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Intrigas e rivais: Michelangelo, o gênio da história da arte

Solitário e difícil, Michelangelo teve ao longo da vida um notável histórico de relacionamentos com papas, cardeais e governantes da época

Valdo Resende* Publicado em 20/05/2023, às 08h00 - Atualizado em 22/12/2023, às 09h59

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Retrato do gênio renascentista Michelangelo - H. Michael Karshis, Creative Commons
Retrato do gênio renascentista Michelangelo - H. Michael Karshis, Creative Commons

A grandiosidade da Basílica de São Pedro, em Roma, na Itália, não impede a surpresa e o encanto do peregrino perante a beleza da Pietá. A escultura da mãe que segura o corpo nu do filho descido da cruz foi criada por um artista com apenas 23 anos de idade.

Apesar da obra ser mundialmente conhecida, segue velado o fato de ter sido presente de um cardeal francês, Jean de Bilhères-Lagraulas, para ser instalada em homenagem ao rei da França em uma capela na própria Basílica.

As intrincadas relações políticas respondem aos motivos do presente oferecido pelo cardeal. Naquele momento, Michelangelo era apenas um jovem artista querendo trabalho.

Não longe da Pietá, visitando os Museus do Vaticano, um roteiro comum passa pelas Salas de Rafael e em seguida pela Capela Sistina. Decoradas com afrescos entre os quais destaca-se A Escola de Atenas, as salas foram encomendadas pelo Papa Júlio II, em 1508, mesmo ano em que o Papa solicitou a Michelangelo a pintura da Capela Sistina.

Colocados lado a lado, os atritos foram inevitáveis. Dois fatores alimentavam a disputa entre os artistas: o interesse no dinheiro advindo das encomendas papais e o receio do arquiteto Bramante em perder espaço. Apoiando Rafael, Donato Bramante temia a ascensão de Michelângelo perante o Papa e por isso instigava atritos entre os dois.

Obra máxima da pintura renascentista, a Capela Sistina recebeu os primeiros trabalhos de Michelangelo quando este contava 33 anos, dez após a realização da Pietá. Com 560 metros quadrados, o teto da capela compreende diversas cenas bíblicas, partindo do momento em que Deus separa trevas e luz, passando pela criação do homem e, entre outras, a expulsão do paraíso, todas as cenas emolduradas por grandes imagens das Sibilas e dos Profetas.

Uma obra imersa em penumbra e luz, calando visitantes que mal encontram adjetivos para qualificá-la.

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Michelangelo retrata-se na obra 'O Juízo Final', detalhe /Crédito: Domínio Público

Terminando o teto em 1512, Michelangelo volta para novo trabalho na Capela Sistina em 1534, aos sessenta anos de idade. Júlio II já havia falecido e três outros papas haviam ocupado o trono do Vaticano: Leão X, Adriano VI e Clemente VII.

Este último fez a encomenda para Michelangelo pintar a parede atrás do altar e, após seu falecimento, o novo Papa Paulo III confirmou o pedido anterior. O "Juízo Final" é a imagem fortíssima da parede de fundo da capela, com Cristo no centro determinando quem sobe aos céus, quem permanece no purgatório e quem vai para o inferno.

Por ironia, ou humor macabro, Michelangelo retrata-se no purgatório, suspenso por São Bartolomeu, e cabe discutir se está sendo jogado ou retirado pelo santo.

Egóico e solitário

Ao longo dos séculos as biografias de Michelangelo Buonarroti enfatizam o artista egóico, solitário e de difícil trato. Teria brigado na adolescência, carregando pelo resto da vida um nariz torto. Comenta-se ainda a rivalidade e várias intrigas com seus iguais, gente como Leonardo da Vinci ou Rafael Sanzio.

Também se relata contínuos atritos do escultor, pintor, arquiteto e poeta com os poderosos de então, os mecenas oriundos de famílias abastadas e os papas, grandes patrocinadores das artes. A vida e a longa jornada de trabalhos e êxitos incontestáveis deixa entrever outros traços da personalidade do artista.

