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Matérias / Civilizações

Templários: anjos para os cristãos, demônios para os muçulmanos

Os árabes ficaram aterrorizados com os guerreiros cristãos que vinham tomar Jerusalém dos “infiéis”

Isabelle Somma Publicado em 22/10/2019, às 14h00

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Crédito: Wikimedia Commons
Crédito: Wikimedia Commons

“Glorioso seja Alá, o criador e autor de todas as coisas! Qualquer um que tenha tido conhecimento do que diz respeito aos franj apenas pode glorificar e santificar Alá, o Todo-Poderoso, pois neles se veem animais que são superiores em coragem e fervor para lutar, e em nada mais, assim como bestas são superiores em força e agressividade”.

Esse trecho de Osama Ibn Mounkidh, diplomata e cronista sírio que em sua autobiografia fez várias descrições dos cruzados, resume a opinião dos árabes muçulmanos sobre os franj — os cruzados que partiram do Ocidente no século 11 para a conquista da Terra Santa.

A truculência e a intolerância dos recém-chegados chocaram os habitantes do Líbano, da Síria e da Palestina e provocaram uma enorme comoção em todos os cantos do mundo islâmico. Afinal, os invasores católicos eram responsáveis por saques, massacres, atos de crueldade contra mulheres e crianças e — por Alá! — até canibalismo.

Para os árabes muçulmanos, a invasão dos cavaleiros de Cristo era, por si só, uma barbaridade. Não havia ocorrido desentendimento algum que justificasse as campanhas militares dos cristãos ocidentais e muito menos a selvageria com a qual os combates eram travados.

A desculpa dos invasores provocou ainda mais espanto: eles estavam ali para retomar os locais considerados santos pelos cristãos. Do ponto de vista árabe, o argumento era incoerente, já que os principais pontos de peregrinação cristãos estavam abertos a eles, como a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém.

Os cristãos de rito oriental — como ortodoxos, armênios, maronitas e siríacos — formavam o maior grupo na cidade, sagrada para muçulmanos e judeus. E, apesar de Jerusalém ser governada por muçulmanos, não havia restrição às práticas religiosas não islâmicas. A opção religiosa nunca impediu que judeus e cristãos ocupassem cargos importantes nos califados. No serviço público, os seguidores de Jesus Cristo eram até maioria.

É verdade que havia um grau de desigualdade entre os seguidores das diferentes religiões, marcada pela exigência do pagamento de um tributo, conhecido como jizya. Os cristãos e judeus eram obrigados a pagar e a taxa era calculada de acordo com a riqueza do contribuinte: quanto mais rico, maior o imposto. Os pobres eram isentos.

Mas, segundo a historiadora Carla Obermeyer, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, a quantia raramente era recolhida. Os peregrinos cristãos também eram recebidos em Jerusalém sem nenhuma restrição.

Eles podiam visitar a Via Dolorosa, o Monte das Oliveiras e a Igreja do Santo Sepulcro sem serem incomodados. Eles gozavam de liberdade de culto, assim como judeus e cristãos orientais de todos os segmentos.

Por outro lado, o respeito pela crença alheia não era uma característica dos recém-chegados, que chamavam de “cachorro depravado” o profeta Maomé.

“Os muçulmanos ficavam obviamente ofendidos com essa calúnia. E, como reverenciavam Jesus como um dos profetas enviados por Alá, os muçulmanos ficavam perplexos com o obstinado apego dos cristãos a uma ideia de Deus que contradizia explicitamente a descrição de Alá — a da Trindade cristã”, afirma David Waines, autor de An Introduction to Islam (Uma Introdução ao Islã, inédito no Brasil). Para os muçulmanos, Alá não pode ser dividido em três – Pai, Filho e Espírito Santo. Ele é único e onipotente.

Crianças em espetos

A imagem dos cruzados se deteriorou mais após a conquista de Antióquia e principalmente de Maara, cidades da Síria, na época. Como não tinham como se defender, os habitantes de Maara fizeram um apelo aos invasores cristãos.

Em troca da rendição, pediram para que fossem poupados. O acordo foi fechado. Mas, nas primeiras horas de 11 de dezembro de 1098, o exército cruzado entrou na cidade e desconsiderou o tratado.

Os habitantes foram massacrados durante três dias e os sobreviventes tornaram-se escravos. E até o que parecia inimaginável aconteceu: cristãos ocidentais devoraram infiéis árabes.

Os Cavaleiros Templários / Crédito: Wikimedia Commons

“Em Maara, os nossos faziam ferver os pagãos adultos em caldeira, fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas”, descreve o cronista franco Raul de Caén. Os relatos de canibalismo dos invasores se espalharam por todo o mundo islâmico, assim como a comoção dos seguidores de Alá com o destino de seus irmãos de fé.

Os cruzados bem que tentaram justificar o comportamento antropofágico, argumentando que, no cenário hostil da guerra, não tinham escolha. Segundo o historiador britânico Steven Hunciman, entre os cristão reinava a fome “e o canibalismo era a única solução”.

A justificativa, mesmo que verdadeira, era de difícil compreensão para os árabes, e o episódio de canibalismo, narrado tanto por cristãos como por muçulmanos, enterrou de vez qualquer chance de uma saída pacífica. Isso porque os guerreiros fanáticos e maltrapilhos eram conhecidos por terem hábitos pouco ortodoxos para a população do Oriente, qualquer que fosse a religião.

