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Matérias / Millán-Astray

O templo da inteligência

Enquanto Unamuno dedicava-se ao ofício das Letras, Millán-Astray se empenhava no ofício das Armas

Ricardo Lobato* Publicado em 20/11/2022, às 15h00 - Atualizado em 27/09/2023, às 16h12

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Á esquerda imagem de Miguel de Unamuno e à direita imagem de José Millán-Astray - Domínio público via Wikimedia Commons
Á esquerda imagem de Miguel de Unamuno e à direita imagem de José Millán-Astray - Domínio público via Wikimedia Commons

Querido(a) leitor(a), o título acima pode parecer que estamos nos referindo a um episódio da Antiguidade. Talvez um templo grego ou quem sabe um romano. Mas não, a história aqui contada é mais atual.

Os termos que formam “o Templo da Inteligência” não fazem referência a uma expressão em sentido figurado, mas, sim, destacam as exatas palavras proferidas por seu autor em um episódio que viria a marcar um dos grandes eventos do século 20 – que, de tão
fantástico, já foi até objeto de questionamento.

O autor é o ensaísta, poeta e filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), um dos maiores intelectuais do século 20 e um dos dois personagens principais desta coluna – que se passará dentro dos muros da Universidade de Salamanca, a quarta mais antiga da Europa e a mais antiga da Espanha, onde Unamuno foi nomeado reitor por três vezes entre 1902 e 1936.

Já o segundo protagonista destas páginas não poderia ser mais diferente. Enquanto Unamuno era um homem dedicado ao ofício das Letras, o outro era dedicado ao ofício das Armas. Agora, estamos falando do general José Millán-Astray (1879-1954), o fundador da Legião Estrangeira Espanhola e braço direito de Francisco Franco na Guerra Civil que devastou a Espanha entre 1936 e 1939.

Nossa história é um dos capítulos desta guerra, que arrasou o país, dividiu famílias e que,
mesmo transcorridos quase cem anos, ainda tem marcas profundas na sociedade espanhola.

O encontro entre opostos

Para entender o encontro entre estas duas figuras tão distintas, é preciso voltar no tempo e compreender o contexto em que não apenas a Espanha, mas também a Europa estavam mergulhadas na metade dos anos 1930, o auge dos totalitarismos.

Enquanto as grandes potências coloniais, como Inglaterra e França, mais se ocupavam de problemas domésticos e de questões de seus impérios ultramarinos, no resto do continente o debate entre fascismo e comunismo ditava a ordem do dia.

Na Europa Oriental, principalmente na Rússia, Stalin colhia os frutos de seus planos quinquenais – ao mesmo tempo em que o resto do mundo padecia das consequências do Crash de 1929, o PIB da URSS crescia a passos largos.

E é justamente pelas consequências da quebra da Bolsa que, na Europa Central e do Sul, crescia aquele que viria a ser o desafio do século: o fascismo. Primeiro com Mussolinina Itália em 1922, depois com Hitler na Alemanha em 1933, a ideologia de extrema-direita começava a se espalhar e ganhava corpo na Península Ibérica, principalmente
na Espanha.

Ainda abalada pela derrota para os Estados Unidos na Guerra Hispano-Americana
(1898), que pôs fim a um decadente, mas outrora glorioso império, a Espanha do início do século 20 era um país fechado. Por um lado, esse isolamento beneficiou a nação na guerra de 1914 a 1918 (quando os espanhóis se mantiveram neutros), por outro, porém, fez com que sua sociedade parasse no tempo.

No pós-guerra, enquanto o resto da Europa vivia a efervescência dos “loucos anos
1920”, com a animada vida noturna nas cidades de Paris e Berlim, em Madri, a vida seguia um ritmo mais lento. Todavia, no meio de tantas mudanças ocorrendo
ao redor, seria impossível manter o dia a dia parado por muito tempo.

E, de fato, a década de 1930 veio com tudo. Logo em 1931 teve fim a monarquia, ocorrendo a ascensão da esquerda, que apregoava reformas em uma sociedade
estagnada e ainda marcada por forte influência dos militares e da Igreja.

Estes dois setores, monarquistas, tentaram mais de uma vez uma revolução para restaurar a Casa Real, mas sempre eram freados – até que veio 1936. Com a ascensão de
Francisco Franco nas fileiras militares, o general conseguiu unificar sob sua figura todas as forças conservadoras antes dispersas e, com o apoio da Itália e da Alemanha, iniciou uma guerra para, em suas próprias palavras, “defender a civilização cristã ocidental”.

É neste ponto que entram nossos dois protagonistas. Os termos usados por Franco foram inicialmente escritos por Unamuno. O intelectual – que era contrário às reformas promovidas desde 1931 –, inicialmente apoiou os revoltosos, ditos Nacionalistas,
contra os Republicanos que estavam no poder.

Mas, ao perceber que a mudança de regime estava caminhando para uma escalada autoritária à direita, e depois de ver vários de seus amigos sendo perseguidos pelas forças de Franco, retirou seu apoio – ato que o colocou frente a frente com Millán-Astray. O general, conhecido por suas inúmeras mutilações em combate, assumiu uma função menos bélica no staff de Franco: além de atuar como seu braço direito, ficou encarregado da propaganda nacionalista.

Millán-Astray, de início, queria mais engajamento de Unamuno com o regime, mas vendo a negativa do reitor, começou a monitorá-lo. O episódio, ocorrido em 12 de outubro de 1936, no “Dia da Raça” (atualmente “Dia da Hispanidade”) foi o embate derradeiro entre os dois.

Era também a abertura do ano letivo na Universidade de Salamanca e, com
uma audiência repleta dos falangistas de Franco, e que contava com a presença do arcebispo da cidade e da própria mulher do caudilho, Unamuno pediu a palavra.

Seu protesto contra o regime era silencioso, mas, para um intelectual especialista em paradoxos, manter o silêncio frente a tudo o que presenciava seria o maior deles. Questionou, perante os presentes, como alguém poderia gritar “viva a morte” – o brado das tropas do general – e seguir os ensinamentos de Cristo.

Diante da réplica de um Millán-Astray estupefato, que ficara sem palavras diante do discurso de Unamuno, este prosseguiu, dizendo que aquele era “o Templo da Inteligência”, e que “vencer não é convencer”, pois faltava “razão e direito na luta”.

Após o evento, o filósofo foi posto em observação pelo regime, morrendo meses depois em prisão domiciliar, sem chegar a ver o fim da guerra. As palavras de Unamuno, que ousou desafiar os falangistas em plena ascensão, ainda são um episódio bastante contado na Espanha e, mesmo transcorridos quase cem anos, permanecem atuais.


Ricardo Lobato é sociólogo e mestre em economia, oficial da reserva do exército brasileiro e consultor chefe de política e estratégia da Equilibrium – consultoria, assessoria e pesquisa @equilibrium_cap