Oriundo de uma família bem relacionada, o pai estava magistrado na cidade de Caprese onde Michelangelo nasceu (1475) e cresceu. Voltando para Florença, terra de origem dos Buonarroti, e percebendo o interesse do filho pelas artes, o pai negociou a ida do menino para a oficina de Domenico Ghirlandaio, um dos artistas mais importantes da cidade.

Oficinas ou ateliês, no período, funcionavam também como escolas onde aprendizes colaboravam na realização de encomendas feitas ao mestre. Não é difícil perceber que o ambiente de origem de Michelangelo é território de negociações: sejam aquelas que determinavam o destino dos habitantes de Caprese, via decisão do pai, sejam outras vistas na escola.

Além de aprender a dominar ferramentas e materiais, para depois iniciarem trabalhos concretos, os alunos estavam próximos no momento em que se encomendava uma obra e, durante a realização da mesma, participavam indiretamente das discussões sobre o andamento do trabalho, devendo sempre obedecer ao mestre e agradar ao contratante.

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'O Juízo Final', por Michelangelo /Crédito: Domínio Público

No auge do Renascimento (período que se estende de 1300 a cerca de 1650) as cidades italianas, livres e independentes, se constituíam em pequenos estados comandados por famílias poderosas como os Sforza, de Milão, e os Médicis, que se mantiveram por sessenta anos no poder em Florença.

Voltados ao comércio, déspotas e tiranos, os governantes dessas cidades careciam com frequência do apoio papal e, para isso, investiam na formação de membros da família destinados ao papado. Com uma educação refinada de mercadores interessados em objetos sofisticados e valiosos, tais famílias também garantiam para si os reinos dos céus através de obras destinadas às igrejas, custeando a construção e a decoração dos templos, hábito de comprar indulgências que já vinha do período anterior.

Caminho natural para quem desejava viver do ofício das artes, era fundamental estar próximo e obter apoio das famílias de governantes. Após três anos com Ghirlandaio, Michelangelo chegaria aos Médicis.

O "Jardim de São Marco" foi um local de propriedade da família Médici reunindo jovens artistas onde poderiam se exercitar na criação de obras sob orientação de professores reconhecidos como Bertoldo di Giovanni, um renomado aluno de Donatello, o primeiro grande escultor do Renascimento (1386-1466).

Durante a permanência na propriedade, Michelangelo estabeleceu relações com Lorenzo de Médici, o Magnífico e depois com o filho deste, Piero. Sem demora Michelangelo criou suas primeiras obras primas — Madona da escada e Batalha dos centauros —, dois relevos em mármore, hoje pertencentes ao Museu Casa Buonarroti. Os trabalhos iniciais agradaram a Lorenzo que passou a tratar Michelangelo como filho, colocando-o dentro de sua casa e lhe pagando expressivo salário.

Relações

Fortes crises políticas se abateram sobre Florença após a morte de Lorenzo, culminando na destituição da família do poder. Michelangelo mantém o foco na própria carreira e refugia-se em Veneza, depois passando um período em Bolonha, onde realizou esculturas para o túmulo de São Domingos, voltando tempos depois para Florença.

Durante todos esses anos iniciais, Michelangelo manteve contatos com escritores, poetas e filósofos da época, criando ou fortalecendo relações que permaneceriam por toda a vida. Sem hábito de assinar seus trabalhos, uma escultura de um cupido feita pelo artista foi vendida sem seu conhecimento em Roma a um cardeal como sendo antiguidade.

Descoberta a fraude, o comprador envia um intermediário a Florença, Jacopo Galli, para descobrir a identidade do autor da obra. Galli leva Michelangelo para Roma e atribui-se a ele a encomenda da Pietá feita pelo cardeal francês, Jean de Bilhères-Lagraulas. Começava dessa forma a relação do artista com Roma, os cardeais e o Papado.

Michelangelo sempre manifestou preferência pela escultura. Seu nível de apuro e exigência pode ser comprovado em esboços de blocos de mármore com medidas precisas, orientando os cavadores na extração delas.

Além de inúmeros blocos de anotações, dos escritos de Michelangelo constam projetos, cartas e poemas, muitos ainda por estudar. Todavia, do que já é de domínio de especialistas, constata-se tal preferência, fato que vai incentivar sobremaneira os conflitos entre Michelangelo e o Papa Júlio II.

