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Matérias / Guerras

Quem se importa com a paz? O mundo tem hoje mais conflitos do que no fim da Guerra Fria

Com o fim da Guerra Fria, muitos achavam que os países teriam mais cooperação comercial entre eles e mais respeito por meio dos acordos de paz

Ricardo Lobato* Publicado em 13/01/2024, às 09h00

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Registro da Guerra da Ucrânia - Getty Images
Registro da Guerra da Ucrânia - Getty Images

Do ponto de vista geopolítico, 1989 foi no mínimo interessante. Iranianos e iraquianos se recuperavam de uma longa guerra sem vencedor. Já os soviéticos saíam de forma melancólica do Afeganistão depois de dez anos de combates. Os norte-americanos se preparavam para invadir o Panamá e depor o presidente-ditador, Manuel Noriega.

Enquanto isso, os brasileiros votavam pela primeira vez em quase 40 anos de forma livre e direta para presidente. E os chineses perceberam, após forte repressão na Praça da Paz Celestial, que a então nova liberdade econômica não era sinônimo de liberdade política.

Contudo, o acontecimento mais fantástico daquele ano foi a queda do Muro de Berlim, o maior símbolo da Guerra Fria, em 9 de novembro, quando a população derrubou a barreira que separava a Alemanha entre ocidente capitalista e oriente socialista, dando início ao declínio da União Soviética – que acabaria no Natal, dois anos mais tarde.

Sem o “Império Vermelho” e o antagonismo do “fantasma do comunismo”, o mundo bipolar que emergira das cinzas da Segunda Guerra Mundial deixava de existir, abrindo o caminho para os Estados Unidos reinarem. Era o início da era unipolar ou, como ousou chamar o filósofo e economista Francis Fukuyama, o “fim da História”.

Mas o simbolismo da queda do muro, tido por muitos como uma vitória do liberalismo contra a opressão, se mostrou o começo de um período conturbado, com muitas crises econômicas, crises sociais e novas guerras – que, por sinal, vieram de controvérsias mal resolvidas da Guerra Fria e do vácuo de poder no antigo mundo soviético.

A virada de século (e a chegada de um novo milênio), mesmo com todos os avanços científicos da era informacional, também não trouxe paz: surgia a “Guerra ao Terror”, contra um inimigo que se esconde nas sombras e é difícil combater.

Hoje, o mundo de 2023/2024 possui mais barreiras e também mais conflitos que o de 1989. Se naquele ano eram cerca de 15 muros espalhados pelo globo, atualmente são mais de 70; e aproximadamente 110 “pontos quentes” ao redor do mundo contra menos da metade no fim dos anos 1980.

Porém, importante dizer que não foram poucos os processos de paz, as tentativas de negociação e as conferências em busca de resoluções, trazendo ao cenário atual ainda mais complexidade. Como entender a História diante dessas forças antagônicas?

Nas próximas linhas vamos visitar sete guerras contemporâneas. Algumas, como a do Congo e de Nagorno Karabakh, antecedem o próprio fim da Guerra Fria. Outras, como a do Sudão, possuem o velho elemento dos conflitos por razões étnicas em sua origem. Há ainda batalhas que nem começaram, mas as causas estão postas – é só uma questão de tempo.

Em todas elas, você verá que a busca pela paz segue incansável, numa eterna utopia que movimenta milhões de pessoas mundo afora, revelando ao planeta que, enquanto houver o desejo de paz, haverá esperança para o fim das guerras. A começar pelo conflito que está em todas as manchetes.

A disputa pela Terra Santa

Difícil cravar um marco inicial da guerra entre israelenses e palestinos, pois a luta desses povos não é referenciada como de “proporções bíblicas” à toa.

Contudo, para entender a atual beligerância, chamada oficialmente de Guerra Israel-Hamas (2023), é recomendável olhar fundo na história, pelo menos até 2 de novembro de 1917. E ela nos leva às seguintes palavras:

Meu caro lorde Rothschild, tenho o grande prazer de endereçar a V. Sa., em nome do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia quanto às aspirações sionistas, declaração submetida ao gabinete e por ele Um míssil explode na cidade de Gaza durante um ataque aéreo israelense em 8 de outubro de 2023 aprovada...”.

