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Matérias / Martinho Lutero

Há exatos 502 anos, Papa Leão X excomungava Martinho Lutero

Com o modesto gesto de pregar um panfleto na porta da igreja, Lutero criou uma cisão irreversível no cristianismo

Tiago Cordeiro Publicado em 03/01/2020, às 07h00 - Atualizado às 10h43

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Martinho Lutero em pintura - Wikimedia Commons
Martinho Lutero em pintura - Wikimedia Commons

Em novembro de 1517, toda a Europa era cristã — havia mais de um milênio no sul e no centro, com os últimos vestígios das velhas religiões, nos países bálticos, apagados no século 14.

Todos os aspectos da vida, incluindo a formação da família, o sexo, a alimentação e as guerras, seguiam as orientações dos papas — e isso mesmo quando mandavam envenenar os adversários e levavam suas amantes para dentro do Vaticano, como o infame Alexandre VI, que havia reinado até 1504.

O papa atual, Leão X, da família Médici, era acusado de farra e sodomia. A ele se atribuía a frase: "Já que Deus nos deu o papado, vamos aproveitar!". Mas, mesmo quando as lideranças religiosas não davam bons exemplos, quase ninguém pensava a sério em romper com a Igreja. O que se discutia, fazia mais de 200 anos, era realizar reformas, sem rupturas radicais.

De todas as figuras que poderiam conseguir mudar de fato os vícios estruturais do cristianismo, uma das mais improváveis era o modesto monge alemão Martin Luther — Martinho Lutero, como seria chamado em Portugal. Seria dele o pontapé inicial para provocar um racha definitivo no cristianismo e na Europa. Antes que o século 16 acabasse, o norte do continente era protestante. O sul, católico, mas ao custo de muitas, muitas mortes.

Contra as indulgências

Lutero era um monge de 33 anos quando divulgou um tratado de 95 teses a respeito da doação de dinheiro para garantir o perdão dos pecados. O até então discreto professor havia escolhido a vida religiosa para irritação de seu pai, Hans, arrendatário de uma mina de cobre em Eisleben.

Martinho deveria cursar direito. Até que, em 1505, prometeu a Santa Ana entrar para um mosteiro se sobrevivesse a uma tempestade de raios, da qual, obviamente, escapou. Lutero vivia em Wittenberg desde 1508.

As 95 teses de Lutero / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

A chamada venda de indulgências vinha sendo criticada havia décadas, mas ainda era realizada com frequência. Naquele momento, as indulgências eram para levantar verba para uma nova sede do catolicismo em Roma, a versão atual da Basílica de São Pedro, ainda hoje a maior igreja do mundo.

Os vendedores de indulgências se aproximavam da região de Wittenberg, onde Lutero vivia e lecionava. O monge vinha debatendo o assunto em seus sermões desde abril daquele ano de 1517. Perguntava, por exemplo, por que o papa, sendo um homem rico, precisava pedir dinheiro ao povo pobre.

E defendia que o pontífice provavelmente não estava bem informado a respeito das promessas absurdas que os cobradores faziam — eles diziam que não era necessário sequer se arrepender ou mudar de atitude, bastava pagar e pronto, uma passagem sem escalas para o paraíso.

Em 31 de outubro, Lutero respeitosamente enviou seu texto para seu superior, arcebispo de Mainz, Alberto de Bradenburg. Dias depois, em algum momento de novembro, afixou suas teses na porta da Igreja de Todos os Santos.

Mal foi notado. Era um acontecimento perfeitamente corriqueiro. "Era comum que os acadêmicos publicassem seus artigos de teologia nas portas das igrejas, para estimular o debate de ideias entre eles e com a comunidade. É o equivalente medieval de publicar um estudo num periódico científico", explica J. V. Fesko, professor de teologia do Seminário de Teologia Westminster, na Califórnia.

Não havia nada de novo no procedimento nem no conteúdo das teses, que repassavam críticas já feitas antes. Mas elas "viralizaram": em questão de poucas semanas, centenas de exemplares do texto estavam circulando pela Europa toda. Como um viral moderno, as ideias do monge foram escritas de forma simples e direta, no formato de frases curtas. E foram impressas com velocidade, e em grande quantidade, graças à invenção que Johannes Guttenberg havia apresentado ao mundo em 1455. 