O historiador Edward Burns relata Júlio II como astuto e desbocado. Também descreve os papas do período como aqueles que desrespeitavam tratados, assalariavam mercenários e não tinham escrúpulos na escolha de como se livrarem de desafetos. Júlio II foi pontífice por dez anos, período em que Michelangelo cria obras extraordinárias em meio a brigas e reconciliações com o Papa.

O relacionamento entre ambos tem início em 1505 com a encomenda e a aprovação de um grande conjunto escultórico, monumento fúnebre ao próprio Júlio II que ficaria dentro da Basílica de São Pedro. Michelangelo passaria os próximos oito meses escolhendo em Carrara o mármore para a obra, quando o Papa altera seus planos.

Michelangelo já despertava inveja e medo nos concorrentes. Teria sido o arquiteto Bramante quem convenceu Júlio II a construir uma nova basílica, mais rica e luxuosa, digna de quem tomara para si o nome de um imperador romano. Para isso seria necessário deixar a construção do túmulo para depois.

Quando Michelangelo retorna para iniciar seu trabalho encontra a igreja em demolição, uma aparente vitória do rival Bramante. Ao longo de um curto período, o Papa relega o projeto do monumento fúnebre a planos secundários e nem mesmo cumpre com os compromissos financeiros para com Michelangelo.

Um jogo se estabelece, o Papa segurando os pagamentos e o início das obras das esculturas e, simultaneamente usando sua autoridade para manter o artista na cidade. Michelangelo foge, volta a Florença onde sabe contar com a proteção dos governantes da cidade.

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A tumba de Júlio II, detalhe /Crédito: Jean-Christophe BENOIST, via Creative Commons

Extensas querelas com o Papa marcam os próximos períodos. Júlio II determinou a construção de uma grande estátua de bronze em Bolonha.

Um capricho do homem poderoso fazendo o artista trabalhar com um material com o qual não estava habituado. Michelangelo enfrenta a tarefa e, entre brigas e sofrimentos, termina a obra voltando a Roma dois anos após a fuga.

Não para concluir o túmulo, mas para pintar a Capela Sistina. Novo e longo embate entre o artista e o Papa.

Há uma grande diferença entre pintar um mural e um teto a 36 metros de altura. Caso Michelangelo não conseguisse estaria desmoralizado.

Em 1508 Michelangelo começa a obra recusando o andaime construído pelo rival e inimigo Bramante. Em seguida, despede ajudantes e encara sozinho o trabalho. O artista amplia a obra, faz e refaz detalhes que levam tempo. Júlio II cobra o fim dos trabalhos sem efetuar pagamentos. Michelangelo impede-o de ver a obra. As tensões máximas entre o Papa e o artista chegam a agressões físicas do primeiro e tentativas de fuga do segundo.

Finalmente, em 1512, no Dia de Finados, Michelangelo dá por fim o trabalho de pintura do teto. O resultado é magnífico e encanta o mundo.

A biografia de Michelangelo vai além das desavenças com Júlio II, da rivalidade com Bramante e Rafael e de pinimbas outras, como bater o pé para manter o Davi ao ar livre em Florença. Michelangelo debateu com Leonardo da Vinci e Botticelli, entre outros, que queriam a escultura da figura bíblica em local fechado.

Anos depois, os outros estavam certos. O material não era adequado para permanecer ao ar livre. Fatos que contribuíram para uma imagem de homem difícil e isolado. No entanto, são as próprias realizações do artista ao longo de toda a vida que revelam um grande respeito de nobres e poderosos, temor dos concorrentes e admiração de todos.

A principal contrapartida de Michelangelo sempre foi a qualidade de sua obra e, se de um lado pode ter sido um sujeito taciturno e fechado, por outro soube contornar intrigas e rivalidades, convencer mecenas e patronos sobre sua capacidade e inegável talento.


*Valdo Resende é escritor, mestre em artes visuais, dramaturgo e professor. Autor do romance “dois meninos – limbo”, do livro de contos “A sensitiva da Vila Mariana” e da coletânea de crônicas, contos e poesias “O vai e vem da Memória”.

Escreve cotidianamente no blog sobre temas diversos – pintura, escultura, música, teatro, literatura, quadrinhos e poesia.