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Matérias / Luiz Gama

A história de Luiz Gama, o advogado que libertou mais de 500 escravizados

Luiz Gama precisou lutar pela própria liberdade para, ao longo da vida, libertar judicialmente mais de 500 negros cativos

Raphaela de Campos Mello Publicado em 27/11/2022, às 17h00 - Atualizado em 02/03/2023, às 17h22

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Imagem de Luiz Gonzaga Pinto da Gama - Domínio Público
Imagem de Luiz Gonzaga Pinto da Gama - Domínio Público

O autor do pensamento acima conheceu as correntes da escravidão, valeu-se da astúcia
para rompê-las, estudou Direito às margens da Academia e defendeu, sem cobrar honorários, centenas de escravizados que, por direitos legais, puderam gozar da devida liberdade.

Quem senão Luiz Gama poderia ser considerado o maior advogado da história do Brasil?

Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo represálias”, o próprio se explicou em artigo publicado no Correio Paulistano, em 20 de novembro de 1869.

Não, ele não adquiriu o título de bacharel em Direito. Um jovem negro liberto, há pouco escravizado, dividindo os bancos acadêmicos com os herdeiros da elite oitocentista, representava uma petulância sem tamanho, além de uma afronta à ordem vigente.

Todavia, havia brechas. E foi através delas que Luiz Gamaconseguiu se infiltrar no
mundo das leis e fazer História. Gama chegou a frequentar aulas como ouvinte na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e também teve acesso
à biblioteca da instituição, o que lhe garantiu bons subsídios para sua educação autodidata.

Foi assim que ele conseguiu exercer seu ofício na posição de rábula, espécie de advogado prático desprovido de formação acadêmica.

“Ele defendia ações em primeira instância, por meio de autorização provisória obtida perante o Juizado Municipal ou definitiva no Tribunal da Relação ou pelo Instituto dos Advogados, a entidade de classe criada em 1943”, detalha Ana Flávia Magalhães Pinto na obra Escritos de Liberdade: Literatos Negros, Racismo e Cidadania no Brasil Oitocentista (Editora Unicamp).

“Ouso pensar que, para saber alguma cousa de Direito, não é preciso ser ou ter sido acadêmico. Além de que sou escrupuloso e não costumo intrometer-me de abelhudo em questões jurídicas, sem que haja feito prévio estudo de seus fundamentos”, disse certa vez.

Ousadia ele tinha de sobra, bem como brilhantismo, embasamento impecável e oratória afiada. De maneira que a Justiça teve de se curvar às suas alegações, libertando mais de 500 negros cativos.

Por ter escolhido defender a causa abolicionista e por ter sido bem-sucedido nas lutas travadas perante os juízes, sua fama atraiu uma horda de clientes. De modo que ele passava boa parte do dia “a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas
que lhes dera um bárbaro senhor; outros…inúmeros", relevou o poeta Raul Pompéia.

"E Luiz Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento. Toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante”, continuou em homenagem ao amigo, que também atuou fortemente na imprensa e no meio literário.

Intelectual Multifacetado

Além de trabalhar como advogado, Luiz Gama foi um grande jornalista. Destemido, articulado e irônico, levou aos jornais sua defesa dos ideais abolicionistas e republicanos. Denunciava quem quer que fosse e o fazia sem se resguardar atrás de pseudônimos, apesar das perseguições e das ameaças constantes.

Em 1864, fundou com Angelo Agostini o primeiro jornal humorístico ilustrado de São Paulo: o Diabo Coxo. Ainda colaborou no Cabrião, primeiro jornal a usar a caricatura como forma de sátira política no Brasil, no Radical Paulistano, no Polichinelo e também no Correio Paulistano, primeiro jornal diário da capital e amplamente popular.

Em 1859, já havia lançado seu livro de poesias Primeiras Trovas Burlescas. “Diferentemente de muitos poetas românticos, Luiz Gama não fala do lugar de expectador, é protagonista – e, como tal, elabora um enredo que transcende o lamento, a denúncia, a crítica, e apresenta uma alternativa para a sociedade escravocrata e para todos aqueles que dela se beneficiam”, analisa o sociólogo Luiz Carlos Santos em Luiz Gama (Selo Negro).