O trecho faz parte da carta escrita pelo então secretário dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Arthur J. Balfour, a Lionel Rothschild, líder da comunidade judaica britânica.

Em contexto de indecisão na Primeira Guerra Mundial, e em troca do apoio da comunidade judaica britânica no esforço de guerra do país, o governo inglês manifestou seu préstimo na criação de um Estado judeu na Palestina – parte do então Império Otomano –, uma vez findas as hostilidades.

O documento passou para a História como Declaração Balfour (1917) e seria depois incorporado ao Tratado de Sèvres (1920), o acordo de paz com o Império Otomano. Aquelas palavras, que contribuíram para o fim de uma guerra, prenunciaram o início de outra, que vemos se desenrolar diante de nossos olhos.

Com a derrota dos otomanos e a partilha de suas terras no Oriente Médio entre ingleses e franceses, o comando da Terra Santa apenas passou de mão entre as potências coloniais. Entretanto, as promessas feitas durante a Grande Guerra foram a base para as negociações que tomariam forma depois de mais uma guerra mundial e do massacre de milhões de inocentes pelos nazistas.

Com o fim da Segunda Grande Guerra, os ingleses deixaram suas possessões no Médio Oriente para a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU).

A jovem Organização, em uma de suas votações mais importantes, liderada justamente pelo brasileiro Oswaldo Aranha, aprovou em 1947 a Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). O plano previa a partição da Palestina em dois Estados: um palestino e outro israelense.

A Terra Santa / Crédito: Getty Images

O que foi comemorado pelos judeus que residiam na região foi rechaçado pelos estados árabes vizinhos. Meses depois, em 14 de maio de 1948, horas antes de se extinguir o Mandato Britânico, e com a retirada das forças inglesas, começava a primeira das guerras árabes-israelenses.

No livro A Questão Palestina, escrito em 1977 e 1978, o professor e crítico literário palestino-estadunidense Edward Said escreve que as guerras iniciadas em 1948 seriam apenas capítulos de um grande conflito maior entre árabes e israelenses. Nos anos 1970 já haviam tido pelo menos quatro grandes embates entre eles e, desde então, houve pelo menos mais meia dúzia.

Se a paz hoje se mostra algo difícil de ser alcançada – muito por ser uma guerra com múl- tiplos interesses externos envolvidos, camuflados como questões étnico-religiosas – houve dias em que não era apenas um sonho, mas algo que, mesmo por um curto período de tempo, foi uma realidade.

Nos anos 1990, após quase 50 anos de combates, israelenses e palestinos chegaram a um acordo de paz. O que ficou conhecido como Processo de Oslo (1993) contou com a mediação dos noruegueses, especialmente do casal Terje Rød-Larsen e Mona Juul.

Entre idas e vindas, os Acordos de Oslo I (1993) e Oslo II (1995) renderam o Nobel da Paz aos israelenses Yitzhak Rabin e Shimon Peres (então primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores de Israel, respectivamente) e ao palestino Yasser Arafat (líder da OLP, a principal organização palestina), “pelos esforços para a paz na região”.

Os retrocessos começaram ainda em 1995, com a morte de Rabin por um ultraconservador israelense que não aceitava a desocupação das terras palestinas por Israel. Apesar de não terem dado certo, e de Oslo III nunca ter se concretizado, a mera memória de um tempo em que a paz foi possível serve para nortear um futuro utópico, mas desejável, para a Terra Santa.

A África e as guerras esquecidas

Se o conflito entre israelenses e palestinos recebe grande atenção da mídia e polariza o mundo, na África, apesar das mais de 35 guerras em andamento, acontece o contrário. O continente africano é geralmente “esquecido”, ou deixado de lado, recebendo menos atenção que a Europa ou o Oriente Médio.

