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Matérias / Crimes

Tommy Harrington e a vilanização da cultura pop

Quando o pequeno Thomas Edwin Harrington atirou e matou Daisy Ebling, durante um assalto, os gibis e as revistas pulp foram apontadas como vilãs

Daniel Cruz* Publicado em 30/06/2024, às 11h00

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Capa da revista Detective Tales - Reprodução
Capa da revista Detective Tales - Reprodução

Sardento, loiro e dos olhos azuis, o pequeno Thomas Edwin Harrington, de 11 anos de idade, estava em sua casa, em Martinez na Califórnia, lendo um livro enquanto estourava bolas de chiclete na boca, quando a campainha tocou. O menino estava muito entretido para se preocupar com quem estava do lado de fora, então coube à sua mãe atender a porta. Eram dois homens que se apresentaram como policiais.

Eles não estavam ali para perder tempo e, sem rodeios, informaram que "a sra. Daisy Ebling, a comerciante da esquina abaixo, foi assassinada em um ataque à mão armada. Ela foi atingida por um tiro direto no coração, de uma espingarda calibre .22, e morreu na hora. A faca e a camiseta do seu filho foram encontradas na cena".

Após escutar o detalhe final, o menino, pela primeira vez, se interessou pela visita e pulou do sofá. "Não pode ter sido eu. Eu estive em casa a tarde toda. Não sei de nada", disse, quase que automaticamente. Sua mãe o encarou com dúvida.

A mulher tinha nove filhos e eles viviam circulando para dentro e fora de casa. Era como as crianças daquela região viviam. A vizinhança era tranquila e os pais não tinham preocupação com pequenas ausências dos filhos. Eles ficavam brincando por aí. Com tantas crianças para cuidar, a mãe de Tommy muitas vezes mal sabia onde andava cada um deles, mas confirmou a história do garoto e os policiais foram embora. Ela, porém, sabia que o filho estava mentindo.

Horas depois a sra. Harrington atendeu a campainha e lá estavam de novo os homens do distintivo. Tinham mais algumas perguntas para Tommy e, dessa vez, quem não fez cerimônia foi o menino.

Mas é claro que eu a matei. Ela me reconheceu quando eu a assaltei para pegar dinheiro. Eu via outros meninos com dinheiro, e não tinha por que eu não ter também. Eu queria ir para um acampamento de verão e minha família não podia pagar. A velha pensou que eu estava brincando quando apareci na porta e falei: 'Isso é um assalto!'. Ela deu um puta grito quando a arma disparou", disse o rapaz, comentando o crime como se estivesse narrando um evento qualquer.

Ele apenas demonstrou chateação quando, já na delegacia, o delegado perdeu a linha com tamanha petulância e o mandou jogar fora a sua goma de mascar.

Manchete publicada no San Pedro News Pilot, em 22 de julho de 1948, sobre o caso - Reprodução/CDNC

O histórico de Harrington

Thomas Edwin Harrington já tivera problemas antes. Aos 5 anos, ele e outras crianças foram identificadas após roubar uma mercearia. Dois meses antes de assassinar Daisy, Tommy roubou 23 dólares e o relógio dela. Ele confessou o crime após um amigo revelar que o tinha visto com a peça roubada. Seu pai fez um acordo com Daisy e o marido dela, Edwin, e colocou Tommy para pagar o roubo trabalhando para os Ebling.

Os dias servindo a mulher que administrava um comércio simples na periferia de Martinez serviram apenas para o menino crescer os olhos em cima da caixa registradora e o tilintar das moedas.

Tommy confessou que foi até a loja de um homem chamado Charles Kitner, na 601 Kelly Avenue, invadiu um galpão e roubou uma espingarda calibre .12 e 8 caixas de munição, mas mudou de ideia sobre usar a arma ao encontrar a espingarda calibre .22 do seu irmão Leon, de 20 anos.

Durante a tentativa frustrada de roubo, vendo aquela criança empunhando uma arma e com uma máscara que mal cobria o rosto, Daisy pensou que tudo não passava de uma brincadeira. "Isso é um assalto!", gritou Tommy. "Oh, não é não. Eu sei quem você é", respondeu a vítima.

Daisy Eibling, de 43 anos, recebeu um tiro no lado direito do peito. A bala atingiu a artéria principal e a matou quase instantaneamente, deixando uma poça de sangue. Após acabar com a mulher por causa de dinheiro, Tommy foi embora sem levar nada.

Depois do disparo, uma testemunha viu o menino correndo com um lenço no rosto; talvez ele também achasse que era um fora da lei das revistas em quadrinhos que gostava de ler.