O uso da imprensa e o estilo do texto deram a Lutero uma fama que ele não desejava nem esperava", diz o historiador Scott Manetsch, professor da Trinity Evangelical Divinity School, de Bannockburn, Illinois.

Excomunhão e fuga

A Igreja não gostou. O arcebispo Alberto mandou o texto para Roma, que exigiu que Lutero se explicasse. Ele então seguiu a pé até a cidade de Heildelberg, um importante centro universitário da região. Conseguiu convencer alguns monges, que eventualmente também romperiam com a Igreja. Mas voltou para casa com uma reprimenda de seus superiores.

Martinho Lutero pregando no Castelo Wartburg / Crédito: Wikimedia Commons

Ao longo dos meses seguintes, o responsável por cobrar as indulgências em Wittenberg, o monge João Tetzel, começou a publicar panfletos públicos contra as 95 teses. As réplicas e tréplicas entre Tetzel e Lutero viraram assunto em todo o continente.

Foi durante esses debates que Lutero começou a pensar mais seriamente em fornecer sugestões concretas para iniciar uma reforma da Igreja. Ele começou, de fato, a se comportar como um reformador a partir de 1519", diz o professor Fesko.

Em 1521, Lutero foi convocado a se apresentar de novo, desta vez na cidade de Worms. O imperador Carlos V queria debater as 95 teses e os demais textos do monge à vista de uma resposta publicada pelo papa Leão X um ano antes, a bula Exsurge Domine.

Intimado a negar suas supostas heresias, Lutero se recusou. Defendeu seus pontos de vista e foi embora antes que as autoridades eclesiásticas chegassem a uma conclusão a respeito de seu caso.

No caminho para casa, simulou o próprio sequestro e se escondeu no castelo de Wartburg, nos arredores de Wittenberg. Ali ficou, evitando ser executado por heresia, como já acontecera décadas antes com o tcheco João Hus

Enquanto isso, em Worms, Lutero estava sendo excomungado a distância — a partir da bula papal Decet Romanum Pontificem, lançada no dia 3 de janeiro de 1521, há exatos 502 anos.

Aproveitou a temporada no castelo, que duraria alguns meses, para começar a traduzir a Bíblia para o alemão — um crime para a Igreja, que proibia qualquer versão diferente da oficial, em latim.

Seu trabalho ficaria pronto em 1534 e ajudaria a dar forma e prestígio ao idioma alemão. "A linguagem que ele desenvolveu era de fácil compreensão e elegante. Seus leitores começaram a usar algumas de suas construções frasais", diz Scott Manetsch.

Com Lutero escondido, seus primeiros seguidores, em geral monges que concordavam com suas ideias, insistiam para que o incidente fosse usado como o início de uma grande reforma. Em terras alemãs, o líder público das ideias de Lutero era o professor Filipe Melanchton, que ajudou a delinear a religião que depois seria conhecida como luteranismo.

A qual, com várias de suas catedrais adornadas por imagens de santos e seus pastores e bispos usando vestes eclesiásticas, à primeira vista, não parece tão diferente assim do catolicismo. 

Os discípulos de Lutero seriam mais radicais. Na Suíça, o padre Ulrico Zwinglio pegou o bastão reformador e levou muito além: assumiu posições políticas e liderou grupos de camponeses armados. Na França, o advogado laico João Calvino seria perseguido e acabaria por mudar para a Suíça. Onde, depois da morte de Zwinglio, em 1531, tornou-se o líder religioso e civil do que pode ser considerado o primeiro país protestante do mundo.

Calvino é a figura mais importante da Reforma Protestante", afirma Carl Trueman, professor de história da Igreja do Seminário Teológico Westminster da Filadélfia.

"Ele retirou todas as imagens das igrejas, eliminou os cânticos e transformou os cultos em momentos para conversas sóbrias sobre a vida cristã."

A grande pergunta

Mas em que consistia a Reforma? Em geral, os novos centros cristãos defendiam que os fiéis deveriam conciliar a fé com o comportamento. Evitavam a adoração de santos, incluindo a Virgem Maria. Pregavam uma vida sem excessos, incluindo aí a proibição severa ao consumo de álcool e comidas doces ou gordurosas ou o luxo na decoração das casas. E defendiam que padres podiam se casar.