A motivação para esses conflitos varia, mas elementos étnicos e religiosos, além da abundância de recursos naturais e do uso de territórios como campo de batalha para o interesse de potências estrangeiras, são as razões mais comuns.

Entre as guerras atuais, três em particular chamam a atenção por ganharem constantemente novos capítulos e por exigirem análises mais complexas e interconectadas: a Segunda Guerra do Congo e a Guerra De Kivu (por terem um intervalo tão curto entre elas, são pratica- mente a mesma), a Guerra do Sudão (o mais recente de uma série de embates na nação africana) e os Conflitos no Sahel (iniciados na Primavera Árabe, em 2011).

Embora tenham suas razões próprias, não é possível estudá-las sem tratar de dois momentos históricos: a colonização e a descolonização da África.

O imperialismo que dividiu o continente na Conferência de Berlim (1884-1885) não levou em conta a diversidade étnica e religiosa africana, traçando linhas pelo mapa, atravessando desertos e florestas onde habitavam populações multiculturais.

O interesse por commodities e mão de obra barata, que pudessem abastecer os navios e as fábricas da Revolução Industrial, fez com que esses grupos fossem ignorados.

As práticas e os costumes conflitantes destes coletivos que foram aglomerados nas linhas imaginadas dos mapas dos outros contribuíram para um perpétuo estado de tensão, ainda longe de ser superado.

Com a Europa cambaleante depois da Segunda Guerra veio a oportunidade de descolonização, mas os conflitos por liberdade que se espalharam das areias do Sahara, no norte, até o Desfiladeiro do Rio Blyde, na ponta oposta do continente, duraram mais 50 anos.

Em meio ao processo de libertação vieram novos interesses, pois a África também foi tomada pela dualidade do mundo bipolar. Temendo que as nações que aspiravam independência aderissem ao socialismo e entrassem para a zona de influência da URSS, os EUA passaram a financiar os colonizadores que saíam.

Na África, a Guerra Fria foi bem quente. Muitos países não conseguiram se libertar das práticas coloniais e mergulharam em uma espiral de pobreza, corrupção e guerras civis. Este é o caso da República Democrática do Congo (RDC). Antiga colônia belga, ela convive desde sua independência, em 1960, com um vai e vem de guerras e acordos de paz.

A ONU está presente desde a Crise do Congo (1960-1966), com destaque na Insurgência em Katanga (1963), onde os capacetes azuis – como são chamados os soldados a serviço da Organização, por conta das cores de seus casquetes – viram pesados combates. O país se estabilizou tempos depois, mas não como uma democracia, e sim como uma ditadura liderada por Mobutu Sese Seko. Mudando o nome RDC para Zaire, Mobutu governou até 1996, quando foi deposto por um Golpe de Estado.

Durante a Guerra Fria, por se posicionar como um anticomunista, Mobutu recebeu apoio do Ocidente, mas, com a derrocada da URSS, não havia mais razão para mantê-lo. Laurent Kabila assumiu então o poder e, com um governo fraco e ameaçado por facções rivais outros conflitos foram surgindo, até seu assassinato em 2001 e a ascensão de seu filho Joseph.

Mobutu ao lado de Richard Nixon em Washington, no ano de 1973 / Crédito: Wikimedia Commons/Jack E. Kightlinger

No ano seguinte, o poder foi novamente posto em xeque, pois o movimento separatista M23 declarou guerra ao governo, pleiteando a independência de Kivu do Norte. Passados quase 20 anos e com maciço envolvimento da ONU – por meio da MONUSCO, Força de Paz atualmente comandada por um general brasileiro – e de outros países, nada indica que a situação irá mudar.

Diversos acordos de paz foram assinados e descumpridos ao longo dos anos. Com o foco voltado para a Europa e o Oriente Médio, o conflito continua se arrastando.

Situação parecida com a da RDC é a do Sudão, que, desde sua independência do Reino Unido e do Egito, em 1955, já passou por quase uma dezena de conflitos internos e externos. O mais recente deles, provisoriamente chamado de Guerra do Sudão, opõe dois antigos aliados: os generais Abdel Fattah al-Burhan e Mohamed Hamdan Dagalo (conhecido por Hemedti).

