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Colunas / Valdo Resende / Salvador Dali

Salvador Dali, o controverso e apaixonante pintor surrealista

Monarquista católico no meio de um grupo comunista, o artista se tornou mais popular que seus conterrâneos Picasso e Miró

Redação Publicado em 07/10/2023, às 10h00 - Atualizado em 13/10/2023, às 12h25

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Salvador Dalí (à esqu.) e uma de suas maiores obras 'A persistência da memória' (à dir.) - Domínio Público
Salvador Dalí (à esqu.) e uma de suas maiores obras 'A persistência da memória' (à dir.) - Domínio Público

Para o historiador Ernst Hans Gombrich, o espanhol Salvador Dali foi um dos principais pintores do Surrealismo, o movimento surgido oficialmente em 1924. Para o crítico italiano Giulio Carlo Argan, o que Dali fez foi mera ostentação reacionária. O autor do manifesto surrealista, André Breton, cunhou um anagrama sintetizando o que pensava sobre Dali: “Avida Dollars” (Ávido de Dólares); e um dos maiores colecionadores de arte surrealista, Arturo Schwarz, afirma ter Dali criado uma imagem falsa desse movimento artístico. Para uma inegável parcela do grande público, Salvador Dali é o criador de imagens intrigantes e, sobretudo, apaixonantes.

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Cristo de São João da Cruz (1951) taxado pela crítica de sensacionalista, é uma das imagens mais populares de Dali. Galeria de Arte Glasgow /Crédito: Dali Gallery.com

Nascido em Figueras, na Espanha, em 1904, Salvador Felipe Jacinto Dalí i Domènech teve uma vida abastada e seguiu um destino comum aos artistas em geral. Pintou o primeiro quadro com apenas seis anos, depois cursou a Escola de Belas-Artes de Madri. Aperfeiçoou seu trabalho observando e desenhando no Museu do Prado e conviveu com notáveis de seu tempo, como o poeta Garcia Lorca e o cineasta Luís Buñuel. Da Espanha seguiu destino à França, onde conheceu seus conterrâneos já famosos, Picasso e Miró. Diferencial absoluto de Dali em relação a esses dois grandes pintores foi a capacidade de se autopromover. Um publicitário como poucos que, em pouco tempo, seria mais comentado que os colegas espanhóis.

O Surrealismo surgiu após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), quando a arte já questionava os padrões sociais e estéticos. Era preciso transformar o mundo, e seria a arte um dos propulsores dessa transformação. No manifesto que marca o surgimento do movimento, André Breton assim o definiu: “Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral”. O trabalho de Freud foi uma das bases fundamentais para o processo artístico dos artistas surrealistas que pretendiam maior compreensão do ser humano através da arte.

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A tentação de Santo Antão, 1946. A obra instigante está nos Museus Reais de Bruxelas /Crédito: Domínio Público

A Interpretação dos Sonhos, de Freud, impressionou Dali e, em 1929, o pintor passa a frequentar as reuniões surrealistas em Paris. Pouco tempo depois, em 1931, criava uma de suas telas mais populares, “A persistência da memória”, os famosos ‘relógios moles’ que nos evocam interpretações do tempo e da fugacidade da vida. Também durante o período em que esteve ligado ao movimento, Dali criou outras obras impressionantes, como Metamorfose de Narciso (1937), sobre o mito grego, e Espanha (1938), esta considerada uma das obras-primas do surrealismo.

Em “Espanha” (óleo sobre tela, 91 x 60cm), Dali representa a Guerra Civil através de uma técnica que veio a ser uma de suas marcas registradas, as imagens duplas. A figura predominante é a de uma mulher; seu rosto, por exemplo, é composto por guerreiros renascentistas. A mesma técnica será várias vezes utilizada. Em “Aparição de rosto e fruteira numa praia (1938), onde grande quantidade de elementos formam, além das duas imagens sugeridas pelo título, um enorme cachorro composto pelas figuras que compõem a paisagem. Outras obras de destaque que utilizam as imagens duplas são “A face da guerra” (1940) e “A apoteose de Homero (1945).

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A persistência da memória (1931). Uma das obras-primas do Surrealismo. Museu de Arte Moderna. NY /Crédito: Domínio Público.

Gala, a musa e companheira

A imagem forjada de um Dali louco e audaz não bate com os relatos de historiadores que contam de um jovem, aos 25 anos, caótico e inseguro. Foi em 1929 que o pintor conheceu Elena Ivánovna Diákonova, conhecida e imortalizada pelo apelido que lhe foi dado por Dali, Gala, nome que deriva do romance A Gradiva, de Wilhelm Jensen (“Porque ha sido mi Gradiva”). Identificada geralmente como musa do pintor, aparecendo como personagem e retratada em inúmeras obras, Gala foi muito mais. Estudiosos reconhecem e confirmam a importância dessa mulher na vida de Dali.

