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Matérias / Revolta dos Malês

Revolta dos Malês: Os 189 anos do levante de escravizados africanos muçulmanos

Considerado o maior levante de escravizados da história do Brasil, a Revolta dos Malês começou em Salvador na madrugada de 25 de janeiro de 1835

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 14/01/2024, às 08h00

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Capa do livro 'Malês – A Revolta dos Escravizados na Bahia e Seu Legado' - Editora Planeta
Capa do livro 'Malês – A Revolta dos Escravizados na Bahia e Seu Legado' - Editora Planeta

A Bahia foi um dos estados que mais recebeu africanos escravizados pelos navios negreiros durante o período colonial. No início do século 19, porém, um grande número de revoltas aconteceu por lá. 

A principal delas começou na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835. A data é marcada pela Revolta dos Malês — um movimento capitaneado por africanos muçulmanos ainda pouco conhecido e estudado na História do Brasil. 

O tema é trazido à tona na obra 'Malês – A Revolta dos Escravizados na Bahia e Seu Legado' (Editora Planeta), de Gilvan Ribeiro; entrevistado na edição de dezembro da Aventuras na História por Marcus Lopes.

Esse episódio importante ainda é pouco conhecido devido à tendência de se privilegiar o ponto de vista da colonização europeia, no ensino da história oficial, em detrimento da perspectiva da população de origem africana", diz o autor. 

Vale contextualizar que, naquela época, grande parte da população brasileira era analfabeta, incluindo membros da elite econômica. Entretanto, os participantes da Revolta dos Malês se distinguiam por serem escravizados muçulmanos letrados em árabe; que lutaram para tomar o poder e instituir uma nova ordem política e social na Bahia.

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A Revolta dos Malês

A Revolta dos Malês, segundo explica Ribeiro, se destaca por ser um levante de escravizados africanos muçulmanos, letrados em árabe, com o envolvimento também de alguns libertos. O movimento ocorreu na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, em Salvador. 

Retrato de comércio feito por negros em Salvador, 1865 - Jean Leon Pallière/Domínio Público

"O plano dos líderes consistia em aproveitar a comemoração católica de Nossa Senhora da Guia — ocasião em que grande parte da população e das forças de segurança se deslocava para a Colina do Senhor do Bonfim — para tomar as ruas desguarnecidas ao alvorecer e cooptar outros escravizados que não faziam parte da conspiração, mas cuja adesão era esperada no calor dos acontecimentos", aponta. 

Com toda confusão ocorrida na capital, alguns mestres malês aproveitaram para irem até o Recôncavo Baiano com o intuito de sublevar o grande contingente de negros mantidos em cativeiro nos engenhos e plantações na zona rural. Uma tentativa de conquistar o poder e instituir uma nova ordem política e social. 

"Porém, uma briga de casal levou a mulher abandonada por um dos rebeldes a delatar a insurreição às autoridades, o que provocou uma batida policial em um dos núcleos revoltosos antes da hora prevista para as ações se iniciarem. Dessa forma, fragmentou-se o movimento, que contou com cerca de 600 combatentes no total, mas que em nenhum momento estiveram todos reunidos no mesmo lugar, favorecendo assim a repressão", contextualiza Gilvan.

Embora o episódio tenha sido muito importante e marcante na época, acabou  esquecido ao longo dos anos, visto que pouco se fala sobre os escravizados de origem muçulmana no país quando se trata do assunto. 

Ribeiro ressalta que entre os quase 5 milhões de escravizados traficados para nosso país, havia representantes de diversas nações africanas, com culturas e religiões diferentes. "Alguns deles haviam sido islamizados em seus territórios originários, tanto por força de jihads, as chamadas 'guerras santas' que tinham como propósito impor a fé em Alá aos povos vencidos, como por influência mística de reinos próximos". 

"Os hauçás, por exemplo, que protagonizaram uma série de revoltas na Bahia na primeira metade do século 19, vieram para cá com essa tradição muçulmana já consolidada", narra.

A Revolta dos Malés, embora tenha contado com a participação de alguns deles, é marcada por ter sido majoritariamente nagô — designação dada na Bahia àqueles que falavam iorubá, trazidos da África Ocidental, sobretudo do antigo Império de Oyó, localizado onde hoje fica o sudoeste da Nigéria e o sudeste do Benim. 

Os nagôs ainda, importante comentar, cultuavam — em sua maioria — o candomblé e "muitos dos revoltosos ainda estavam em processo de conversão ao islamismo, graças aos ensinamentos dos mestres malês", diz o pesquisador. Alguns deles, aliás, mais iniciantes, frequentavam as duas celebrações em paralelo. 

O termo 'malê', de origem iorubá, passou a ser usado no Brasil para se referir a africanos muçulmanos em geral, apesar de os hauçás se autodenominarem 'mussulmis'".

Apagamento malês

Gilvan Ribeiro aponta que, a partir da Revolta dos Malês, houve uma perseguição implacável aos africanos muçulmanos na região, o que praticamente acabou com o islamismo na Bahia naquela época. 

