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O que é ser judeu?

Não há uma única forma de identificar os judeus. Eles não permaneceram identificados como tais apesar da história, mas por causa da história. Não fossem necessários, teriam desaparecido

Jaime Pinsky Publicado em 01/05/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Mesmo para aqueles que acham que judaísmo é apenas uma religião, o assunto provoca divergências. Não é por acaso que se conta a história do náufrago judeu que, após dez anos desaparecido, é encontrado numa ilha deserta por um navio que por lá passava. O capitão encantou-se com as estratégias de sobrevivência dele, que incluíam a construção de uma casa bastante sólida, a confecção de redes de pesca e arpões e, para sua surpresa, duas sinagogas. “Duas sinagogas?”, perguntou o capitão. “Para que construir duas sinagogas se você está sozinho na ilha?” “Muito simples”, respondeu o náufrago. “Naquela, eu rezo todos os sábados. Já na outra, eu não entro de jeito nenhum.”

Assim são os judeus religiosos: uns, ortodoxos; outros, conservadores; os terceiros, liberais; e ainda os reformistas – além de várias outras denominações. A convivência nem sempre é pacífica, mas a ausência de um poder central e de uma função sagrada para os rabinos (eles não falam em nome de Deus, não dão sacramentos, e qualquer ato religioso judaico pode ser realizado sem sua presença) faz com que as diferentes comunidades contratem diferentes tipos de rabino. Há, inclusive, rabinos gays e “rabinas”. Seu papel mais importante é adaptar leis milenares às práticas de cada grupo. É por isso que uma comunidade tão pequena como a brasileira – menos de 0,1% da população do país – tem tantas sinagogas, organizações e porta-vozes. É muito cacique para pouco índio.

Mas limitar o judaísmo à identidade religiosa não responde a todas as situações. É possível dizer que Philip Roth não seja um escritor judeu, que Woody Allen não é um cineasta judeu, que Marc Chagall não foi um pintor judeu, que Sigmund Freud não tenha sido judeu? O judaísmo está presente nas obras de todos esses gênios.

Uma parcela significativa da juventude israelense, como protesto pela inexistência do casamento civil no Estado de Israel, recusa-se a se casar na sinagoga e viaja até Chipre para oficializar sua união. Seriam esses jovens não-judeus?

Não há uma única forma de identificar os judeus. Eles não permaneceram identificados como tais apesar da história, mas por causa da história. Não fossem necessários, teriam desaparecido como povo. O grande segredo de sua permanência é que eles não permaneceram, mudaram. Nada mais distante de um judeu do gueto do que um outro que transcenda a idéia da nação. Quando, depois de muitos e muitos séculos, os judeus obtiveram sua emancipação como cidadãos – isso tudo só após a Revolução Francesa –, muitos saíram da cidadezinha para o mundo, tocando música, escrevendo, pintando, marcando, enfim, sua presença no mundo a partir do início do século 20.

Isso, contudo, só ocorreu para uma pequena fração de judeus. A maioria continuava nas aldeias e nos bairros pobres das cidades da Europa Oriental. E é nesses ambientes que surge o nacionalismo judaico. Deve-se localizar as raízes da identidade nacional judaica no século 20, na Europa centro-oriental, e atribuí-la a três fatores complementares: o esgotamento das formas de existência judaica nas cidadezinhas e nos guetos das cidades da Polônia e região; a “primavera das nações”, então em curso, que se apresentava como uma panacéia universal, remédio destinado a superar pobreza e perseguições (não foi, como sabemos); e o profundo sentimento de identidade cultural.

Embora a colonização moderna da Palestina pelos judeus tenha se iniciado no final do século 19, ela ainda não era muito significativa – em termos quantitativos – até a década de 1930. Mas a ascensão de Hitler ao poder e a “solução final” concebida e executada pelos nazistas (com o assassinato sistemático da maioria da população judaica européia) fez com que grande parte dos judeus não percebesse outro caminho que não a “reconstrução” de um Estado que pudesse funcionar como refúgio a todos os judeus do mundo que se sentissem perseguidos. Essa é a história de Israel.

Isso faz com que todos os judeus sejam israelenses e que todos os israelenses sejam judeus? Claro que não. Em Israel, existe um significativo número de israelenses árabes, muçulmanos ou cristãos. E bem menos da metade da populacão judaica do mundo vive em Israel, por qualquer critério que se queira identificar esses judeus.

Há sempre quem olhe o judeu de forma preconceituosa, francamente negativa ou falsamente positiva, mas nem por isso menos discriminatória. Há quem diga que existe um judaísmo gastronômico, outro ufanista (esgrimindo com violinistas, escritores e cientistas judeus que ganharam o Prêmio Nobel). Há mesmo quem ainda acredite que os judeus sejam o povo eleito. Tenho, contudo, a convicção de que sua experiência como discriminados habilitou os judeus a lutar contra qualquer discriminação, e o período da vida na aldeia isolada ou nos guetos desenvolveu em muitos judeus o ódio ao etnocentrismo, ao horizonte limitado. Há um judaísmo universal e ele pode ser praticado.

Jaime Pinsky é doutor e livre-docente em História pela USP e professor titular pela Unicamp. É autor de mais de 20 livros, entre os quais Origens do Nacionalismo Judaico e História da Cidadania, e diretor editorial da Editora Contexto.