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Desventuras / Democracia

A difícil história da democracia no Brasil

A República deu início a uma prática recorrente no Brasil: a tomada do poder pelos militares em momentos de crise

Rodrigo Cavalcante // Edição: Izabel Duva Rapoport // Adaptado por Luisa Alves Publicado em 06/11/2022, às 16h00

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Foto de ato em favor da anistia - Arquivo Nacional
Foto de ato em favor da anistia - Arquivo Nacional

Em 1974, apenas 476 brasileiros (dos mais de 100 milhões então) votaram para presidente da República. Os privilegiados faziam parte de um colégio eleitoral montado pelo governo militar para garantir a posse de mais um general no poder, Ernesto Geisel, eleito com 400 votos, contra 76 dados a Ulysses Guimarães, do MDB, que se
lançou como “anticandidato” para marcar (o)posição.

Hoje, mais de 156 milhões de brasileiros podem votar para presidente, o que faz do
país uma das maiores democracias do planeta. E não é apenas a multiplicação do eleitorado que impressiona. Outros pontos básicos, como “as liberdades de expressão, de organização e de voto numa escala nunca antes vista se expandiram”, escreveu o filósofo e cientista político, Renato Janine Ribeiro, em seu Dicionário de Filosofia Política. Por outro lado, porém, o autor ressalta que a democracia no país está ainda confinada à esfera política.

“Somos iguais só nas eleições e, mal elas terminam, um surdo terceiro turno faz que decisões tomadas pelo demos (povo) sejam revertidas ou reduzidas pelos poderes
da desigualdade. As relações de trabalho não foram democratizadas e as afetivas – amizade e amor – tampouco, mas parecem estar mais perto de sê-lo.”

O período democrático anterior, entre 1946 e 1964, durou 18 anos. Dessa vez, o Brasil está prestes a completar 37 anos como uma democracia de massas e pode entrar em sua quarta década sem golpe. Entretanto, diante das ameaças do atual governo às instituições, eis a questão: existe chance real de que esta fase não seja permanente?

Para o historiador José Murilo de Carvalho, autor de Cidadania no Brasil, trata-se de um longo (e ainda incompleto) caminho, cheio de desvios, retornos e surpresas. Caminho
que, curiosamente, começa após a Independência, com uma Constituição imposta pelo primeiro imperador nacional.

O Brasil independente e o voto

Não se fala propriamente em democracia na Colônia nem no Brasil Imperial, claro, uma vez que reis e imperadores não são eleitos. Eleições para certos cargos, como o equivalente ao de vereador, até ocorriam no período colonial, mas a autoridade máxima era a Metrópole portuguesa (embora, na prática houvesse certa autonomia, especialmente nas áreas menos povoadas).

Mesmo após a Independência, dom Pedro I criou o chamado Poder Moderador para que não corresse o risco de ser uma figura decorativa. Enquanto na maioria das monarquias constitucionais prevalece a máxima de que o monarca reina, mas não governa, no Brasil o imperador escolhia os ministros, o primeiro-ministro e os presidentes provinciais (posto equivalente ao de governador de estado).

Falar em cidadania antes do fim da escravidão é um contrasenso. Ainda assim, historiadores admitem que, na observação dos direitos políticos, a Constituição imposta em 1824 foi, em muitos aspectos, mais inclusiva no acesso ao voto do que viria a ser, por exemplo, a de 1891, a primeira republicana. Podiam votar todos os homens de 25 anos ou mais que tivessem a renda mínima de 100 mil réis.

A eleição era indireta: um grupo de votantes escolhia os eleitores que elegiam os representantes. Apesar, ainda, da exclusão de mulheres e escravos (milhões de pessoas), a situação no Brasil era melhor do que a de muitos países considerados avançados: 13% da população (descontados os escravos), em 1872, votaram. Na mesma época, eram 7% na Inglaterra, 2% na Itália e 9% em Portugal.

No quesito “qualidade” do voto, porém, a coisa mudava de figura. Somente 15 em
cada 100 eleitores sabiam ler e escrever e 90% viviam em áreas rurais, onde seus votos eram controlados por grandes latifundiários. Estes eram quase sempre comandantes da Guarda Nacional, o que soava ainda mais ameaçador para quem quisesse pensar diferente do mandachuva local.