Ambos eram líderes de uma junta militar que havia dado um golpe em 2021, pondo fim à transição democrática iniciada em 2019, com a deposição do então ditador, Omar al-Bashir, que controlou o Sudão com mão de ferro por 30 anos.

Apesar de menos conhecido, os números do conflito impressionam. A ONU estima que, desde o início das hostilidades, em 15 de abril de 2023, entre 9 e 10 mil pessoas tenham sido mortas, e de 6 a 12 mil tenham sido feridas.

Em 24 de outubro de 2023, mais de 4,8 milhões estavam deslocadas internamente e mais de 1,3 milhão havia fugido do país como refugiados. A situação desses sudaneses, no entanto, só não é pior que a do Sahel, a região de transição entre o deserto e a savana na África.

Estimativas das Nações Unidas dão conta que a maior parte da população da região vive com menos de US$ 2 por dia, o que a torna um dos locais mais pobres do mundo. Somado aos problemas étnicos, a região também sofre com a escassez de água em grande parte do território.

Os refugiados que deixam o Sahel todos os anos são contados não aos milhares, mas aos milhões, e tem como principal destino a Europa, onde buscam melhores condições de vida.

A situação, que já era ruim no início dos anos 2000, piorou com a Primavera Árabe (2011), pois o vácuo de poder levou à ascensão de grupos terroristas e insurgentes, como a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI) e o Boko Haram, que se aproveitaram da instabilidade e da pobreza para lançar ataques contra governos e civis.

Mali, Níger e Burkina Faso, por exemplo, convivem com a ameaça constante de grupos jihadistas e atentados contra o governo oficial. Mais recentemente um novo capítulo: a região tem passado por uma série de Golpes de Estado (como o do Níger, em julho de 2023).

Apesar de distante da Rússia e da China, o apelo que possuem estes dois países, protagonistas da transição para uma ordem multipolar, tem chamado a atenção dos tomadores de decisão ocidentais.

Como a maior parte das nações do Sahel é de antigas colônias europeias, muitas populações veem Moscou e Pequim como alternativa atual. Aproveitando-se desse sentimento, alguns militares se revoltam e assumem o poder.

As Nações Unidas têm participado ativamente na resolução dos conflitos. Em 2013, a ONU enviou uma Missão de Paz, a MINUSMA, e tem feito esforços para mediar um acordo de paz entre os governos da região e os grupos terroristas e insurgentes. Em 2015, a Organização ajudou a mediar o Acordo de Paz de Argel, assinado pelo governo do Mali e o AQMI, mas violado várias vezes ao longo do tempo.

Ainda que demorem a dar certo e que repre- sentem episódios trágicos da história humana, esses tratados ajudam a manter a chama da esperança acesa. Junto às interferências externas pela paz, a mediação da União Africana (UA) se soma a pequenos esforços locais, mas cada vez maiores, por soluções para tantos problemas.

Heranças da Guerra Fria

Se até nos conflitos africanos contemporâneos é possível ver as marcas deixadas pela Guerra Fria, nos dois principais em andamento na Europa, a herança da disputa bipolar é inegável. Tanto na Guerra do Alto Carabaque quanto no Conflito Russo-Ucraniano, o motivo principal são as disputas mal resolvidas advindas da melancólica derrocada da URSS.

Como descrito, em 2005, pelo próprio presidente russo, Vladimir Putin, “a maior catástro- fe geopolítica do século 20 foi o fim abrupto da União Soviética”. À parte das intenções do dignatário ao dizer isso, fato é que a dissolução do “Império Vermelho” não apenas deixou um vácuo de poder na Europa Oriental e na Ásia Central, como são essas contendas mal resolvidas que motivam as guerras europeias atuais.

