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Matérias / Brasil

Fora Vintém, parte I: O imposto que derrubou o reinado de Dom Pedro II

Com o Rio de Janeiro passando por um intenso processo de urbanização, a Coroa criou uma tributação bastante específica

Coluna — Branco Di Fátima, jornalista e escritor Publicado em 20/02/2021, às 10h00 - Atualizado em 05/08/2022, às 17h00

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Dom Pedro II por volta de 1848 - Domínio Público, via Wikimedia Commons
Dom Pedro II por volta de 1848 - Domínio Público, via Wikimedia Commons

Em meados de 1862, os bondes do Rio de Janeiro ganharam uma grande atualização: passaram a ser movidos à vapor. Antes disso, o veículo sobre trilhos era movido à tração animal, mas funcionava como principal meio de transporte carioca. No total, comportava cerca de trinta passageiros sentados em sete ou oito longos bancos de madeira.

Com as laterais abertas para espantar o calor diabólico (os primeiros modelos que circularam eram fechados e com janelas), os carros de dois eixos fabricados pela John Stephenson Car Company mediam cerca de cinco metros de comprimento por dois de largura. Com balaústres e lampiões, cabiam pessoas de pé. Sua altura podia chegar quase aos três metros. A passagem custava entre 100 e 200 réis, cobrada pelo cocheiro, com vista de graça para o Pão de Açúcar e o Corcovado.

A rua do Ouvidor, no centro, era a passarela do bom gosto nacional, com as suas lojas de artigos importados, cafés, boticas, cabeleireiros, perfumarias, alfaiates franceses e redações de jornais.

A tenebrosa zona portuária desenvolvia-se para atender à crescente demanda comercial, com a construção de aterros, estaleiros e armazéns. Mas com duas décadas de serviços públicos em 1879, foram os bondes que redesenharam a capital do Segundo Reinado.

Nesse processo de urbanização, bairros surgiram em áreas longínquas. A cidade se esparramou pelas zonas norte e sul: Jardim Botânico, Laranjeiras, Maracanã, Catete, Grajaú. Ruas estreitas e esburacadas ganharam iluminação a gás. Um túnel ligou o bairro nobre de Botafogo e o inóspito Copacabana. Palacetes e sobrados foram erguidos em regiões então inabitadas. Aos poucos, a área central era relegada às estalagens, bordéis e cortiços, como o mal-afamado Cabeça de Porco.

O Rio já tinha mais de 300 mil habitantes, com um número considerável de negros forros, imigrantes e escravos, e quatro empresas de transporte: a Cia de São Cristóvão, a Botanical Garden, a Ferro-Carril de Vila Isabel e a Carris Urbanos. Juntas, carregavam nada menos do que 33,7 milhões de passageiros por ano.

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Jornais criticavam o estado decrépito dos bondes do Rio / Crédito: O Mequetrefe, Ano 1880, Ed. 222.

Os primeiros bondes do Império eram financiados e operados por estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. O diretor da Gazeta de Porto Alegre, o jornalista Carlos von Koseritz, ficaria impressionadíssimo com o sistema carioca de transporte, em 1883: “não creio que exista outra cidade no mundo em que haja tantas linhas”. E, fora Nova York, é mesmo pouco provável que houvesse.

Todo mundo pegava o bonde: políticos, estivadores, homens de negócio, senhoras da alta sociedade, comerciantes, prostitutas e, por vezes, até o imperador D. Pedro II. Em breve seriam lançados o bonde distinção (para casamentos), o bonde assistência (um tipo de ambulância) e o bonde mortuário (para os cortejos fúnebres).

Não que as viagens a dez quilômetros por hora fossem lá muito confortáveis. Acidentes e atropelamentos eram bem frequentes. Os solavancos provavam que “já não se enjoava só no mar”, como ironizou a Gazeta de Notícias quanto ao estado “decrépito” de alguns veículos. Quem sofria mesmo eram os burros e as mulas, cerca de cinco mil no total, que não aguentavam mais que três ou quatro anos na labuta diária.

No 57º aniversário de Independência do Brasil, no ano de 1879, não havia muito o que comemorar. Os cofres públicos estavam à míngua. As exportações recuaram 15% e o déficit atingiu os 62%. Para agravar essa lamúria, a seca que castigava o Norteste tinha devastado o cultivo do algodão e a pecuária, à época, alicerces da economia sertaneja. O imperador prometera vender “até a última joia da Coroa” para combater a crise hídrica, porém, a fome era o prato do dia no sertão brasileiro.

