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Desventuras / Cleópatra

Entre o mito e a história: Cleópatra foi além da imagem 'promíscua' de Hollywood

Sob a perspectiva de Plutarco, Cleópatra se tornou sedutora, manipuladora e sexualizada, mas ela foi muito mais do que a 'história oficial' conta

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 23/03/2024, às 09h00 - Atualizado em 15/04/2024, às 17h52

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A rainha por Alexandre Cabanel (1887) - Alexandre Cabanel, Wikimedia Commons, Domínio Público
A rainha por Alexandre Cabanel (1887) - Alexandre Cabanel, Wikimedia Commons, Domínio Público

Uma pessoa com uma liderança corajosa e extremamente competente. Aquela figura vista como exímia diplomata e estrategista militar. Que desafiou as ideias de sua época e se tornou um dos personagens mais reconhecidos de seu tempo — e de toda a história.  

Você provavelmente imaginou Napoleão, Alexandre, o Grande, ou Aníbal Barca, quem sabe? Mas o quanto você se surpreenderia se descobrisse que essa pessoa, apesar de todas suas conquistas, fosse retratada historicamente como sedutora, manipuladora e promíscua

Durante séculos, Cleópatra VII foi vista como uma glamourosa rainha egípcia, que flechou os corações de dois grandes líderes romanos. Nos palcos e nas telonas, foi representada por grandes estrelas, como Theda Bara, Colette Colbert, Vivien Leigh e, a mais famosa entre elas, Elizabeth Taylor

Cleópatra continua viva no imaginário popular, mas, nem todos sabem sobre sua trajetória além do que escreveu a 'história oficial'. 

Em 'Cleópatra: Seu mito, sua história' (Ed. Planeta), a romancista, ensaísta e biógrafa Francine Prose desafia a imagem distorcida da rainha ao longo dos anos, mostrando que Cleópatra foi muito mais do que a figura sexy e atraente pela qual ficou conhecida. 

Os mitos 

Apesar de ser uma figura conhecida na cultura popular, a grande verdade é que pouco se sabe como realmente Cleópatra VII era. Uma de suas raras representações que temos são de moedas de bronze cunhadas em Alexandria

Cleópatra numa moeda de 40 dracmas cunhada em Alexandria - Otto Nickl via Wikimedia Commons

"A moeda não é como uma foto, a moeda é bastante grosseira e as pessoas disseram essa era Cleópatra. Não se conseguiria identificar Cleópatra numa fila de gente, só por ter visto aquela moeda, ela é muito indefinida e vaga", explica Francine em entrevista à equipe do site do Aventuras na História. 

Fora isso, nossa principal fonte vem do historiador grego Plutarco. Acontece que o biógrafo e ensaísta grego nasceu quase um século depois da morte da rainha egípcia — usando de fontes que não estiveram diretamente conectadas com ela. 

"Eu acho que foi extremamente difícil para historiadores gregos, para historiadores romanos e também para os próprios romanos, que tinham interesse em assumir o controle do Egito e 'erradicar' a nação, a escolha de retratá-la como uma mulher talvez linda, talvez charmosa, mas não realmente capaz de fazer as coisas que ela foi obviamente capaz de fazer", continua. 

Prose aponta que as fontes usadas por Plutarco não eram diretas. Ele "supostamente" conhecia alguém que trabalhava em uma das cozinhas de Júlio César e Cleópatra. Portanto, não havia uma fonte direta. "São principalmente boatos, além de muito floreio", ressalta. 

Um ponto que exemplifica muito bem essa lenda construída em volta da figura de Cleópatra é justamente a maneira como ela morreu. Segundo acredita-se, após as tropas de Otávio tomarem Alexandria, a rainha egípcia tentou seduzi-lo, mas sem sucesso. 

