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Desventuras / Culinária japonesa

Como a culinária japonesa se transformou numa arte única e delicada

Além disso, saiba como os imigrantes a trouxeram para o Brasil

Flávia Pinho, arquivo Aventuras na História Publicado em 21/08/2022, às 12h00

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Imagem ilustrativa - Aventuras na História
Imagem ilustrativa - Aventuras na História

Quando a primeira leva de imigrantes japoneses desembarcou no Brasil, em 1908, trouxe um punhado de hábitos esquisitos. Imagine a cara dos caboclos paulistas diante da cena de pessoas comendo com o hashi. Um século depois, alguns do hábitos orientais acabariam integradas ao dia a dia dos brasileiros.

Comer com hashi virou moda até em lanchonetes e palavras como sushi e sashimi já fazem parte do vocabulário por aqui. O que pouca gente sabe é que a comida japonesa que conhecemos é bastante moderna em relação à história milenar do Japão.

Até o século 10, praticamente tudo o que se comia no país, como o arroz e o macarrão, era preparado de acordo com os costumes dos vizinhos, principalmente chineses – a grande potência da época – e coreanos. Foi nos séculos seguintes que as influências estrangeiras passaram a ser transformadas e adaptadas às condições e preferências locais. Nascia, finalmente, a autêntica gastronomia japonesa.

O grão e o pescado

Embora o peixe cru seja apontado como a mais perfeita tradução da culinária japonesa, ele demorou bastante a ganhar espaço no prato. A base de tudo foi o arroz. Desde o século 3 a.C., o Japão cultiva regularmente esse grão em campos alagados. Foi em função dele que a sociedade rural japonesa se formou e que a economia do país se estruturou – no fim do século 19, os impostos nipônicos ainda eram pagos em arroz.

Até hoje esse alimento, que deu origem a tantos rituais e cerimônias, simboliza a bonança e a fartura. “A refeição tem duas categorias de comida, o arroz e os outros pratos. Naturalmente, é melhor que ambos sejam deliciosos, mas se for preciso decidir qual terá prioridade, a tradição manda que seja o arroz”, escreve o antropólogo japonês Naomici Ishige no livro The History and Culture of Japanese Food (A história e a cultura da comida japonesa, em tradução livre).

Não é de estranhar que a existência ou não de arroz por perto tenha pautado também a emigração. Os japoneses que deixaram o país no século 20 em busca de melhores condições de vida podiam até abrir mão da convivência com a família. Mas viver sem arroz era pedir demais.

“As colônias japonesas que inicialmente se fixaram no norte da Bahia e em Pernambuco, onde não havia a tradição de plantar arroz, acabaram se mudando para São Paulo”, afirmou um dos principais pesquisadores sobre a imigração japonesa no Brasil, Koichi Mori (1955-2019), que fez carreira no Centro de Estudos Nipo-Brasileiros.

Como a espécie encontrada aqui era o popular tipo agulha, bem diferente da variedade que fazia sucesso no Japão, o jeito foi improvisar. “Os imigrantes passaram a prepará-lo à moda japonesa, sem qualquer tempero.” Formado por um arquipélago, o Japão tem uma costa bastante extensa. E, por ser um ponto onde as correntes marítimas quentes do sul se encontram com as águas frias do norte, ela permite a existência de uma variedade enorme de peixes.

Não por acaso, o japonês ainda é o povo que mais come peixe no mundo. Além das condições naturais, há outro fator para a consolidação desse hábito alimentar: a religião. “O tabu de comer carne de mamíferos, originário do budismo, colocou o peixe na posição de principal alimento animal por muitos anos, e sem dúvida foi responsável por fazer do Japão a nação de amantes de peixe que é hoje”, explica o antropólogo Naomici Ishige.

Mas, se o hábito de comer peixe é antigo, o pescado raramente chegava fresco às mesas do antigo Japão. Durante séculos, versões fermentadas em sal, algumas muito estranhas  para o nosso paladar, foram desenvolvidas como forma de preservar grandes quantidades de peixe após o fim da temporada de pesca.

Em algumas dessas técnicas de conservação, caso do shiokara, o peixe era reduzido a uma pasta. Em outras, como o milenar narezushi, o pescado, misturado a arroz cozido, permanecia inteiro por um ano ou mais dentro de potes lacrados.

A palavra sushi originalmente se referia a esse tipo de peixe longamente fermentado. Só muito tempo depois, mais precisamente no fim do século 17, uma nova receita começaria a aproximar o sushi da versão que comemos hoje. Consistia de uma combinação de arroz e peixe com sabor ácido causado pela adição de vinagre. Mais tarde, no século 19, esse novo sushi tornou-se popular nas ruas da atual Tóquio com o nome de nigiri-zushi.

