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StandWithUs Brasil / Primo Levi

Neste dia, em 1919, nascia Primo Levi, testemunha dos horrores do Holocausto

Primo Levi entrou para a História como uma importante testemunha do que vivenciou durante o Holocausto

Gabriel Waldman* Publicado em 31/07/2023, às 10h43

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Imagem mostra Primo Levi - Domínio Público
Imagem mostra Primo Levi - Domínio Público

Muitos sobreviventes escreveram sobre o Holocausto e a sobre a morte e vida (a ordem das palavras é intencional) que lá enfrentavam. A maioria destes depoimentos transmite apenas a dimensão do sofrimento epidérmico. Fome, frio, maus tratos... Alguns poucos insinuam a mensagem subliminal e soturna do horror, do inconcebível: “...Estou recolhido agora, mas não se iludam. Voltarei para assombrar raças, credos, etnias ou gêneros da minha escolha. Aguardem-me”. Poucos, porém, possuem a habilidade (e gênio) de conjugar a linguagem refinada da literatura com a brutalidade dos campos.

Primo Levi é um dos poucos, talvez o que mais se destaca. Lendo seu livro “Se questo è un Uomo” (“É isto um ser humano?”) sinto-me dividido. Quero que a leitura perdure pela beleza da escrita e por suas qualidades literárias e, por outro lado, quero me desfazer do livro por seu enredo pavoroso. Por saber que a história de fato aconteceu. Poderia ser apenas uma fantasia literária, fruto da imaginação exacerbada de um intelectual, digo-me, ingênuo. Como o livro “1984” de Orwell. Diz-se que a poesia morreu em Auschwitz. Levi desmente isso: ela mudou, mas não morreu. Perdeu sua ingenuidade e lirismo romântico, herança do século XIX e ganhou em crueza e desespero. De tanto apanhar.

Jamais esquecerei uma passagem do livro: Levi, em Auschwitz, à beira da morte. Os prisioneiros eram proibidos de comer (se tivesse algo!) e beber fora do horário permitido. Era alto inverno e ele achou um pingente de gelo no batente da porta. Quebrou o gelo, e passou a lambê-lo, pois, a sede era ainda pior que a fome. Passou um guarda da SS, arrancou de sua mão o gelo, jogou-o na lama e pisou em cima. 

Nada a perder

Levi, delirando de fome, frio, sede e cansaço, encarou-o e como não tinha mais nada a perder, perguntou: “Mas... Por quê?” O guarda respondeu: “Porque eu posso.” Impressionou-me a prepotência da resposta, o poder sem limite que o guarda assumira e com razão. Pelas leis raciais de Nuremberg ele poderia mesmo. Lembrei-me de uma passagem de uma peça de Tennessee Williams, o grande dramaturgo americano.  

“Dois intelectuais fracassados (os beatniks dos anos 50 e 60 do século passado) conversando: --- Quem era teu pai?

-- Um arrendatário de uma pequena gleba que mal dava para a subsistência. E ainda por cima, o Velho bebia.  Ele se consolava vendo seu vizinho na mesma situação que ele, mas, cúmulo de desgraça, o vizinho era negro.  Portanto, havia alguém abaixo da escala social de papai. Mas, o vizinho não bebia, guardava dinheiro, comprou um cavalo e passou a perfilar montado no pangaré. Um dia o pangaré morreu. Envenenado.

-- Vixxxx. Pegaram o criminoso?

--- Foi meu pai.  Ele dizia: ´se este negro miserável morto de fome for mais importante que eu, a quem então eu vou ser superior? A miséria era suportável, mas estar no último degrau da escala social, sem ninguém abaixo, isto não.”

Voltando ao livro de Levi, boa parte dos guardas de campos de concentração tinham por origem os esgotos sociais dos países ocupados pelo exército nazista, com grande população judia. Ucrânia, Países Bálticos, etc. 

Virulentamente antissemitas, além de sua herança de ódio, ressentiam eles a ascensão dos judeus do submundo dos guetos para a classe média em menos de 100 anos, a partir da Revolução Francesa. Em vez dos judeus, passaram eles a ser o sopé da estrutura social. Os nazistas ofereceram-lhes os meios da vingança e da redenção. Em vez de envenenar o pangaré, passaram a envenenar os próprios judeus. Com poder de vida e morte sobre eles. Ora, que delicia de guerra! 

Exigente e implacável

Levi sobreviveu ao Holocausto. Voltou para Itália, tornou-se escritor mundialmente reconhecido e suicidou-se 4 anos depois. Alguma pista quanto aos motivos? Ninguém passa incólume pelas provações físicas e mentais de um evento da magnitude e da malignidade do Holocausto. 

Talvez, a delicadeza da alma do escritor e o rigor da cobrança subconsciente do sobrevivente referente a eventos reais ou imaginários e a culpa de ter sobrevivido (“por que eu e os outros não?”) expliquem o motivo. Levi, exigente e implacável consigo mesmo, não encontrou pangaré para redimir o seu passado em Auschwitz.


*O texto de Gabriel Waldman, escritor e sobrevivente do Holocausto, foi proporcionado pela StandWithUs Brasil, instituição que trabalha para lembrar e conscientizar sobre o antissemitismo e o Holocausto, de maneira a usar suas lições para gerar reflexões sobre questões atuais.