O próprio Lutero deu um exemplo explosivamente escandaloso ao se unir à ex-freira Katharina von Bora — uma das 12 religiosas que ele ajudou a fugir dentro de barris de um convento em Nimbschen.

Outros protestantes foram além e começaram a rebatizar os adultos, alegando que não faz sentido dar esse sacramento a crianças que não têm consciência a respeito do que está acontecendo. Esses foram os chamados anabatistas (de "batismo duplo"). Era uma atitude chocante para a época - um de seus defensores, Felix Manz, acabaria sendo condenado à morte a mando das autoridades de Zurique. Mas a linha sobreviveu e hoje são conhecidos simplesmente como "batistas".

Inquisição protestante

Em alguns aspectos, pouca coisa mudava. Lutero, por exemplo, se posicionou contra uma rebelião camponesa liderada pelo padre alemão Thomas Müntzer — entre 1524 e 1525, estima-se que 100 mil agricultores que pegaram em armas acabaram mortos. Lutero aceitou abrigar e proteger o religioso Andreas Karlstadt, acusado de participar — e a quem ele próprio havia denunciado como fanático.

Exigiu que ele escrevesse uma retratação, para caso fosse achado. Karlstadt havia ordenado a destruição de imagens da Virgem Maria e criado um culto espartano, sem vestes ou cânticos elaborados.

Calvino, por seu turno, tinha uma versão protestante da Inquisição. Seu alvo mais famoso foi o espanhol Miguel Servetus. Gênio renascentista, Servetus era uma figura respeitada na França, onde escreveu tratados de geografia, astronomia, matemática e medicina — ele chegou a descrever, com bastante precisão, a circulação de ar dentro dos pulmões.

E era perseguido por defender que a Santíssima Trindade era um conceito equivocado e que só existe um único Deus. Fugiu para a Suíça, imaginando que encontraria um ambiente aberto para debates teológicos. Acabou denunciado como herege pelo próprio Calvino. Morreu queimado numa fogueira em praça pública, no ano de 1553, em Genebra.

A Reforma Protestante estimulou os pensadores a questionar todos os dogmas da Igreja", afirma Scott Manetsch. "Mas, na medida em que o movimento se consolidou, seus líderes locais passaram a perseguir quem discordasse de suas próprias interpretações."

Ao longo do século 16, de fato, diferenças teológicas provocaram desentendimentos cada vez maiores entre os líderes de cada região. Lutero e Zwinglio, por exemplo, chegaram a bater boca publicamente a respeito da realidade da eucaristia — seria ela o corpo de Cristo verdadeiro ou apenas um símbolo?

Lutero morreria em 1546, já consagrado como o líder de uma nova religião. "Ele pretendia que suas ideias convencessem os líderes do Vaticano a reformar a Igreja", afirma Manesch. "Acabou se tornando fundador de uma religião cristã." 

De fato, rapidamente os protestantes tomaram a Alemanha, a Suíça, a Dinamarca, a Suécia, a Inglaterra — onde Henrique VIII, um rei católico que havia criticado Lutero por escrito, rompeu com Roma com o mero objetivo de poder se divorciar. Ao sul do continente, o catolicismo se manteria inconteste. Mas a um custo altíssimo.

Tempo de violência

Logo nas décadas de 1530 e 1540, rebeliões populares se espalharam pelos países da Reforma. "O questionamento da ordem estabelecida pelos papas levou algumas lideranças protestantes a colocar em xeque o poder dos nobres", afirma Carl Trueman.

Onde os protestantes se viram em maioria, seguindo as ideias iconoclastas de Calvino, Karlstadt e outros líderes, para quem as estátuas eram uma forma de idolatria, aconteceram várias invasões a igrejas católicas, com a destruição de vitrais, pinturas e estátuas — foi o caso de Zurique, em 1523, de Copenhague, em 1530, e de Augsburgo, em 1537.

A França se mostrou um caso à parte. Enquanto que, em geral, as lideranças dos países ao norte da Europa aderiram à reforma e protegeram seus pregadores, ao sul, os reis se mantiveram católicos e perseguiram os protestantes.