À verve literária se somou a adesão à maçonaria – ao lado de Rui Barbosa, ele fundou a
influente loja maçônica “América” – como também ao Partido Republicano Paulista (PRP).
Nesses locais, invariavelmente, se deparava com membros que defendiam os ideais republicanos atrelados à manutenção do trabalho escravo ou à abolição lenta e gradual, ambos posicionamentos inaceitáveis, no entender de Gama.

“Tais divergências não impediram a ação política do poeta negro, que transitou firme e seguro em campo minado”, destacou Luiz Carlos Santos.

Luiz Gama encarnou o intelectual ‘humanista’, no sentido renascentista da palavra, do intelectual que tem o domínio profundo de diversas áreas do saber, mas que se mantém conectado com os mais candentes problemas de seu tempo”, definiu Silvio Almeida, advogado, filósofo, professor e presidente do Instituto Luiz Gama.

Luiz Gama foi além da retórica jurídica ou do uso instrumental da página dos jornais.
Fez uso de seus laços de amizade, redes de sociabilidade e expertise jurídica para combater a escravidão brasileira. Ele jamais deixava passar em branco os atos de injustiça e violência contra negros, pobres, imigrantes e desvalidos”, amplia Lucimar Felisberto dos Santos, historiadora, pós-doutora pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora do Centro de Altos Estudos e Pesquisas Afrikana e Afrodiaspórica do Instituto Hoju.

Diferentemente de outros negros abolicionistas, como os jornalistas Ferreira de Menezes e José do Patrocínio ou o engenheiro André Rebouças, somente Gama tinha vivenciado o drama da escravidão, o que certamente adicionou ao seu ativismo o tom visceral.

“A experiência do cativeiro pode responder por sua atitude aguerrida”, avalia a acadêmica.

Um herói encoberto

Mesmo assim, sua trajetória e seu legado ainda são pouco conhecidos entre os brasileiros. Não por acaso.

“Homens negros e mulheres negrasforam atuantes em seu tempo, inclusive utilizando
a ciência e a arena jurídica, a música e o teatro, a literatura e a imprensa como espaços
de luta, de diálogo, de conexão e de aproximação. Muitos daqueles foram embranquecidos, entretanto, muitos outros foram apagados da história, por historiadores inclusive”, denuncia Lucimar.

Para o caso específico de Gama, a docente apresenta a seguinte argumentação: “A memória coletiva a respeito de suas habilidades jurídicas e de sua luta pela liberdade não foi de interesse nacional e nem daqueles que elaboraram os currículos escolares tradicionais”.

Então, deixemos que ele mesmo comece a contar sua notável história: “Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguezia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, por às 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na Igreja Matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.”

Luiz Gonzaga Pinto da Gama era filho de Luiza Mahin, africana da Costa da Mina, mulher
livre e quitandeira que participou ativamente das revoltas dos escravos e, numa delas,
desapareceu. O pai, branco e fidalgo, descendente de portugueses – cujo nome fora ocultado por Gama – ficou com o garoto após Luiza ter deixado a Bahia.

Fanfarrão e jogador, derreteu a fortuna da família com seus divertimentos. E, em 1840, vendeu o próprio filho, então, com 10 anos de idade, como escravo para um comerciante
e contrabandista do Rio de Janeiro chamado Antônio Pereira Cardoso.

Porém Luiz Gama havia nascido livre. Livre! Arrancado de sua mãe e, pouco depois, de
sua terra natal, o menino ficou à mercê do desconhecido e das confabulações do acaso num país escravocrata que, devido às pressões dos donos de terras – dependentes da mão de obra africana –, se demorava mais do que todos os outros a deixar de sê-lo.