As informações que chegavam ao Rio não eram nada animadoras e tendiam a piorar. Rebanhos definhavam no campo. Plantações sumiam na poeira. Pelo menos cem mil flagelados perambulavam pelas ruas do Recife e de Fortaleza, sem teto e sem comida. 

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Ilustrações de duas crianças desnutridas pela Grande Seca / Crédito: O Besouro, Ano 1878, Ed. 16.

Em julho de 1878 o jornal 'O Besouro' publicara ilustrações de duas crianças desnutridas, olhos esbugalhados, pele e osso, desenhadas a partir de fotografias do cearense Joaquim Antônio Corrêa. Na legenda podia-se ler uma grave denúncia: “ainda há quem lhes mande farinha falsificada”.

Entre os meses de junho e setembro, o jornalista fluminense José do Patrocínio escreveu sob a rubrica Viagem ao Norte, para a Gazeta de Notícias, os relatos da tragédia: “corpos emagrecidos”, “rostos escaveirados”, “afetados da diarreia”, “sem medicamentos”, “ciscando o lixo” e “invocando com voz fraquíssima o nome de Deus”.

O governo imperial lutava contra os desígnios de São Pedro. Distribuía alimentos e roupas, perfurava poços, liberava créditos e auxílios. Até uma comissão científica foi designada para estudar tal fenômeno. No entanto, o socorro chegava a uma parcela ínfima dos flagelados e poucos empreendimentos avançavam. O dinheiro acabava antes ou então era devorado nos caminhos tortuosos entre a capital e o interior.

Até meio milhão de vidas padeceram na Grande Seca, agravada por uma epidemia de varíola. Mas a catástrofe pode ter sido ainda maior, acreditam alguns pesquisadores. As joias da Coroa nunca foram vendidas e, logo, as autoridades também teriam que lidar com outro problema potencializado pela estiagem.

Em janeiro de 1878, quatro décadas antes de Virgulino Ferreira da Silva ser rebatizado como Lampião, 'O Retirante' alertara para “os bandos de criminosos enxotados pela fome”, “audaciosos e perversos”, que “arremessam-se sobre as propriedades”. Era a gênesis do cangaço, mas que teria que esperar a sua vez na fila das pendengas nacionais. Antes, a economia precisava ser salva.

O governo imperial propôs a criação e o aumento dos impostos no Orçamento de Estado para 1880. Enquanto no Parlamento as medidas para combater o déficit fiscal eram consenso, a imprensa criticava as novas taxações sobre o tabaco, os selos, a compra e a venda de escravos, os salários, o comércio de bens importados e os transportes. Nem a loteria escapou às garras da União — a regência abocanharia até 30% do capital arrecadado com o jogo de azar.

O então ministro da Fazenda, Afonso Celso de Assis Figueiredo, futuro Visconde de Ouro Preto, era tido como um excelente administrador, mas um monetarista ortodoxo. Ministro da Marinha durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), não se preocupava com a popularidade das medidas desde que desafogassem o erário. Já D. Pedro II, leitor voraz, acompanhava atentamente os ataques desferidos pelos mais de 50 jornais que circulavam na capital.

Em reunião na casa do senador José Inácio Silveira da Mota, na rua do Carmo, 63, políticos republicanos abraçariam a oportunidade para enfraquecer a monarquia. Para surpresa da Coroa, os inimigos usaram uma desculpa perfeita para afoguear o povo.

No dia 13 de outubro de 1879, o Parlamento aprovou o Orçamento de Estado sob a Lei Nº 2.940. O texto previa aumento de 20 réis, um vintém, no preço das passagens de bonde no Rio de Janeiro. A taxa elevava o custo das viagens entre 10% e 20%, e entraria em vigor a 1º de janeiro de 1880.

Se a imprensa era abertamente contrária à medida (com exceção notável do Jornal do Commercio, que botava panos quentes no debate), o reajuste também dividiu a opinião pública e as empresas de transportes. Quem pagaria o aumento?

A Botanical Garden comprometeu-se a desembolsar 140 contos de réis por ano para não penalizar os passageiros e, em troca, pedia a prorrogação da sua concessão de transporte. Porém... as suas três concorrentes não estavam dispostas a negociar. Por fim, sobrou para o carioca bancar o novo imposto.

O vintém era uma moeda de níquel ou cobre, estampada com a efígie de D. Pedro II e o brasão imperial, de menor valor em circulação na época. Muito embora inédito, o imposto não representava um reajuste significativo na tarifa do bonde. Para se ter ideia, a maioria dos jornais custava o dobro disso, como a Gazeta de Notícias, O Fluminense ou o Diário de Notícias. Um vintém equivalia ao preço de 9 gramas de manteiga ou 29 de toucinho, 45 de carne seca, 139 gramas de açúcar, ou um pé de alface.