Entre esses costumes, se destacava o desprezo pelo banho. Os orientais não se surpreendiam que, além de violentos e sujos, ele fossem canibais.

“Na maior parte dos padrões, a sociedade islâmica deve ser considerada mais urbana e educada que a Ocidental no período da Baixa Idade Média (do século 12 ao 15) tanto na vida intelectual como nos valores do dia a dia”, afirma o historiador Marshall Hodgson em The Venture of Islam (A Aventura do Islã).

Segundo ele, os árabes eram urbanos e alfabetizados, enquanto a grande parte dos cruzados se formava de iletrados que vinham de sociedades agrárias, no período feudal. Por isso, os costumes de invasores e invadidos eram discrepantes, provocando estranhamento maior entre os árabes.

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Ossama Ibn Mounkidh / Crédito: Wikimedia Commons

Outro relato do cronista Ossama Ibn Mounkidh ilustra bem a diferença entre as duas civilizações. Ele conta que um médico franco se prontificou a cuidar de uma mulher que estava definhando em consequência da febre.

De pronto, diagnosticou que havia um demônio na cabeça da paciente e sugeriu que a raspassem. A saúde da mulher, claro, piorou. Em seguida, ele cortou, em formato de cruz, a cabeça com uma navalha até que os ossos do crânio aparecessem. Aplicou sal e em minutos a mulher morreu.

Em tempo: ela tinha apresentado melhora com o tratamento oferecido por um médico oriental, que receitara apenas uma dieta sem mostarda e alho.

Exemplos de intolerância

Com todas essas notícias se espalhando pelo mundo muçulmano no fim do século 11, ainda assim eles respeitavam os cultos de cristãos no período das Cruzadas.

“Não era o que acontecia entre os invasores”, afirma John Esposito, professor de religião da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e autor de What Everyone Needs to Know about Islam (O que Todos precisam Saber sobre o Islã). Não é à toa que até hoje os cavaleiros da fé são retratados no Oriente como exemplos de intolerância.

A tomada de Jerusalém, em 1099, ilustra bem esse sentimento. Para os cruzados, a batalha pela cidade era um autêntico ato de fé. Eles acreditavam ver anjos que os guiavam e, em seguida, combatiam a seu lado. Principais alvos: lugares sagrados. Até queimaram sinagogas e mesquitas com fieis judeus e muçulmanos dentro. O local onde Maomé teria ascendido aos céus, o Domo da Rocha, foi depredado.

Mesmo cristãos orientais morreram em massa porque conviviam em harmonia com fieis de outras religiões. O massacre nas ruas de Jerusalém teve como saldo 100 mil pessoas assassinadas — algumas queimadas vivas, outras degoladas.

Até então a dinastia fatímida, que dominava a região invadida, não havia esboçado nenhuma reação. Os fatímidas, assim chamados porque diziam descender de Fátima, filha de Maomé, e de Ali, quarto califa, estavam perdidos em uma crise interna.

O caos político no Oriente muçulmano vinha de longa data. Desde o início do século 10, o mundo islâmico se dividia entre duas facções rivais: a dinastia fatímida, com capital no Cairo, e a abássida, em Bagdá. Essa rivalidade política também se estendia à disputa pela liderança do mundo islâmico no sentido religioso

Os fatímidas eram xiitas, enquanto os abássidas, sunitas — e todos defendiam linhas de sucessão distintas de Maomé.

Os cruzados se rendem perante o Saladino / Crédito: Wikimedia Commons

Os relatos do que estava acontecendo nas terras invadidas pelos cristãos ocidentais, no entanto, começaram a provocar revolta entre os muçulmanos. Logo depois da queda de Jerusalém, um orador não identificado fez um discurso em uma mesquita de Bagdá:

“Vocês ousam vacilar à sombra de uma vida frívola como a de uma flor no jardim. Enquanto seus irmãos sírios têm por única morada o lombo dos camelos ou as entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado!”, descreve Amim Maalouf, cristão de origem libanesa em seu clássico As Cruzadas Vistas pelos Árabes.

É verdade que durante muito tempo os fatímidas e os abássidas ficaram nas capitais de seus impérios sem esboçar reação. Mas o castigo por tão pouca disposição em defender seus irmãos não demoraria a chegar.

O último califa fatímida morreu sem mesmo saber que já havia sido destronado por Saladino, líder da contraofensiva muçulmano em 1171. Os abássidas sofreram muito mais nas mãos dos mongóis. Hulagu, neto de Gengis Khan, arrasou Bagdá em 1258 e determinou que a família real fosse pisoteada pelos cavaleiros de seu exército.

Quase um século depois da chegada dos cruzados, os muçulmanos finalmente se organizaram para uma retaliação. Sob a liderança de Saladino, retomaram a cidade Jerusalém e colocaram grande parte dos invasores para correr.

Diferentemente de seus inimigos, Saladino ofereceu a possibilidade de exílio aos invasores. Mas, para isso, tiveram de vender suas riquezas para obter a liberdade. Os pobres foram redimidos do pagamento.

Outra atitude de Saladino foi lacrar nove das dez portas da Igreja do Santo Sepulcro. A única que ficou aberta ganhou uma chave, que foi confiada a duas famílias de árabes muçulmanos: os Nuseibeh e os Joudah. Ainda hoje, a chave do local sagrado permanece em poder delas.

Há mais de 20 anos, diariamente Wajeeh Nuseibeh abre e fecha a igreja e depois devolve a chave à outra família, que a guarda. A tradição parece fazer bastante sentido.


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