No Rio de Janeiro, Gama passou uma temporada na casa de um cerieiro português que comercializava velas e escravos. Em seguida, foi vendido para o contrabandista
e alferes Antonio Pereira Cardoso, fazendeiro do município de Lorena, com quem
rumou para a capital paulista.

Por não ter despertado o interesse de nenhum comprador, virou o encarregado da copa, das roupas e dos sapatos na residência do senhor Cardoso, localizada na Rua do Comércio.

Foi ali que Gama conheceu um personagem crucial em sua biografia: Antonio Rodrigues do Prado Junior, jovem de Campinas que havia se mudado para São Paulo para concluir seus estudos. Com ele o escravizado de 17 anos selou um elo fraternal e, de quebra, aprendeu a ler e a escrever.

Um ano foi o suficiente para que Gama pudesse se localizar em sua própria história, como também nas regras que delimitavam seu mundo.

“Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes”, contou.

Aos 18 anos, adentrou a Força Pública da Província de São Paulo – órgão que pode ser
comparado à atual polícia –, onde serviu até 1854, quando foi dispensado devido a uma acusação de insubordinação.

Gama alegou que havia sido insultado por um “oficial insolente” e que, frente a isso, o ameaçou. Resultado: ficou preso por 39 dias, durantes os quais lia e enfrentava crises de insônia.

Durante o período em que trabalhou para a Força Pública, nas horas vagas, atuava como copista para um escrivão e como amanuense no gabinete de Furtado de Mendonça, delegado catedrático da Faculdade de Direito – que lhe facilitava o acesso aos livros.

Na Secretaria de Polícia, tornou-se assistente de Mendonça e, contando com o apoio dele, se iniciou no mundo do Direito. Lá permaneceu até 1868, quando foi demitido por incompatibilidade política com os conservadores. Era inconveniente um empregado da polícia se envolver com “questões de liberdade”, segundo conselho de Mendonça.

Porém Gama escolheu não refrear sua atuação na luta antiescravista só para preservar seu emprego e a relação com seu mentor. Seguiu o caminho que mais sentido conferia aos seus dias.

Ousadia e brilhantismo 

Além de conhecer em detalhes a história das leis formuladas no Brasil do século 19, Gama estava a par dos ardis criados pelos magistrados e outros funcionários da Justiça para impedir a alforria dos negros escravizados.

Havia uma rede de proteção para que figuras da elite saíssem ilesas dos crimes cometidos. Um exemplo notório é o caso de José de Barros Dias, que, mesmo denunciado por sua escravizada Agostinha, em 1860, por excessos de castigos, fora liberado de qualquer punição.

Em um processo de 1869, Gama peitou um dos principais juízes da capital, Rego Freitas, a quem exigiu que “respeitasse o Direito e cumprisse seu dever, para o que é pago
com o suor da nação”.

A grande linha de argumentação do abolicionista consistia em fazer valer na prática o que já estava sacramentado pelas leis. A exemplo da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, que proibia o tráfico negro transatlântico, determinando que seriam livres os africanos que entrassem nas províncias brasileiras após essa data – a famosa lei “para inglês ver”, ou seja, para acalmar as pressões abolicionistas da Inglaterra sobre o Império.

Sem a virulência de Gama nos tribunais para que esta lei fosse cumprida, muitos escravizados teriam continuado em seus cativeiros quando poderiam legalmente viver
em liberdade. O mesmo teria acontecido com seus defendidos que, assim como ele, foram escravizados sendo livres de nascença.

Sem falar naqueles que podiam pagar cartas de alforria, mas eram impedidos pelos seus senhores de serem libertos. O defensor ainda alegava que “escravo que mata senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”.

O baiano também participou de uma importante ação judicial de alforria coletiva em nome de 217 escravizados. Tudo começou com uma nota no jornal, publicada em junho de 1869, que despertou a atenção do advogado. Ela informa va que a família do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, morto em Portugal, estava brigando na Justiça pelo espólio do abastado patriarca.

Porém ele havia expresso em seu testamento o desejo de que todos os escravos de sua propriedade fossem libertos após sua morte. O gesto não era de todo incomum. Alguns fazendeiros, diante do fim, sucumbiam aos apelos morais e religiosos de suas consciências, provavelmente para escaparem do inferno.