Como consequência, foi feita prisioneira, entretanto, acabou tirando a própria vida após deixar-se picar por uma cobra venenosa do Egito. Cleópatra morreu em 10 ou 12 de agosto de 30 a.C., quando tinha 39 anos

A Morte de Cleópatra, de Jean-Baptiste Regnault - Domínio Público

Francine Prose aponta que, desde então, muito se debate. Afinal, Cleópatra teria tirado a própria vida levando uma cobra em um cesto? "As pessoas dizem que não é possível... uma cobra egípcia era tão grande, que não se poderia fazê-la caber numa cesta que pudesse ser infiltrada na torre; ou então se diz que nem sempre era fatal, ou que não havia ninguém de quem depender, e muito mais…".

Conforme retratado em seu livro, a pesquisadora descreve que a versão surgiu, novamente, com Plutarco. Ele registrou que, quando as tropas de Otávio subiram na torre, encontraram a rainha morta.

"E tentam, então, entender como aquilo aconteceu; ela está naquela torre, e eles olham pela janela da torre, para a outra margem de um riacho, e há areia do outro lado do riacho, e o que parece ser o rastro que uma cobra deixou na areia, e concluem — como uma evidência — que aquela deve ter sido a cobra que matou Cleópatra". 

Mas não há absolutamente nenhuma evidência. É uma história linda, mas francamente... Então, o que sabemos realmente dela é parcialmente história e parcialmente lenda, que cresceu em torno dessa história", diz. 

As relações da rainha

Quando Cleópatra e Júlio César se conheceram, em 48 a.C., o romano já estava na casa dos seus 50 anos, enquanto ela tinha apenas 19. Para contextualizar o encontro, naquela época, o Egito era 'governado' por ela e seu irmão mais novo, Ptolomeu XIII, com quem havia se casado para manter o poder.

Por conta da idade (ele tinha 10 e ela 17), Ptolomeu XIII exercia sua função com a ajuda de três conselheiros; que decidiram se unir para expulsar Cleópatra do país. Exilada, ela armou um plano para se aliar com Júlio César, que passava por Alexandria.

Dião Cássio aponta que o encontro aconteceu sem o consentimento do irmão e que Cleópatra se vestiu de maneira atraente, encantando Júlio César com sua inteligência. Já Plutarco vai além: diz que ela foi enrolada em um tapete e levada, sem ninguém saber, até aos aposentos do líder romano. Mas será que o relacionamento dos dois foi apenas um jogo político do que qualquer outra coisa? 

"Quanto ao relacionamento com Júlio César, ela teve um filho com ele, então obviamente aconteceu, foi real. E quem sabe? Não se pode voltar a todos esses milhares de anos e dizer se eles estavam apaixonados, ou se foi algo meramente político", aponta Prose

As consequências foram que Roma não invadiu o Egito, durante o período em que Júlio César permaneceu no poder. Então, realmente, seja o que for, ou tenha sido o relacionamento que for, ela conseguiu preservar a integridade de seu país perante Roma".

Após a morte de Júlio César, Marco Antônio se tornou o homem mais importante de Roma. Ele teria conhecido Cleópatra na Turquia, em 41 a.C., quando se encantou pela rainha que estava em um barco de popa de ouro e remos de prata. 

Em seu livro, Francine Prose resgata uma história um tanto quanto peculiar narrada por Plínio, o Velho, em 'História Natural'. Na anedota, durante um banquete luxuoso, Cleópatra usava um par de brincos com as maiores pérolas do mundo. 

De forma provocativa, ela teria tirado as joias e colocado em dois copos de vinho. A pérola teria se dissolvido e se tornado um afrodisíaco. A história inspirou artistas do Renascimento a retratá-la como uma figura sedutora, malvada e mágica. Uma bruxa que usou seus encantos em Marco Antônio

Mas, Francine recorda que, apesar desse misticismo em torno da união, um ponto a ser levado em consideração é que o romance não gerou bons frutos. "Marco Antônio foi outra história, quero dizer, um grande erro, finalmente. Porque ele simplesmente se perdeu, por assim dizer, durante o tempo em que estiveram juntos; eles tiveram três filhos e se deixaram levar pela importância deles". 