Um guindaste derruba parte do Muro de Berlim / Crédito: Wikimedia Commons/SSGT F. Lee Corkran

Apesar do susto mundial quando os blindados russos rolaram pela Ucrânia em 24 de fe- vereiro de 2022 e da dimensão do conflito, este não foi o primeiro a acontecer na Europa após a Segunda Guerra. Além dos oriundos da dissolução da Ioguslávia nos anos 1990 e 2000, o conflito em Nagorno Karabakh precede o próprio fim da União Soviética.

Em 1988, meses antes da queda do Muro de Berlim – mas já no apagar das luzes da Era Soviética –, os armênios da região começaram a protestar contra a discriminação que sofriam do governo azerbaijano.

Os protestos levaram a uma guerra armada entre armênios e azerbaijanos, que durou até 1994, terminando com um cessar-fogo e com Nagorno-Karabakh sob controle armênio – mas não sem forte oposição do Azerbaijão, mantendo uma tensão perma- nente entre os dois países.

Em 2020, enquanto o mundo combatia o vírus da COVID-19, o conflito de Nagorno- -Karabakh ressurgiu. Aproveitando-se justamente das atenções voltadas à situação sanitária, o Azerbaijão lançou uma ofensiva militar contra a região, que durou seis semanas. Ao vencer, o Azerbaijão recuperou o controle de grande parte do que chamam de “província rebelde”.

Durante o conflito, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2388, condenando o aumento da violência e pedindo a todas as partes que cessassem as hostilidades.

Após a guerra, Azerbaijão e Armênia assinaram um acordo de paz que previa a retirada das tropas armênias de Nagorno-Karabakh. Foi assinada então outra Resolução, a 2389, que exigia o cumprimento do acordo assinado. A Rússia, herdeira maior da União Soviética, interveio como força de paz, garantindo que o cessar-fogo fosse cumprido.

No ano de 2023, em meio a tantos focos de tensão pelo globo, uma nova disputa começou. Em movimentos rápidos e sincronizados, o Azerbaijão obteve em 48 horas uma série de vitórias, pondo fim a um confronto de mais de 30 anos.

O último bastião de resistência armênia, a República de Artsaque (a autoridade separatista de Nagorno-Karabakh) emitiu um decreto oficial determinando a dissolução de todas as suas ins- tituições estatais até 1º de janeiro de 2024, encerrando oficialmente sua existência.

A vitória sobre a República de Artsaque causou pânico nos armênios da região também pela história: apesar de ter ocorrido há mais de cem anos, o genocídio armênio pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial permanece vivo na memória do povo.

Com a anexação definitiva do Alto Carabaque, há o temor que uma nova perseguição de armênios se inicie. Apesar das circunstâncias, esta parece ser a única guerra atual com um fim no horizonte.

Em contrapartida, a outra herança da Guerra Fria, o Conflito Russo-Ucraniano, está lon- ge de terminar. A beligerância, a maior na Europa desde 1945, é uma “guerra de escala” onde, assim como na Segunda Guerra, o vencedor será o mais resiliente. Com consumo diário de mais de 40 mil projéteis de munição – algo que vem drenando os estoques do mundo –, o embate entre Rússia e Ucrânia é o prelúdio de uma Nova Era.

Quando, do fim da União Soviética, o socialismo saiu derrotado, a “ideologia do século” (como chamou o historiador inglês, Eric Hobsbawn) viu sua despedida no Natal de 1991 – no entanto, a Rússia não foi batida. Ela pode até ter se reorientado para uma economia de mercado e enfrentado crises políticas, econômicas e sociais nos anos 1990, mas nunca foi derrotada no campo de batalha.

A Rússia não apenas manteve intactos seus arsenais nucleares – inclusive recuperando os que ficaram na Ucrânia, entre outras ex-Repúblicas Soviéticas – como também manteve a maior parte do inventário militar do Exército Vermelho. Certamente são esses arsenais, somados a equipamentos modernos, que permitem os embates épicos do atual conflito.

