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Curiosidades / Personagem

Entenda o importante método de alfabetização de Paulo Freire

“Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”, disse Freire

Alexandre Carvalho Publicado em 19/09/2021, às 09h00 - Atualizado em 21/04/2022, às 09h00

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O educador Paulo Freire - Divulgação/Vídeo/TV Senado
O educador Paulo Freire - Divulgação/Vídeo/TV Senado

No início dos anos 1960, o achocolatado em pó mais famoso da Nestlé no Brasil já marcava presença em comerciais de televisão, que exibiam sua embalagem ao som de um jingle que repetia o nome do produto: “Nescau, Nescau…” Um fã dessa propaganda era um menininho de apenas 2 anos na época, Lutgardes Costa Freire.

Tanto que, um belo dia, num passeio de jipe com seu pai, a criança reconheceu a lata do produto numa placa em cima de um ponto de ônibus. Apesar de ainda estar na fase de ensaiar as primeiras frases, imediatamente começou a repetir “Nescau, Nescau…” e a mimetizar a letra da canção publicitária.

Esse evento singelo de família, aparentemente sem nada de incomum, entrou para a História: a associação da figura com a palavra foi a lâmpada acesa que inspirou o pai do garoto, o educador Paulo Freire, a elaborar uma metodologia inovadora de alfabetização.

Experimentando a partir daquela ideia, esse intelectual pernambucano, nascido em 1921, no Recife, concluiu que o bê-á-bá precisava partir das experiências de vida das pessoas. Seu filho havia “lido” o Nescau da placa porque o termo era presença constante do seu cotidiano.

Diferente das cartilhas à base de “vovó viu a uva”, Freire descobriu que poderia acelerar a alfabetização trabalhando a partir de “palavras geradoras”, que fizessem parte da realidade do aluno. Algo que podia fazer sentido tanto para crianças quanto adultos.

Aproximar a aprendizagem dos fatos da rotina significava mais do que agilizar o processo de ler e escrever. Era um estímulo pedagógico para quem antes queria distância da sala de aula, simplesmente por não se encaixar nas formalidades do ensino tradicional – ainda mais naquele início conservador da década de 1960.

“O que mais me chamava a atenção era o respeito pelo analfabeto”, diz Marcos Guerra, que foi coordenador de um projeto educacional de Freire, no documentário Alfabetização em Angicos – A Pedagogia de Paulo Freire, do Canal Futura. “O respeito à cultura do analfabeto. O respeito à linguagem do analfabeto. Na época, predominavam as cartilhas, só com a linguagem do alfabetizador.”

Para Freire, essa aprendizagem pela prática dialética com a realidade era o contraponto perfeito ao que ele chamava de “educação bancária”, tecnicista e alienante que predominava nos ambientes escolares. Pelo seu método, o estudante criaria os próprios caminhos de aprendizagem em vez de seguir um padrão universal oferecido a todos.

Afinal, em suas individualidades, as pessoas podem, e devem, aprender de modos distintos. “Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”, ele disse. A teoria é bonita. Mas será que funciona na prática? Um experimento pioneiro no Rio Grande do Norte provou que sim.

Os 300 de Angicos

“Belota.” A palavra não faz sentido nenhum para um executivo andando de patinete motorizado na Avenida Faria Lima, em São Paulo, ou para um boêmio do Leblon, no Rio de Janeiro. Mas os sertanejos de Angicos, município pobre, a cerca de 170 quilômetros de Natal, sabiam bem em 1963 o que o termo significa: é como se chamam os enfeites das redes e dos utensílios dos vaqueiros.

Esse adorno foi o primeiro termo trabalhado no experimento que ficou conhecido como “As 40 Horas de Angicos”. O título vem de um resultado da experiência que parece mentira – ou milagre: nesse curto período de tempo, adultos analfabetos da cidade potiguar já conseguiam decodificar uma série de palavras que faziam parte do seu cotidiano.

E não se tratava de um grupo pequeno: foram 300 pessoas, entre homens e mulheres – a maioria, cortadores de cana da região. Estavam lendo e escrevendo numa velocidade impensável pelos métodos convencionais – com tudo o que essa conquista tem de transformadora.