Mas, entre os franceses, num primeiro momento, a reação foi muito favorável aos huguenotes — como, por razões obscuras, eram conhecidos os calvinistas do país. Um grupo de 14 deles chegou a ser enviado para pregar no Rio de Janeiro em 1557, um momento em que os franceses dominavam a região. Até que a maré mudou.

A partir da década de 1560, o crescimento protestante, inclusive entre os nobres, foi combatido pelas lideranças políticas adeptas do catolicismo. O resultado foi uma sequência de batalhas campais e assassinatos nas cidades, intercalados por momentos de paz.

O episódio mais conhecido é apenas mais um desses incidentes: algo entre 30 mil e 300 mil huguenotes foram assassinados em todo o país durante o Massacre da Noite de São Bartolomeu, em 1572. Os huguenotes seriam definitivamente expulsos em 1685, espalhando-se pela Grã-Bretanha, Alemanha e outras regiões protestantes.

Na mesma época, a Europa Central, em especial a atual Alemanha e os países ao redor, seria varrida por uma série de conflitos com motivações religiosas. A Guerra dos Trinta Anos causou a morte de mais de 8 milhões de pessoas entre 1618 e 1648. "A cada vez que uma região mudava de governante, precisava mudar de fé.

Uma população majoritariamente católica, por exemplo, podia ver um rei protestante ser aclamado e alterar a religião de todos à força", diz Scott Manetsch. "Os conflitos entre diferentes províncias, e mesmo dentro delas, eram inevitáveis."

O conflito foi caracterizado por diferentes guerras, entre reis de territórios que hoje pertencem a Alemanha, Suíça, Suécia, Romênia, Dinamarca e França. Diante da confusão, os franceses intervieram na fase final — curiosamente a favor dos protestantes porque queriam minar o poder da dinastia dos Habsburgos, católicos austríacos.

Acabaram vencendo e conseguindo a independência dos Países Baixos. Levando a mais violência: entre 1568 e 1648, a região onde hoje ficam Holanda e Bélgica seria assolada por oito décadas de conflitos de fundo religioso entre diferentes famílias de nobres.

Em geral, a situação política se estabiliziaria só a partir do final do século 17. Mas, na Irlanda do Norte, a parte da Irlanda que ainda é do Reino Unido, ainda existe um certo estado de guerra entre protestantes e católicos. Os primeiros a favor da continuidade do domínio britânico; os segundos, pela união com a Irlanda, no sul — com o IRA, um grupo terrorista católico, entrando para o longo rol da infâmia do século 20.

Reação católica

O Vaticano demorou, mas se moveu diante do desafio pregado por Lutero na parede da igreja. E com alguma dose de humildade. Entre 1545 e 1563, o Concílio de Trento debateu as alegações dos rebeldes.

A Igreja manteve a mesma posição em vários pontos, principalmente a respeito do poder do papa como emissário de Deus na terra. O uso de imagens e a adoração aos santos também foram mantidos. Assim como as indulgências — que hoje são praticadas na forma de penitências e preces.

Ou, mais especificamente, penitências e preces são o pagamento, um sacrifício exigido do fiel, como o dinheiro era visto como um sacrifício. A comercialização foi proibida em 1567, pelo papa Pio V.

Tirando essa parte das indulgências, pouco mudou teologicamente. Contudo, na prática, a instituição se modernizou e se reorganizou. A Igreja passou a investir mais na formação dos padres e no uso de comunicação em massa por escrito, recorrendo também à imprensa. Também deu espaço às ordens com vocação missionária, especialmente os jesuítas. Estimulou então o envio de religiosos para as Filipinas, a Índia, o Japão, os Andes, o Brasil, o Caribe. Nesse sentido, a reação foi eficaz: os católicos ganharam o mundo.

"A Igreja Católica Romana moderna surgiu durante o Concílio de Trento", afirma Carl Trueman. "Ela se modernizou graças ao desafio apresentado pela Reforma Protestante. Nesse sentido, os reformadores podem ter rompido com a Igreja, no entanto também alcançaram o seu primeiro objetivo: moralizar e modernizar o Vaticano." Em outras palavras, Lutero venceu.