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Matérias / A Sociedade da Neve

A Sociedade da Neve: Os intensos relatos de um dos sobreviventes da tragédia

Na Netflix, 'A Sociedade da Neve' conta a história do acidente real que ficou conhecido como Tragédia dos Andes; confira os relatos de Roberto Canessa, sobrevivente

Éric Moreira Publicado em 09/01/2024, às 16h32 - Atualizado em 11/01/2024, às 09h47

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Roberto Canessa: Realidade e ficção - Héctor Maffuche e Divulgação/Netflix
Roberto Canessa: Realidade e ficção - Héctor Maffuche e Divulgação/Netflix

Na última semana, estreou na Netflix um filme que chamou atenção dos telespectadores: 'A Sociedade da Neve'. Isso porque a narrativa retrata um evento real que ficaria marcado como um dos mais brutais e assombrosos acidentes aéreos da América do Sul, a Tragédia dos Andes.

+ A Sociedade da Neve: Veja como é a verdadeira história por trás do filme;

Por mais que a trama pareça muito brutal para um evento real, esse acidente realmente aconteceu e inspirou o filme dirigido pelo espanhol Juan Antonio Bayona. Era dia 13 de outubro de 1972 quando o Voo Força Aérea Uruguaia 571 — que transportava 45 pessoas, incluindo a equipe de rugby uruguaia Old Christians Club e mais alguns amigos e familiares —, que viajava do Uruguai ao Chile, caiu em uma região conhecida como Vale das Lágrimas, em meio a Cordilheira dos Andes. Após a queda, dos 45, somente 33 pessoas sobreviveram inicialmente.

No entanto, os desafios se seguiriam. Rapidamente, todos a bordo do avião foram dados como mortos, e estiveram à mercê do ambiente inóspito, extremamente frio — lidando inclusive com uma avalanche —, e da fome. Dessa forma, o grupo sofreria com ainda mais vítimas.

Porém, para sobreviver, aqueles que restavam ainda precisaram tomar uma decisão extrema: para suprir a falta de alimento, os sobreviventes precisavam comer a carne de seus amigos e familiares que faleceram ao longo da jornada. 

Essa situação se sustentou por cerca de 70 dias, até que alguns membros do grupo que estavam relativamente saudáveis — alguns até gravemente feridos — decidiram sair de perto dos destroços do avião, em busca de socorro. Entre eles, estava Roberto Canessa, um estudante de medicina de apenas 19 anos.

Roberto Canessa na vida real e no filme, interpretado por Matías Recalt / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons / Divulgação/Netflix

A queda

Em 2016, durante entrevista à Simon Worrall, disponibilizada pelo National Geographic, Roberto Canessa — não só um dos 16 sobreviventes da Tragédia dos Andes, como também um dos principais responsáveis pelo resgate — conta que o momento em que percebeu que o avião em que voava estava caindo foi "muito abrupto".

"Havíamos alugado um avião da Força Aérea para ir do Uruguai ao Chile. Estávamos tentando cruzar os Andes quando o piloto disse: 'Apertem os cintos, vamos entrar em turbulência'. Os jogadores de rugby gostam de brincar e bancar o macho. Então estávamos jogando bolas de rugby e cantando uma música: 'Conga, conga, conga: o avião está dançando conga'. A seguir, alguém olhou pela janela e disse: 'Não estamos voando muito perto das montanhas?!'", recorda Canessa.

O que aconteceu foi que um dos pilotos da aeronave cometeu um erro ao calcular a trajetória de descida do avião — que era prevista acontecer no aeroporto de Pudahuel, no Chile, e então o avião colidiu com a encosta da montanha. 

Eu pensei: 'Você está morto'. Sentei-me e recitei uma Ave-Maria. Alguém gritou: 'Por favor, Deus, me ajude, me ajude!' Foi o pior pesadelo que você pode imaginar. Outro menino gritava: 'Estou cego!' Quando ele moveu a cabeça, pude ver seu cérebro — e um pedaço de metal saindo de seu estômago", explicou Roberto Canessa.
Cena de 'A Sociedade da Neve', com o avião destroçado ao fundo / Crédito: Divulgação/Netflix

Sobrevivência

O próprio Canessa descreve toda a história por trás da Tragédia dos Andes como uma história de sobrevivência — para todo e cada um dos 16 que sobreviveram a tudo —, e afirma que acredita que só sobreviveu porque teve "sorte". 