"A simples posse de orações escritas em árabe, abadás litúrgicos ou barretes, que são uma espécie de carapuça de uso religioso, já podia servir como prova de envolvimento de seus proprietários na rebelião, resultando em condenações à prisão e a centenas de chibatadas", contextualiza.

Retrato de comércio de escravos no Rio de Janeiro, obra de Jean-Baptiste Debret - Instituto Geográfico e Histórico da Bahia

Além disso, iniciou-se um processo de deportação em massa desses africanos, que passaram a ser extremamente vigiados e impedidos de se reunirem para seus cultos; o que fez com que os terreiros de candomblé — embora perseguidos — se tornassem uma alternativa viável para os afrodescendentes cultuarem uma religião mais próxima de suas origens, sem se renderem ao catolicismo imposto pelos dominadores europeus. 

Somente mais recentemente algumas comunidades muçulmanas ressurgiram em Salvador", diz o autor. 

"A ideia do sistema dominante também era varrer esse episódio da história para que seus líderes não se tornassem mártires a inspirar novas insurgências. Mas esse processo de apagamento, empreendido pelas autoridades na época, não resistiu ao tempo. Hoje a memória dos heróis malês continua viva graças aos enredos cantados pelos blocos afros do Carnaval da Bahia, como Ilê Aiyê, Olodum e Malê Debalê, cujo próprio nome homenageia os revoltosos", aponta. 

Superioridade intelectual

Um fato que chama a atenção diz respeito ao grau de conhecimento e de estudos destes escravizados, já que a alfabetização em árabe é crucial para a religião; visto que, na ortodoxia islâmica, o Alcorão só pode ser recitado na língua original para que se preserve a eloquência, a musicalidade e as rimas do texto sagrado. Evitando assim distorções em traduções que podem deixar as palavras com variações. 

"A sociedade branca da época era majoritariamente analfabeta, razão pela qual encontravam-se escravizados com nível intelectual superior ao de seus senhores, o que por si só já os predispunha à rebeldia", ressalta Gilvan

Visto a necessidade da religião, os mestres malês, de forma secreta, ensinavam as letras aos novos adeptos — muitas vezes atraídos ao islamismo pela oportunidade de adquirir esse conhecimento, algo que poderia distingui-los dos demais africanos e lhes conferir prestígio dentro da comunidade. 

"Pela análise dos amuletos com orações escritas em árabe, apreendidos com os revoltosos, é possível verificar diferentes estágios no domínio da língua. Enquanto os mestres e seus alunos com nível mais avançado escreviam corretamente, outros davam mostras de que ainda se encontravam em início de aprendizado", explica. 

"Ao longo da história, não só os malês, mas africanos de diversas procedências trouxeram ao Brasil avanços tecnológicos em variadas áreas, como na mineração, metalurgia, agricultura, arquitetura, construção civil, produção têxtil e em muitas outras. Algo não reconhecido pelo sistema escravocrata, que procurava passar a imagem de que se tratava de povos primitivos a fim de desumanizá-los e justificar assim a servidão", continua.

Além do mais, a superioridade intelectual dos escravizados mexia com o ego da elite branca, que aplicava castigo aos africanos para manterem o estigma da 'superioridade da raça'. Por conta disso, explica Gilvan, muitos cativos escondiam dos proprietários seus estudos, a capacidade de leitura e os conhecimentos mais sofisticados, que poderiam mexer com a vaidade deles. 

Homem negro sendo açoitado durante a Revolta dos Malês, obra de Jean-Baptiste Debret - Instituto Geográfico e Histórico da Bahia

"Os atributos intelectuais de um escravizado, eventualmente, podiam ser utilizados por seus senhores em serviços que eles próprios tinham dificuldade em desempenhar, como na contabilidade dos negócios, por exemplo", ressalta.

Por fim, Gilvan Ribeiro, autor de 'Malês – A Revolta dos Escravizados na Bahia e Seu Legado' (Editora Planeta), resgata alguns acontecimentos que contribuíram para a precipitação da revolta. 

Entre eles, a punição imposta ao mestre Ahuna, exposto à humilhação pública por seu dono, ao ser conduzido algemado pelas ruas de Salvador, até o porto, para ser enviado a um engenho em Santo Amaro, ser castigado e exercer trabalhos mais rudes, ao que tudo indica como represália pelo respeito, admiração e popularidade que gozava entre seu povo", diz. 

"Outro mestre malê, Pacífico Licutan, foi preso na cadeia municipal para ir a leilão, como um bem penhorado, a fim de saldar dívidas de seu proprietário, contraídas junto aos frades do Carmo. O seu senhor poderia tê-lo vendido antes para os próprios discípulos malês, que chegaram a se cotizar e a apresentar propostas de compra de sua alforria. A oferta acabou recusada, aparentemente, por pura arrogância. Esses fatos influenciaram diretamente na explosão do levante", finaliza.