Nessas condições, não é de estranhar que as eleições fossem tumultuadas e violentas, lideradas frequentemente por três personagens: o capanga, o cabalista e o fósforo. A função do capanga, que sobrevive até hoje em alguns rincões do país, era proteger seu candidato e ameaçar os adversários.

Os mais eficientes conseguiam fazer com que os eleitores dos concorrentes não saíssem de casa para votar. Ao cabalista cabia manter os eleitores reunidos, em geral com a oferta de comes e bebes, em um único local até a hora do voto – para garantir que eles não “mudassem de lado”.

Como muitas dessas reuniões festivas ocorriam em currais nas fazendas, vem daí a expressão “curral eleitoral”. E, finalmente, havia a figura do fósforo, o sujeito que fraudava as eleições se apresentando falsamente em nome do maior número possível de eleitores, aproveitando-se dos sistemas precários de identificação.

Mesmo quando nenhuma dessas três figuras atrapalhava o pleito, isso não garantia que ele fosse limpo, já que eram frequentes atas redigidas como se tudo tivesse ocorrido normalmente nas fraudulentas votações “a bico de pena”.

Era possível, então, eleger vereador, juiz de paz, deputado e senador. Em 1881, porém, uma nova lei restringiu ainda mais o número de eleitores. Apesar de ter eliminado anacronismos como a eleição indireta, novas exigências quanto à comprovação de renda e a exclusão dos analfabetos colocaram de fora, de uma só vez, 90% do eleitorado.

A participação da população masculina que votava caiu para 0,8% nas eleições de 1886. Restava esperar que a República, proclamada três anos depois, pudesse ampliar
a participação no processo eleitoral. Porém, não foi exatamente isso o que aconteceu.

República sem povo 

Proclamada por militares insatisfeitos com o tratamento dado aos quartéis – aliados a proprietários rurais sem compromissos com a monarquia pós-abolição da escravatura –, a República deu início a uma prática recorrente no Brasil: a tomada do poder pelos militares em momentos de crise.

Apesar da retórica democrática do novo regime, ele pouco mudou em termos de participação popular. Na primeira eleição para a Presidência da República, em 1894, votou apenas 2,2% da população, bem menos do que no pleito de 1872.

Pode-se dizer, ainda, que em vários períodos republicanos houve menos liberdade de expressão do que no Segundo Reinado (dom Pedro II, por exemplo, não censurava a imprensa).

De qualquer forma, a República permitiu a eleição do chefe de Estado e de Governo e dos presidentes dos estados, descentralizando o poder. Com o tempo, isso favoreceu as elites locais, agrupadas em partidos únicos para bloquear a oposição.

A aliança entre oligarquias estaduais definiu a política até 1930. Também conhecida como República Velha ou Café com Leite, ela manteve as fraudes, os capangas, os currais e o domínio dos “coronéis”, os proprietários rurais chamados assim mesmo após o fim da Guarda Nacional, em 1918.

Quando ficou claro que a República não foi um grande salto democrático, a insatisfação, de novo, seria liderada nos quartéis, dessa vez por tenentes que também representavam os interesses da classe média urbana.

Quando o candidato desse grupo, Getúlio Vargas, foi derrotado pelo governista Julio Prestes, sob a suspeita de fraude, pouca gente desconfiava que algo iria mudar no país. Até que uma série de eventos (como o crash de 1929 e o assassinato do governador
da Paraíba, João Pessoa) precipitou a Revolução de 1930 e colocou Vargas no poder.

Mais uma vez, a democracia seria adiada.

Entre ditaduras e eleições 

Do ponto de vista dos direitos sociais, o governo Vargas foi um marco positivo. Implantou
uma série de leis para proteger os trabalhadores, como a regulamentação da jornada de oito horas e as caixas de previdência.

Sobre os direitos políticos, porém, tudo é diferente. Getúlio deu um golpe em 1937, proclamou uma nova constituição e governou como ditador até 1945, colocando na prisão quem discordava dele.