De qualquer forma, a criança havia se preparado para sua ação desviante. Além da espingarda, o xerife Frank Rizzio encontrou centenas de cartuchos escondidos em uma fronha, dois lenços cortados nos olhos de forma a serem usados como máscaras, uma baioneta, uma bainha e uma faca de caça de 15 centímetros.

A "vilanização" das obras de ficção

Muitos podem pensar que esta é uma discussão moderna, mas os gibis e as revistas pulp foram apontadas como vilãs no caso Tommy Harrington. "Se você quer a causa de tudo isto, aqui está!", bradou em tom de revolta Leon, o irmão mais velho de Tommy, aos jornalistas enquanto folheava os passatempos do irmão caçula.

São os quadrinhos e todos esses filmes podres. Proíba-os e coisas como essa não acontecerão mais!".

Perguntado sobre essa questão, Tommy balançou a cabeça negativamente. Ele apenas lia as histórias sem se importar com mocinhos ou bandidos. E qual eram seus filmes preferidos, os de gângster ou de faroeste? "Nenhum", disse ele.

Exemplo de revistas Pulp, populares na época - Domínio Público

Sobre esse foco, a voz mais eloquente a comentar sobre o caso foi a do psiquiatra austríaco dr. Fritz Redl. Especialista na abordagem com crianças e radicado nos Estados Unidos desde 1936, Fritz comentou sobre a necessidade da sociedade de encontrar um bode expiatório quando casos inexplicáveis acontecem.

É um fato comprovado que o ambiente externo influencia pessoas com uma constituição psíquica fragilizada, mas, no final, as perguntas vitais a serem feitas repousam no interior do indivíduo, e não em algum filme, gibi ou até mesmo em pais negligentes.

"Naturalmente, certas condições gerais são parte de um bom ambiente na infância. Nós não deixamos cigarros de maconha ao alcance de crianças. Da mesma maneira, nós não as expomos sem cuidado a revistas e filmes violentos e sádicos. Mas estas são provisões elementares para situações de massa. O público sempre quer um bode expiatório. O bode expiatório pode mudar tão frequentemente quanto a moda das mulheres. A própria delinquência é simplificada demais, como se, por ser uma palavra, significasse apenas uma coisa simples. Dessa forma, a causa é também simplificada. Uma hora nós escutamos 'não existe delinquência infantil, apenas pais delinquentes', ad nauseam. Como agora que a gritaria é contra livros e revistas em quadrinhos. O assunto não pode ser disposto de maneira tão simples. Não se preocupem com Tommy Harrington e as revistas em quadrinhos. Ao contrário, perguntem-se por que ele construiu sua fantasia, com invenções e acessórios, para fugir. Perguntem por que essas fantasias tomaram a forma de apontar uma arma e uma faca. Perguntem por que elas [fantasias] não dissiparam inofensivamente, pelo contrário, exigiram que fosse [tomada] uma ação completa. Perguntem se, quando ele reclamou de ser bolinado, existia alguma base real para suas queixas, se elas eram exageradas ou se elas eram totalmente imaginárias. Na resposta para essa questão repousa uma parte da resposta acerca do fato de sua perturbação da personalidade ser superficial ou profundamente enraizada […] Os pais de Tommy Harrington simplesmente não têm condições para guiá-lo. Punições, castigos e recompensas — justas o suficiente em circunstâncias comuns — não irão resolver uma situação como essa. A decisão de manter Tommy preso e limitado por meses como punição por roubar é particularmente não recomendada. É como receitar um laxante para um paciente com apendicite". (Fritz Redl, Oakland Tribune)

É sempre um fenômeno interessante observar a "vilanização" das obras de ficção. Não obstante, é incrível notar o quanto a discussão se desvirtua do que realmente deve ser discutido. É certo colocar armas nas mãos de crianças? Ensiná-las a manuseá-las? Por que armas são deixadas ao alcance delas? A indústria do entretenimento é culpada? E a indústria do armamento? Não é ela quem fabrica o produto cujo único objetivo é tirar a vida de um ser vivo? Quais as recompensas reais dessa cultura do armamento?

No caso de Tommy Harrington, ficou claro desde o início que o menino queria liberdade. Ele estava cansado dos seus oito irmãos, de viver a mesma vida todos os dias com as mesmas pessoas, compartilhando a mesma casa com oito universos distintos. Tommy queria uma chance de conhecer o mundo por si só, frequentando um acampamento de verão, de preferência.