Gama rastreou o caso para confirmar se os 217 escravizados de Ferreira Netto seriam alforriados. Acabou descobrindo que os negros continuavam cativos. Deu-se início ao processo judicial, apelidado pela imprensa de “Questão Netto”: a maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas.

Ao fim da batalha, fora estabelecido pela Justiça um prazo de 12 anos, a partir da feitura do testamento, ocorrida em 1866, para a libertação daqueles escravizados. Porém, quando o grande dia chegou, em 1878, das 217 pessoas representadas por Gama, apenas 130 ainda estavam vivas.

As 80 vidas perdidas no percurso jamais foram assimiladas por Gama, que nunca se sentiu vitorioso com a ação. Talvez, por isso, ela tenha sido encoberta pelas brumas do quase esquecimento.

Refazendo a caminhada de Luiz Gama, esta miríade de histórias e de desfechos, alguns
redentores, outros não, fica claro que a Abolição da Escravatura no Brasil, em 1888, não foi um gesto de clemência eternizado pela assinatura da princesa Isabel, mas um árduo e sangrento fruto do enfrentamento e das lutas de figuras negras influentes como Luiz Gama, José do Patrocínio e André Rebouças, e, sobretudo, da resistência – pessoal e coletiva – dos próprios escravizados.

Quantos legados Gama nos deixou. Conhecê-los é crucial para o futuro que almejamos consolidar enquanto sociedade. “O primeiro foi derrubar definitivamente a ideia de que abolicionistas e republicanos eram todos brancos. Ainda hoje podemos considerar que Luiz Gama se tornou um elo entre as experiências negras anteriores e posteriores ao 13 de maio”, sustenta Lucimar.

Soma-se a isso a altivez com que transitou por espaços de poder sendo quem era. “No Brasil escravocrata, assim como no Brasil racista, escrever e ser lido eram duas formas de se manter próximo do poder.

Imagine o impacto de se demonstrar que este era o lugar de um ex-escravizado no início dos anos 1860”, reflete a docente. Quantos negros não fizeram da trajetória de Gama referência para suas próprias lutas por educação, trabalho e pertencimento social?

Precisamos lembrar que o advogado e jornalista foi, sobretudo, alguém que refletiu sobre as barbáries do seu tempo e contribuiu para que a sociedade da época fizesse o mesmo.

Como destaca a historiadora Lígia Fonseca Ferreira, grande estudiosa de Gama, ele  satirizou os políticos e os costumes, parodiou as instituições arcaicas, criticou os “doutores” e trouxe à tona os temas da corrupção, do preconceito racial, do embranquecimento dos mulatos que renegavam as raízes e do anticlericalismo.

“Ofereceu, assim, uma agenda de luta política, bem como ferramentas essenciais para o enfrentamento do racismo sistêmico e estrutural, do ‘memoricídio’, do ódio racial e das profundas desigualdades que recheiam as páginas dos noticiários atuais”, avalia Lucimar.

Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882, em decorrência de diabetes, e foi sepultado no Cemitério da Consolação, sob o pesar de 3 mil pessoas numa São Paulo de 40 mil habitantes.

Não chegou a testemunhar a Abolição da Escravatura nem a Proclamação da República, mas, sem dúvida, abriu caminho para os movimentos sociais que continuam a lutar por um país menos desigual.

Demorou, mas, em 2015, o autodidata recebeu da Ordem dos Advogados do Brasil Nacional o título de advogado honorário; em 2018, o título de Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil, além de ter seu nome inscrito no Livro dos Heróis da Pátria; e, em 2021, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de São Paulo (USP) – distinção atribuída pela academia para pessoas consideradas importantes para determinada área, ainda que não tenha formação superior – em reconhecimento às suas contribuições
para as áreas de Direito, Literatura e Jornalismo. A honraria fez de Luiz Gama o primeiro brasileiro negro a receber o título.