“Foi o estágio final na transformação do sushi de alimento preservado em fast food”, afirmou Ishige. O sashimi contemporâneo também é bem diferente do original. No século 8, textos já citavam uma receita chamada namasu: fatias de peixe cru eram servidas num molho feito de vinagre e missô (pasta de soja). O peixe já vinha misturado ao molho e ninguém reparava se tinha sido bem ou mal cortado. Só no século 15 o japonês passou a preparar o sashimi como faz hoje: peixe cru fatiado com maestria, para que o sushi man possa exibir toda a sua habilidade de cortar e arrumar o peixe.

Para manter o costume de comer peixe, os imigrantes que chegaram ao Brasil em 1908 tiveram que aceitar algumas modificações. Como as colônias se estabeleceram nas plantações de café do interior de São Paulo, a quilômetros do mar, os únicos pescados disponíveis eram bacalhau salgado e sardinha em conserva. “Eles assavam um pouquinho e comiam com arroz, mas logo começaram a se encaminhar para Santos, na direção do litoral”, revelou o especialista Mori.

Enquanto isso, hábitos brasileiros, como o desjejum à base de café e pão, foram sendo assimilados.

As visitas e o chá

A partir do século 15, quando o comércio com outros países cresceu, uma enxurrada de novos sabores vindos do Ocidente (entre eles a abóbora e a pimenta) tomou conta do Japão. O açúcar, que antes era importado da China como medicamento, passou a ser comprado em grandes quantidades e, finalmente, produzido internamente. Em pouco tempo, receitas de bolos e doces desenvolvidas na Europa começaram a circular nas cozinhas japonesas, com uma ou outra modificação local.

No século 16, os navegantes portugueses e espanhóis trouxeram ainda mais novidades em seus navios. E acabaram por deixar marcas definitivas na culinária japonesa, principalmente nos textos dos cardápios. A palavra tempurá, por exemplo, que dá nome a uma receita com alimentos empanados, muito provavelmente vem do português. “Há várias teorias da etimologia portuguesa. Uma aponta para a palavra tempero”, escreve Ishige. E tem mais.

O hikado, prato feito de atum em cubos, rabanete, cenoura e batata-doce cozidos com molho shoyu, vem do português “picado”. Algumas das guloseimas mais conhecidas do japonês também têm nomes portugueses, como konpeitô (confeito) e karumera (caramelo).

Na gastronomia japonesa, o século 16 também foi marcado por outro divisor de águas, a criação da cerimônia do chá. Inventado pelo monge zen Sen no Rikyû (1522-1591), popularmente conhecido como o "maior mestre do chá", o ritual mudaria para sempre os hábitos do japonês à mesa. No início, as reuniões para o chá eram cheias de ostentação. Rikyû criou regras em que prevaleciam a simplicidade e a eliminação do supérfluo.

Logo essas características saíram do ato de tomar chá e se transmitiram para as refeições como um todo. Banquetes extravagantes, por exemplo, foram banidos do Japão. “Os pratos do jantar medieval eram inteiramente cobertos de comida, empilhada simetricamente”, descreve Ishige. Com o ritual do chá, o alimento ganhou outro visual. “Passou a ser arrumado com cautela, valorizando a beleza dos espaços vazios, um princípio que sobrevive hoje como a base da estética da cozinha japonesa.”

Cozinha fechada

Se o século 16 foi de portas abertas às influências estrangeiras, o período a seguir seria de isolamento. Durante o período Edo (ou Tokugawa), entre 1603 e 1867, o Japão foi dominado pelos líderes militares conhecidos como xoguns. Eles baniram o cristianismo e expulsaram os estrangeiros do país, fechando as fronteiras para o comércio internacional.

Foi quando se consolidou a gastronomia do Japão. “Esse período assistiu ao surgimento do que são hoje considerados os valores supremos da culinária tradicional japonesa”, diz o autor. “A maioria dos pratos tradicionais comidos hoje data desse período de reclusão.” Hábitos refinados, nascidos e aprimorados nas cozinhas da aristocracia, foram gradualmente chegando a outros níveis da sociedade. Nesse tempo também surgiram os primeiros restaurantes japoneses.

A partir de 1853, os Estados Unidos começaram a pressionar pela reabertura do Japão ao comércio internacional. Em 1868, com a Restauração Meiji (que tirou o poder dos xoguns e o devolveu à família real), os japoneses redescobriram o mundo. Ingredientes até então tidos como exóticos, como a carne bovina e o leite, entraram na dieta cotidiana. Utensílios e móveis ocidentais, como os talheres e a mesa de jantar, foram gradativamente incorporados.

E até o sushi ganhou versões moderninhas, enroladas em algas (nori), com direito a frutas e outros ingredientes coloridos. O período de modernização coincidiu com
a criação de regras de etiqueta que, ainda hoje, são respeitadas em ocasiões formais. “As normas mais rígidas prevaleceram até a Segunda Guerra, em todas as classes sociais”, contou Luci Fujimoto, especialista em etiqueta. Atualmente, a rigidez não é tanta e os encontros entre amigos são bem descontraídos.


Para saber mais curiosidades gerais, ouça agora o podcast abaixo 'Desventuras na História', apresentado pelo professor de História Vítor Soares, idealizador do podcast 'História Em Meia'.