora.

Segundo Camila Mota, uma das discussões que se obtém com isso, diz respeito à macropolitica brasileira, que, “contaminada pelo sistema político eleitoral, amarra completamente a possibilidade de ação ao travar questões”. 

“Existe a necessidade de a cada dois anos você demarcar seu ponto de vista ideológico, então você colocar questões que precisam ser resolvidas tanto macro quanto micro politicamente num teatro de outra maneira, abre possibilidade de você ser compreendida de outra maneira”, ressalta a artista.

As discussões são introduzidas na peça em meio a rituais ligados às raízes do Teatro Oficina, com a estética do teatro do local, em coros musicados e “repletos de um ecossistema fértil de encontro de diferentes gerações em todas as suas vastas multiplicidades de gênero, raça, desejos, geografias e modos de vida”, como descreve  a sinopse do espetáculo.

Diálogo contemporâneo

Para ilustrar esta relação entre a obra do passado e o presente, Camila Mota destaca que o espetáculo parte de “Os Sertões” para um diálogo com outros pensadores contemporâneos. “Um livro lançado no começo do século passado que já dialoga com diversos contemporâneos que juntam filosofia com biologia, como Emanuele Coccia, a partir do momento atual climático e a necessidade de rever a seleção natural do darwinisimo, essa ideia de competição, de que se chegou até aqui porque os mais fortes sobreviveram, essa ideia está sendo derrubada e isso dialoga com uma filosofia contemporânea”, explica a diretora.

Outro ponto alto da peça ressaltado por Camila são as simbologias de “Mutação de Apoteose”, como a cena do fundo do mar, trecho que inexistente em “Os Sertões”, desenvolvido, de acordo com ela, a partir dos caminhos deixados pelo autor para as discussões trazidas na atualidade, por exemplo, a mudança de legislação.

“Não é uma arte panfletaria. Não se superou o crime de estado, o racismo. Canudos nada mais é do que um assentamento do MST, é uma outra maneira de lidar com a terra, era um lugar bastante fértil do ponto de vista político, era a segunda maior cidade da Bahia. Tinha gente muito diferente, tinha beata, puto, vaqueiro, mas existia um senso de coletividade, um senso de trabalhar junto com o espaço, uma terra”, pontua Camila, que faz referência a um trecho da peça:

Carmen Silvia fala em um vídeo que Antônio Conselheiro pensou o primeiro plano diretor do Brasil, então o que foi massacrado em Canudos foi esse modo de existir. A República estava recém-formada e ela precisava se impor e se impôs na força”, reflete a diretora.

Luta de emergência climática

Ainda de acordo com Camila, ao invocar o desejo antigo de criação do Parque do Rio Bixiga, “Mutação de Apoteose” leva em cena uma luta de emergência climática. “A peça também surge para lutar por esse parque para que haja uma compreensão que não é uma luta entre duas pessoas, mas uma luta de emergência climática, de urbanismo, da cidade que a gente quer, de batalhar, uma luta que muita gente deseja”, afirma a diretora, que compara o projeto ao Parque Augusta.

Para ela, o papel do Teatro Oficina é agir como um “fomentador do desejo catártico de uma cidade melhor”. “O desejo de respirar, do seu corpo desejar o parque com sua racionalidade. O grande papel é provocar desejo no corpo irracional e que não é único, é alimentar esse lado e a Mutação de Apoteose contribuiu um pouco mais com isso”, conclui a diretora.

Projetado junto com o Teatro Oficina, há 40 anos, o Parque do Rio Bixiga foi aprovado  pela Câmara Municipal de São Paulo. O local, no entanto, não saiu do papel por não possuir “vegetação”, segundo a Prefeitura de São Paulo.

Como é imaginado o parque |Crédito: Divulgação

Desde então, moradores do Bixiga, liderados por Zé Celso, vêm cravando uma batalha há décadas para sua liberação, em um terreno pertencente ao grupo Silvio Santos. Neste meio tempo, o local quase se tornou um centro comercial e por algumas vezes também empreendimentos imobiliários. 

Enquanto a situação não é resolvida, o cenário é alvo de reivindicação para a criação do parque, que serviria como um espaço de lazer e “respiro” para os moradores da região, bem como de preservação da bacia do rio Bixiga, afluente que passa pelo local e da manutenção da proposta criada por Lina Bo Bardi para o Teatro Oficina.