Quando a sra. Ebling disse que me reconhecia, eu fiquei assustado. Eu pulei. A arma disparou. Esqueci do dinheiro e corri. Eu queria ir para um acampamento de meninos no verão e depois voltar para a escola no outono. Eu não tinha um acampamento escolhido. Só queria dinheiro o suficiente pra quando encontrasse um. Queria sair por aí sozinho por um tempo. Queria viver sozinho. Pensei que eu poderia pegar o dinheiro […] nunca planejei machucar ninguém." (Tommy Harrington)

O futuro de Tommy

Se o tiro em Ebling foi certeiro, o de conseguir dinheiro para sumir e ficar sozinho por um tempo saiu pela culatra. A partir do momento em que foi preso, Tommy foi cercado por adultos dos mais diversos cantos, policiais, homens da justiça, advogados, psiquiatras, funcionários do estado, todos em sua volta tentando chegar a um consenso para a pergunta: "O que fazer com Tommy Harrington?". Que mecanismo legal do mundo do mundo adulto seria aplicado a ele?

Autoridades disseram que não havia lugar para Tommy na Califórnia; a punição para ele faria mais mal do que bem. O que o menino precisava era de um rico e variado programa de assistência infantil e orientação profissional, algo que não existia naquele estado.

As leis e instalações da época foram construídas para o que eles chamavam de "delinquentes comuns"; criminosos juvenis como Tommy eram relativamente raros e o estado não contemplava seus casos.

"Eu não posso conceber enviar esta criança de 11 anos para a prisão estadual. Uma escola de correção como a Preston é quase tão ruim. O programa da Preston foi inventado para um tipo de problema completamente diferente. Isso significa proporcionar um pequeno período de instrução diretamente contrário à conduta do delinquente comum. Todo o programa não pode ser mudado pelo benefício de um ou dois, especialmente quando, como neste caso, a longa custódia é indicada, até mesmo mandatória. Nós temos espaços para internação hospitalar quando a insanidade pode ser provada. Mas não parece ser o caso aqui. O que nós precisamos — e não temos — é uma configuração clínica que combine supervisão com estudo e um programa de ajuda positiva. Nós temos o dinheiro, mas não temos as instalações, os prédios e o pessoal habilitado. Tudo o que temos feito e estamos aptos a fazer é um improviso […] Albert Jones, de 14 anos, o do duplo assassinato em Oroville, foi internado no Hospital Estadual de Mendocino como um delinquente psicopático […] não pelo interesse do menino, mas porque a instituição Ukiah provê segurança máxima e o perigo de escapar seria menor do que em Preston", disse Karl Holston, diretor da Autoridade Juvenil da Califórnia, em uma reportagem do Oakland Tribune de 25 de julho de 1948.

Em 17 de agosto de 1948, Tommy Harrington escapou de ser julgado como adulto e seu caso foi repassado para a corte juvenil. Dez dias antes, em uma declaração ao seu advogado, o menino fez caras e bocas ao descrever como assassinou Daisy Ebling. "Eu fui até a porta e bati. Ela abriu. Eu disse: 'Isso é um assalto!'. Ela meio que disse: 'buu'."

Enquanto contava a história, Tommy imitava as expressões que a vítima demonstrou durante o crime. Era como se ele estivesse conversando com amiguinhos e contando sobre algum episódio curioso. Mascando seus inseparáveis chicletes, os intervalos de suas histórias eram preenchidos com uma nova bola da goma de mascar emergindo de sua boca enquanto olhava para algum adulto.

Duas fotos capturadas do momento e publicadas no The San Francisco Examiner mostram perfeitamente uma criança que parecia não compreender a gravidade do seu ato. O "feliz mascador de chicletes" e "fazedor de bolas" estava preso em seu mundo infantil e era incapaz de processar a realidade à sua volta.

Após ser condenado a passar alguns anos no reformatório Fred C. Nelles, na cidade de Whittier, Tommy foi levado mais uma vez ao tribunal juvenil em outubro para ser de novo julgado após seu advogado alegar algumas falhas do juiz que prejudicaram seu cliente.

No novo julgamento, o juiz Hugh Donovan omitiu a palavra "assassinato", substituindo por "tiro e morte". No registro oficial, foi escrito que Tommy entrou na loja de Daisy Ebling para roubar e, durante o crime, a proprietária foi morta.

Com essa mudança, ele oficialmente não era um assassino, apenas um delinquente juvenil. A família do menino, seu advogado e o próprio Tommy disseram que ele poderia continuar na Fred C. Nelles, o que o juiz concordou. Ao escutar a resposta positiva, Tommy sorriu como uma criança que ganha um saco de pirulitos, dizendo em alto e bom som que queria voltar para a Fred C. Nelles "o mais rápido possível". Mas por que tanta pressa?

Eles vão passar um filme muito bom na sexta-feira à noite e eu não quero perder", respondeu o garoto.

Capa do livro Anjos Cruéis - Darkside Books

O trecho acima foi extraído do livro 'Anjos Cruéis', escrito por Daniel Cruz, e cedido excusivamente ao site Aventuras na História pela DarksideBooks. A obra atualmente está em pré-venda e tem o lançamento previsto para 5 de agosto.