Com a tão divulgada contraofensiva ucraniana, aguardada pelo Ocidente como o momento de virada no conflito, não tendo atingido os objetivos desejados e com as negociações (bilaterais e multilaterais) em compasso de espera, a solução deve vir mesmo do campo de batalha, onde a Rússia, com todas as perdas, leva a vantagem. Além disso, as sanções contra a economia russa não surtiram o efeito que muitos esperavam, enquanto a Ucrânia segue em estado total de “economia de guerra”.

Apesar do pouco avanço diplomático, não faltam nações dispostas a mediar a paz. Além da Suíça, China e alguns países europeus, o próprio Brasil já ofereceu apoio. Mas talvez o mais surpreendente seja a “ajuda divina”: o Vaticano, por meio do papa Francisco, é um dos mais efusivos emissários da paz nesta região.

A próxima guerra, o próximo ato

Enquanto o mundo se mobiliza para tentar achar uma solução para a o Conflito Russo-Ucraniano, outra disputa não resolvida da Guerra Fria começa a dar sinais de preocupação. Em meio a tantos conflitos armados no mundo atual, vale ressaltar um que ainda nem começou: a Guerra de Taiwan.

A “questão de Taiwan” se inicia em 1949, quando o Partido Comunista da China (PCC) derrotou o Kuomintang (KMT) na Guerra Civil Chinesa. O KMT fugiu para Taiwan, onde estabeleceu um governo rival ao PCC. Desde então, a China vê a ilha (também conhecida como Formosa) como uma província rebelde e tem ameaçado usar a força se ela declarar independência. Taiwan, por sua vez, se considera um Estado soberano e tem buscado apoio internacional.

Apesar de os Estados Unidos serem os maiores apoiadores da soberania taiwanesa, foram eles, nos anos 1970, os articuladores do reconhecimento da República Popular da China no lugar da República da China. Em outubro de 1971, a Resolução 2758 foi aprovada pela AGNU, expulsando “os representantes de Chiang Kai-Shek” e transferindo o assento chinês no Conselho de Segurança da ONU para Pequim.

Esse movimento, que tinha como pano de fundo a aproximação com a “China Vermelha” do premiê Mao Tse Tung, promovido pelo governo americano de Richard Nixon e de seu secretário de Estado, Henry Kissinger, está no centro da controvérsia que motiva a provável futura guerra.

Quase 50 anos depois, a China colhe os frutos da aproximação com os EUA e com o Ocidente, responsável por abrir as portas de sua economia para o mundo e alavancar o crescimento do país – justamente o mesmo que agora ameaça a posição dos EUA como maior potência global.

A China há anos advoga que os dias da Era unipolar são coisa do passado, e que o mundo já se encontra em uma nova Era, a multipolar. E assim como a Guerra dos Trinta Anos (1618- 1648), as Napoleônicas (1799-1815) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) prenunciaram mudanças no sistema internacional, a transição do poder norte-americano para a China não deverá vir sem um novo grande conflito.

As disputas mal resolvidas da Guerra Fria, que acabou sem vencedores, cobram seu preço na atualidade com tantos focos de tensão mundo afora.

Faltariam páginas para descrever conflitos persistentes como na Síria, Iraque e Etiópia, muitos com datas confusas de início, sem um meio e muito menos uma previsão de fim. O que se sabe é que as guerras de ontem levaram às de hoje e as de hoje, inevitavelmente, são um prenúncio das de amanhã.

Quanto à guerra, que é a maior e mais pomposa das ações humanas, eu gostaria de saber se queremos usá-la para provar alguma prerrogativa nossa ou, ao contrário, para testemunhar nossa debilidade e imperfeição”, disse o filósofo francês Michel de Montaigne em Os Ensaios .

Não à toa, ao longo da História, embates clássicos, assimétricos, curtos, longos, regio- nais ou globais – ou seja, as guerras em seus diversos formatos –, e a incansável busca do ser humano pela paz, sempre mostraram como caminha a humanidade, num eterno ato de destruição e reconstrução.


*Ricardo Lobato é sociólogo e mestre em economia, oficial da reserva do exército brasileiro e consultor-chefe de política e estratégia da @equilibrium_cap