A imprensa era censurada e cooptada. Somente após a Segunda Guerra o país viveria, enfim, o que seria considerado seu primeiro período democrático. Em 1945, foram realizadas eleições para presidente e para uma nova Assembleia Constituinte.

A liberdade de imprensa e a de organização política foram restabelecidas e adotadas eleições regulares para presidente, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores.

Dessa vez, poderiam votar homens e mulheres acima de 18 anos. A exclusão do voto do analfabeto, porém, permaneceu. Ainda assim, a participação da população na política cresceu significativamente.

Em 1930, os votantes não passavam de 5,6% da população. Na eleição de 1945, chegaram a 13,4%, em 1950, já foram 15,9% às urnas e, em 1960, 18%. Mas, a partir do retorno de Getúlio Vargas ao poder, em 1950 (agora eleito), o acirramento da disputa
entre seu grupo e o da oposição (encabeçada por Carlos Lacerda, da UDN) criou um clima de instabilidade que colocaria novamente os militares em alerta.

Após a morte de Vargas, em 1954, os dez anos seguintes foram marcados por
constantes ameaças de golpe. Em 1955, a posse do presidente Juscelino Kubitschek foi assegurada por uma intervenção do ministro da guerra, o general Henrique Lott.

Quando o sucessor de JK, Jânio Quadros, renunciou meses após tomar posse, em 1961, abriu-se nova crise. Os quartéis não aceitavam que o vice-presidente, João Goulart, assumisse o governo.

Um arranjo casuísta implantou o parlamentarismo para que ele fosse só primeiro-
ministro. Após um plebiscito realizado em 1963, Jango foi reempossado presidente e governou até março de 1964, quando um novo golpe militar encerrou mais uma vez a democracia no país.

A espera redemocratização 

O general Castelo Branco tomou posse prometendo restabelecer logo a democracia. O resto da história é sabido: a ditadura durou duas décadas. Houve eleições diretas para vereador, deputados, senadores e governadores. Mas, até a escolha de Tancredo Neves, em 1985, foram seis “eleições” indiretas para presidente.

As duas primeiras, que elegeram Castelo Branco e Costa e Silva, se deram pelos votos do Congresso Nacional (descontados todos os políticos cassados). Com a Constituição de 1967 (imposta, e não votada), criou-se um Colégio Eleitoral de delegados e integrantes do Congresso para escolher o presidente, que funcionou a partir de 1974, quando Geisel venceu (e o Brasil perdeu da Holanda).

O próprio Geisel deu início à abertura “lenta e gradual” até que um civil pudesse dirigir a nação. Milhões de pessoas foram às ruas exigir as Diretas Já – pelo direito de eleger o
presidente, entre outras demandas.

Mesmo após a sua rejeição, a pressão popular fez com que Tancredo fosse eleito pelo Congresso (contra Paulo Maluf) para suceder o general João Batista Figueiredo. A morte do escolhido fez José Sarney presidente.

A Constituição de 1988 confirmou o voto a todos os brasileiros acima dos 18 anos (inclusive analfabetos) e tornou facultativa a participação dos jovens acima dos 16. No ano seguinte, mais de 82 milhões de eleitores puderam votar à Presidência. E milhares saíram às ruas, em 1992, para exigir o impeachment do eleito Fernando Collor.

“Foi um teste de maturidade democrática pelo qual o país passou”, afirmou Ribeiro.

De lá para cá, o eleitorado saltou para mais de 156 milhões. Mas a expansão do voto garante que a democracia esteja assegurada? De acordo com a cientista política Luciana Gross, a criação de instituições como o Conselho Nacional de Justiça seria um exemplo de uma fase de aperfeiçoamento, assim como mudanças que nascem da iniciativa popular, como, por exemplo, a lei que veta a eleição de políticos condenados por tribunais colegiados (Ficha Limpa).

Para a cientista política Maria Tereza Sadek, não se pode afirmar se uma democracia
está ou não consolidada a não ser se comparada ao regime de outros países democráticos.

Segundo ela, apesar da evolução dos direitos políticos, o Brasil está longe dos padrões aceitáveis de democratização por problemas como a desigualdade social e a baixa escolaridade – o que impede o exercício pleno e consciente dos direitos políticos.