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Gala despertou ódios e afetos /Crédito: Fen Labalme

Nascida na Rússia em 1894, portanto dez anos mais velha que o pintor, Gala era de família rica, o que lhe possibilitou se tratar de uma tuberculose na Suíça. Foi quando conheceu um jovem poeta, que viria a ser conhecido e aclamado como Paul Éluard, com quem se casou, teve um filha e, ousada para as mulheres de então, viveu uma relação aberta. No verão de 1929 o casal foi passar férias em Costa Brava, na província de Girona, no mediterrâneo, quando Gala conheceu Dali. Um ano depois estava separada e casada com o pintor. A união entre os dois foi intensa, livre de convenções, sendo Gala a única mulher amada pelo artista.

Gala foi presença ativa na obra de Dali, fato reconhecido e assumido pelo pintor que chegou a assinar obras como “Gala Salvador Dali”, registrando a parceria na criação. Caracterizada como forte e indomável, Gala despertou ódios e afetos. As atitudes do casal vivendo um casamento aberto ficaram registradas não só nas atividades artísticas, mas em um modo de vida único. Tanto podiam gastar milhões durante estadia em Nova York, ou comprando o Castelo de Púbol, onde Gala reinava absoluta, quanto poderiam enviar presentes inusitados para os amigos; o registro mais hilário consta na biografia da atriz italiana Claudia Cardinale: conta a moça que Gala enviou o jovem e belo Helmut Berger de presente para o diretor de cinema Luchino Visconti. Tantos gastos teriam tido sérias consequências.

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No Museu Dali, a sala que tem o rosto da atriz Mae West como base para o projeto cenográfico /Crédito: Vasudev (Vas) Bhandarkar

Vendedor das obras de Dali, o marchand belga Stan Lauryssens provocou enorme reboliço em 2008, quando lançou o livro “Dali y Yo” onde afirmava que 75% das obras de Salvador Dali são falsas. Ávido por dinheiro, o pintor assinava telas pintadas por outros, ou finalizava telas iniciadas por terceiros dando o toque de mestre. A Fundação responsável pelo artista, que havia falecido em 1989, se apressou em desmentir o autor, que respondeu com dados contundentes: a vida levada pelo casal era cara, muito acima do que Salvador Dali conseguia arrecadar com suas obras.

Salvador Dali não se limitou à pintura. Participou ativamente do cinema espanhol, trabalhando conjuntamente com Luís Buñuel (O cão andaluz, 1929). Também do cinema norte americano, tendo colaborado com Alfred Hitchcock (Quando fala o coração, 1945), entre outros. Para o mercado literário escreveu ensaios e compôs poemas, publicando diversos livros. Entre esses consta Fémme Visible (1930), onde expõe seu processo criativo, denominado “método-crítico-paranóico”. Dos escritos, há que ser lembrado sua autobiografia, escrita aos 37 anos, cheia de fatos acontecidos e “por acontecer”, brincava o autor com inegável bom humor. Também amealhou dinheiro em publicidade, divulgando diversos produtos, meio pelo qual também se tornou popular.

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A imagem de uma mulher para representar a Guerra Civil Espanhola /Crédito: Domínio Público

Dali deixou o grupo surrealista em 1940. O desafeto com Breton resultou em trocas de farpas durante muito tempo. Consta não ter sido bem aceito o fato de Dali ter comparecido a uma exposição surrealista vestindo um escafandro e segurando cães de caça russos pela coleira. A origem dos cães é alusiva ao desentendimento político com Breton, comunista como quase todo o grupo surrealista. Na contramão do grupo, Dali defendia a monarquia. O impasse entre os dois homens teria chegado ao limite quando Dali retratou Lênin com nádegas amolecidas na tela “O enigma de Guilherme Tell” (1933).

Provavelmente o maior baque sofrido pelo pintor foi a morte de Gala, em 1982. Com ela se foi a grande incentivadora, cúmplice, apoiadora incondicional e parceira por 53 anos. Foi sepultada no Castelo de Púbol. Um incêndio destruiu o local em 1984, levando o artista a ter que se mudar e, ao morrer, ser enterrado em Figueras. Ficaram de Dali as imagens oníricas, o sonho tornado possível via imagens construídas no domínio técnico e no amor pelos clássicos. Eternamente reconhecível no seu bigode singular e na sua maneira de ser, Dali soube, a despeito de tudo, viver com a liberdade que muitos sonham, livre de conceitos e preconceitos que fizeram dele um artista único.


VALDO RESENDE é escritor, autor do romance “dois meninos – limbo”, do livro de contos “A sensitiva da Vila Mariana” e da coletânea de crônicas, contos e poesias “O vai e vem da Memória”.