Tudo começou em novembro do ano anterior, quando uma equipe de estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) chegou ao povoado com duas missões: levantar o vocabulário utilizado pelo povo local e divulgar a proposta de alfabetização que viria a se consolidar nos meses seguintes. E aquelas pessoas não haviam sido selecionadas por acaso.

“Angicos foi escolhida porque naquele contexto era o lugar em que havia o maior índice de analfabetismo do Rio Grande do Norte”, explica a pesquisadora Divoene Pereira. Cerca de 75% dos habitantes não sabiam ler e escrever até então.

As palavras

Desse levantamento do universo vocabular, 410 palavras foram registradas pelos pesquisadores e, dentre essas, umas poucas mais presentes estariam no centro do método de Paulo Freire que estaria sendo testado ali. Em janeiro de 1963, o próprio educador chegou com uma equipe para as aulas.

No dia 24, nada de português. O que se viu foi uma conversa descontraída sobre a realidade e a cultura local. Só quatro dias mais tarde, a palavra “belota” inaugurava as lições propriamente ditas. “A alfabetização era baseada em 12 a 15 palavras apenas”, explica Marcos Guerra, “que continham todos os principais fonemas da língua portuguesa”.

Além da simpática “belota”, os angicanos falavam muito em “Deus”, “esmola”, “triste”, “medo”, “chuva” e “conformação”. “Felicidade” foi uma ausência sentida pelos universitários que fizeram o levantamento. As palavras eram divididas em sílabas que iam sendo repetidas ao longo da aula, facilitando a compreensão; em seguida os alunos aprendiam as famílias silábicas, tornando-se capazes de formar novas palavras.

E novas ideias também: cada palavra merecia um debate, para que os estudantes, além de relacionar melhor forma e conteúdo, refletissem sobre a própria vida.

Quando o termo estudado era “trabalho”, por exemplo, a discussão em aula girava em torno de tudo o que dizia respeito às condições dos trabalhadores: remuneração, garantias, direitos... O método não se restringia à escrita e à leitura: envolvia inserir o indivíduo em seu contexto social e político, para que fosse capacitado ao exercício pleno da cidadania.

Em março, ao final dos trabalhos, dois testes foram aplicados: de alfabetização e de politização. E os resultados foram espantosos: 70% de aproveitamento. O sucesso do trabalho teve tamanha repercussão que a cerimônia de encerramento do projeto contou com a presença não apenas do governador do estado, mas também do presidente da República: João Goulart, na época.

Paulo Freire virava uma estrela da educação brasileira, e Jango, que era um entusiasta das reformas de base, aprovou a multiplicação dessas primeiras experiências num Plano Nacional de Alfabetização. A ideia era promover uma formação em massa de educadores que seguissem o método Paulo Freire e atuassem em 20 mil círculos de cultura Brasil afora.

Era uma revolução, sim, mas não a comunista que tantos temiam naqueles tempos de Guerra Fria, em que o país aliava-se aos Estados Unidos no esforço para conter a expansão da influência soviética na geopolítica mundial.

Era uma verdadeira reforma democrática. Pense que, à época, indivíduos analfabetos eram considerados cidadãos de segunda classe, que eram proibidos de votar. Quando a miserável Angicos foi transformada por aquelas aulas não convencionais, os alunos-cobaias não saíram do experimento apenas com a capacidade de escrita e leitura.

A cidade ganhava ali 300 novos eleitores. E em míseras 40 horas. Imagine a velocidade com que o analfabetismo seria derrotado no Brasil se a experiência fosse multiplicada, como queria João Goulart.

Mas, como a repetição de aventuras autoritárias já deixou claro, o Brasil nunca foi afeito à ideia de um povo politicamente consciente. Isso é coisa de comunista, pensaram os conservadores da época, que derrubaram Jango e suas reformas de base.  E, sendo assim, Paulo Freire também seria comunista – como ainda pensam, de forma anacrônica, muitos políticos de extrema-direita destes tristes trópicos.


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