"Quase desisti quando a avalanche nos atingiu. Então um dos outros meninos disse: 'Roberto, que sorte você tem por poder caminhar por todos nós'. Isso foi como uma infusão heroica em meu coração. Ele tinha as pernas quebradas, mas eu conseguia andar. Minha missão não era apenas pensar o que era melhor para mim, mas o que era melhor para o grupo", complementa Canessa, que hoje é médico cardiologista.

Ainda durante a entrevista, o sobrevivente recorda ter ajudado a esfolar assentos do avião para que todos pudessem fazer cobertores, a confecção de óculos de sol com o plástico presente na cabine do piloto.

Por ser estudante de medicina, ele passou a ajudar no cuidado das pessoas que estavam feridas. Ele explica que drenou infecções das pernas dos colegas e estabilizou fraturas. 

Derretemos a neve para conseguir água. Enchemos nossas meias de rugby com carne para a caminhada e usamos o isolamento da cozinha para fazer sacos de dormir. À noite, usávamos bolas de rugby para fazer xixi, porque se você saísse, seu xixi congelava. [Risos] Você fica muito inteligente quando está morrendo", acrescenta às inusitadas técnicas.
Destroços do Voo Força Aérea Uruguaia 571 / Crédito: Foto por Wunabbis pelo Wikimedia Commons

"Uma morte generosa"

De fato, o que mais choca a todos que ouvem a história é o que sempre é divulgado como "canibalismo" cometido pelos sobreviventes. Porém, o próprio médico afirma em entrevista que "canibalismo é quando você mata alguém, então tecnicamente isso é conhecido como antropofagia. Eu tenho essas discussões há 40 anos. Eu não ligo. Tivemos que comer esses cadáveres e foi isso."

Ele pontua que os sobreviventes necessitavam de proteína e gorduras para aguentar, e isso poderia ser encontrado somente na carne dos que faleceram. Como era estudante de medicina, para ele também não seria tão difícil cortar os corpos.

Meu principal problema era que eu estava invadindo a privacidade dos meus amigos: violando sua dignidade ao invadir seus corpos. Mas então pensei, se eu fosse morto, sentiria orgulho de que meu corpo pudesse ser usado para que outros sobrevivessem. Sinto que compartilhei um pedaço de meus amigos não apenas materialmente, mas espiritualmente porque sua vontade de viver nos foi transmitida através de sua carne. Fizemos um pacto de que, se morrêssemos, ficaríamos felizes em colocar nossos corpos a serviço do resto da equipe."

Canessa, hoje com 70 anos de idade, ainda afirma que, apesar da dificuldade em fazer o necessário para sobreviver — alimentar-se de seus amigos —, essa não seria realmente a parte mais difícil de toda a aventura. "Acho que sobrevivemos porque éramos uma equipe e porque conseguimos sair das montanhas. A noite seguinte à avalanche — quando ouvíamos o movimento da montanha e ficávamos com medo de sermos soterrados pela neve — foi mais difícil do que o tormento de comer carne humana."

Cena de 'A Sociedade da Neve' / Crédito: Divulgação/Netflix

Resgate

Enquanto os sobreviventes seguiam sofrendo com o frio, a fome e os ferimentos, depois de muitos dias, Roberto Canessa e outras duas pessoas, Nando Parrado e Antonio "Tintin" Vizintin, decidiram partir em busca de ajuda. "Quando chegamos ao topo, percebemos que estávamos muito mais longe da segurança do que pensávamos, então decidimos mandar Tintin de volta ao avião para avisar que havíamos ido para o sul", conta, "e assim nossos suprimentos de comida durariam mais tempo entre os dois. Estávamos a 15.000 pés e a temperatura estava 10 abaixo de zero."

Foi então que os dois sobreviventes acabaram encontrando um grupo de agricultores chilenos, e conseguiram o glorioso resgate para seus demais companheiros.

+ A Sociedade da Neve: Veja o que aconteceu com sobreviventes da tragédia;

Fernando Parrado e Roberto Canessa juntos ao agricultor chileno Sergio Catalán, que os encontrou perdidos nos Andes / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Familiares

De volta ao Uruguai, uma das primeiras coisas que Canessa conta ter sentido foi a necessidade de visitar os pais dos que não conseguiram escapar. "Senti que era meu dever contar-lhes o que aconteceu. Não esperava que me entendessem ou me julgassem porque de certa forma desistiram da busca e nos consideraram mortos", pontua.

"Eles não se importavam em usar os corpos dos filhos como alimento. Eles se importavam com a vida. Trouxemos-lhes cartas contendo os últimos pensamentos dos nossos amigos, e queria deixar claro que o apoio dos nossos amigos que faleceram foi muito importante para nós."