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Lopes Trovão no Largo de São Francisco de Paula / Crédito: Revista Ilustrada, Ano 1880, Ed. 189.

É aí que entra a malandragem dos astutos republicanos. De todos os setores afetados pelo orçamento do ministro Figueiredo, apenas o transporte mobilizava os diferentes estratos sociais. Afinal, o bonde era um veículo das massas e os seus trilhos serpenteavam dezenas de quilômetros pelos subúrbios. Com intervalos de 15 em 15 minutos, inclusive, já havia forçado a valorização dos imóveis nas áreas mais recônditas da então capital.

Dois meses e meio depois das primeiras reações negativas ao projeto do ministro Figueiredo, a campanha Fora Vintém tomou as ruas. Por volta das 17h de domingo, dia 28 de dezembro de 1879, cerca de cinco mil pessoas reuniram-se em frente ao palacete do Barão de Mauá, no Campo de São Cristóvão, para ouvir o médico e jornalista de ofício José Lopes da Silva Trovão, de 31 anos. Ter cinco mil manifestantes num meeting — como a imprensa chamava os comícios — era, segundo a historiadora Sandra Graham, um evento “sem paralelo na história recente da cidade”.

Republicano convicto, conhecido como orador brilhante e por seu 1,90 metro de altura, o magricela Lopes Trovão apareceu de terno fraque e cartola numa das janelas do palacete para bradar contra o imposto. Falou por 45 minutos, enquanto o povo observava a sua fisionomia invulgar (pescoço fino, rosto afilado, nariz aquilino, queixo pontiagudo). Ligeiramente curvado, em meio à euforia das palavras, com o discurso entrecortado pelos aplausos, insistiu que era preciso levar a reclamação ao imperador.

Lopes Trovão também leu, com o seu inseparável monóculo, a petição que havia escrito. Bem fundamentado, com citação de leis e dados, o texto dizia que a cobrança do vintém era ilegal: “[fazia] cair o imposto diretamente sobre os passageiros e não sobre a renda das empresas”.

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Manifestantes no Largo de São Francisco de Paula / Crédito: Revista Ilustrada, Ano 1880, Ed. 189.

Convencida da ilegalidade, sob gritos de “Viva à soberania nacional”, a multidão partiu naquela noite abafada rumo à Quinta da Boa Vista, a dois quilômetros dali. A fúria poderia ter sido aplacada com uma boa conversa amiga, mesmo que o aumento não fosse revogado. Mas faltou traquejo por parte do monarca.

A poucos metros do palácio, na rua São Luiz Gonzaga, o Fora Vintém foi recebido pelo delegado Félix José da Costa e Silva, chefe da Polícia Municipal. A ordem era clara, e seria cumprida por 200 policiais armados de grossos cassetetes: retroceder a marcha por bem ou por mal. Na pior das hipóteses, agentes secretos à paisana, infiltrados no povaréu, poderiam aplicar os seus conhecimentos de capoeira para deter o movimento.

Lopes Trovão argumentou que “o povo [usava] de um legítimo direito pedindo ao primeiro magistrado do país a revogação de um regulamento”. Félix retrucou que D. Pedro II estava doente — o que é pouco provável — e “não [podia] receber ninguém”. Apesar das inúmeras queixas, não houve violência.

Pouco depois das 20h, o Fora Vintém atravessou o Campo de São Cristóvão, em direção ao centro, sob cantos de “viva a República”. Já na altura do matadouro velho (atual Praça da Bandeira, 44), foi alcançado por um mensageiro a cavalo. D. Pedro II mandava avisar que receberia uma comissão do movimento.

Ninguém sabe ao certo porquê o monarca mudara de ideia. Talvez, advertido por algum conselheiro real, tenha percebido a enrascada que acabara de se meter. Mas era tarde demais. Dessa vez, foi Lopes Trovão que não quis conversa. A negação de D. Pedro II correu pelas linhas do telégrafo e, em poucas horas, pode ter alcançado ao menos 13 províncias do império. Começava a arder o pavio do motim.


+Leia a segunda parte do texto clicando aqui.


+Sobre Branco Di Fátima

Nasceu em Diamantina, Minas Gerais, em 1983. É Jornalista e escritor. Doutor em Comunicação pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Tem trabalhos publicados em veículos nacionais e estrangeiros, como HuffPost, Portal Uai, Público e Jornal Record. É autor do livro-reportagem Dias de Tormenta (Geração Editorial, 2019).


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