"Eles montavam cerimônias enormes, atribuindo às crianças propriedades e dinheiro e ouro, e assim por diante. Promoviam desfiles enormes, e muitas das coisas que faziam pareciam frívolas e extremamente dispendiosas, num período em que havia fome no país", contextualiza.

O período também foi de terríveis decisões militares, quando eles decidiram lutar a batalha de Áccio com tropas navais. Vale lembrar que seus navios não eram tão bem equipados quanto os navios de Otaviano. "Foi um desastre", explica a escritora.

"E houve ainda a famosa história de Cleópatra simplesmente deixar Marco Antônio no meio da batalha, quando ela viu que aquilo não terminaria bem, e voltar para a torre. Sem falar dos relatos da horrível cena da morte, quando ele é levado ao topo da torre e decide morrer ali, e tenta achar alguém que o mate ali e tudo mais", recorda. 

No começo, a escolha talvez tenha tido um cunho político, mas afinal eu acho que foi bastante destrutiva. Como disse Shakespeare".

Mas fora dessas relações, Cleópatra também teve amantes? Será que a rainha do Egito realmente era essa figura promíscua que muitos passaram a representar? "Eu não sei", diz Francine, sendo bem sincera. 

A pesquisadora, no entanto, ressalta um fato importante que nos faz ter um entendimento melhor de todo o contexto que Cleópatra viveu: "Ela era casada com o irmão, claro, mas o que isso significava? Ela tinha irmãos, foi responsável pela morte deles, em sua maioria, isso certamente houve; mas aquilo era uma tradição". 

Como recorda, durante a dinastia dos Ptolomeus, todos os homens eram nomeados como Ptolomeu seguindo de I, II… até Ptolomeu XV. E esse período ficou conhecido por conflitos de pais matando seus filhos; irmãos matando irmãs. "Essa era a cultura do mundo no qual Cleópatra cresceu". 

"Ou seja, a relação dela com as irmãs e irmãos era mais do que agressiva, era homicida, realmente, isso era parte da vida dela. Ninguém sabe se ela tinha outros amantes", aponta. 

Certamente, esses primeiros filmes de Hollywood retratam uma vadi* promíscua, mas eu não acho, quero dizer, meu bom-senso me diz, que liderar uma nação consome tempo, e eu não acho que ela tinha tempo para isso. Também acho que os relacionamentos que sabemos que ela teve, tanto reais como emocionais, eram calculados, não eram casuais". 

Representação imperialista

Figura extremamente popular atualmente, Cleópatra também já teve sua imagem desenhada através de diversas representações em peças, séries e filmes. Para se ter uma ideia, Elizabeth Taylor, a mais conhecida entre as Cleópatras, foi a primeira estrela de Hollywood a ganhar um milhão de dólares por um único papel, no filme de 1963. Mas por qual motivo há tanto interesse em torno de sua figura?  

"Bem, a oportunidade de retratar uma mulher oriental linda e sedutora, alimentou especialmente a trupe, não somente racista, mas também imperialista do período", diz a autora de 'Cleópatra: Seu mito, sua história'

Um exemplo destacado por Francine pode ser visto no filme 'César e Cleópatra' (1945), protagonizado por Vivian Leigh e Claude Rains.

"Os britânicos estavam no Egito, assim, o Egito era uma colônia britânica pelo Suez e assim por diante, então a ideia dessa menina moça egípcia precisando de um branco forte… há também muito sobre cor de pele, sobre raça: '[...] não é somente a luz da lua que me faz parecer branca [...]', e tudo mais".

Por fim, Francine Prose aponta que muitas produções se tornaram uma justificativa não só para o colonialismo britânico, mas para o colonialismo de uma forma geral. "Ali você tem: a) Uma mulher; b) Provavelmente uma mulher não-branca, claro, um bando de homens brancos que vão até lá assumir a situação, porque não é possível que ela esteja à frente disso sozinha". 

O que eu quero dizer é que não penso que tenha sido assim, isso é como a visão convencional disse que foi", conclui.