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Testeira

Johanna Bonger, uma mulher na vida de Van Gogh

Dedicada e decidida, Johanna Bonger fez chegar até a nós a verdadeira face do grande pintor holandês

Valdo Resende* Publicado em 22/07/2023, às 09h00 - Atualizado em 22/12/2023, às 10h26

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Johanna Bonger (à esqu.) e Van Gogh (à dir.) - Domínio Público
Johanna Bonger (à esqu.) e Van Gogh (à dir.) - Domínio Público

Van Gogh não foi feliz no amor. Apaixonou-se pelo menos três vezes. Ursula, filha de uma dona de pensão onde o pintor se instalou em Londres foi a primeira. Quando ele encontrou coragem para se declarar, por carta, descobriu que a moça já estava noiva. O artista entrou em grande depressão.

A segunda, Kee Vos, uma prima jovem e viúva com uma filha de quatro anos também disse não. Tenaz, o rapaz insistiu por vários anos sem obter sucesso. A terceira, Clasina Maria Hoornik disse sim e foi descrita por biógrafos como pobre, suja, mal vestida e estava grávida quando se conheceram. Ele toma conta dela e após o parto, Clasina é descrita por outros, não por Van Gogh, como grosseira, ignorante, o rosto marcado pela varíola e uma vida pregressa discutível.

Posou para ele como modelo e após o fim do relacionamento, foi dela que Van Gogh disse: “...Se ela nunca experimentou o que era bom, como ela mesmo poderia ser boa?”

Ah, as mulheres! Busque os mais importantes compêndios de história da arte e procure neles, antes do século XX, a presença de mulheres pintoras, escultoras ou arquitetas. Nas artes mulheres são musas, deusas, heroínas, modelos, majas desnudas ou vestidas; são retratadas as rainhas, as donas de casa, as trabalhadoras de diferentes tarefas, as namoradas, amantes, mães, mas raramente, muito raramente são artistas.

Algumas mulheres que se destacam por uma ou outra atividade sofrem, para usar um termo contemporâneo, um certo apagamento. Dessas sabemos pouco, mesmo ocupando lugar de grande importância na vida e obra de grandes artistas. É o caso de Johanna Gesina Bonger, depois, Johanna van Gogh-Bonger, frequentemente referida como Jo.

Théo e Jo, pilares na vida de Van Gogh

Nascida em Amsterdam em 1862, ela teve a sorte de ter sido a quinta de uma família de 7 irmãos. Os homens mais velhos destinados ao trabalho, as irmãs destinadas a colaboração no trabalho doméstico, aos mais jovens costumava haver a possibilidade de estudar além do mínimo.

Assim foi com Johanna. Aprendeu inglês, aprofundando estudos na língua e em literatura. Foi até Londres onde trabalhou na biblioteca do Museu Britânico e, aos 22 anos, passou a lecionar. Aos 27 anos, em 1889 se casou com Théo van Gogh, um próspero e jovem negociante de artes atuando como marchand em Paris. Théo foi o irmão mais novo de Vincent Van Gogh.

Johanna van Gogh-Bonger, guardiã da obra e das cartas de Van Gogh |Crédito: Domínio Público

Vincent Van Gogh se tornou pintor, recebendo do irmão Théo telas, tintas e dinheiro para despesas durante todo o período em que exerceu a atividade. Iniciada na infância, a ligação entre Vincent e Théo merece estudo atento e profundo. De um lado, o irmão mais velho em busca de si, de um motivo ou algo que justificasse viver. Uma entrega absoluta aos próprios credos, gerando incompreensão e conflitos.

Do outro lado, o irmão mais novo, criança seguindo confiante aos rumos ditados pelo irmão. Ao crescer, Théo revela uma percepção apurada, mistura de intuição e conhecimento. Reconhece em Vincent um gênio e não mede esforços para fazer com que o irmão deixe fluir a arte que carrega em si. A carinhosa e profunda relação entre eles chegou até nós por intermédio de Johanna van Gogh-Bonger. 

Um ano e meio após o casamento com Théo, Jo retorna para a Holanda com um filhinho nos braços. Vincent Van Gogh havia se suicidado em 27 de julho de 1890. Em janeiro do ano seguinte, a saúde afetada pelo ocorrido com o irmão causa a morte de Théo. E assim começa a saga de Jo, tendo como ponto de partida o breve relacionamento com o marido e o cunhado. 

De volta a Holanda, Johanna van Gogh-Bonger tinha na bagagem o resultado de um inventário de valor duvidoso do qual consta, entre muitos outros itens, duzentos quadros de Van Gogh. “Livre-se deles!” foi o conselho ouvido. Ela não podia ficar mais na casa dos pais. Mudou-se para uma aldeia, Bussum, e lá registrou em seu diário, referindo-se ao marido: “Além de cuidar da criança, ele me deixou outra tarefa, a de zelar pela obra de Vincent – torná-la pública e fazer com que seja apreciada tanto quanto me for possível”. Sobre a lareira da casa Jo pendurou o quadro Os comedores de Batatas (1885), primeira grande obra do artista.

Os comedores de batata, 1885. Museu Van Gogh, Amsterdã. A vida de pessoas comuns e pobres retratadas pelo artista não agradou os colecionadores de então |Crédito: Domínio Público

Foi em Neunen, na Holanda, que Van Gogh resolveu pintar interiores em momentos íntimos, como a retratada em Os Comedores de Batata, ou a série com tecelões, motivos para nove quadros. Os personagens, gente simples, predominam nas telas do artista que registra cenas, paisagens, retratos.

Sobressaindo-se tons de cinza, a tela não teve a aceitação esperada. Não gostaram das cores, dos modelos “feios” com semblantes de preocupação. O artista, desolado, deixou mais uma vez o país natal. Em 1891 a tela estava de volta e caberia à Johanna van Gogh-Bonger dar-lhe um destino digno.

O trabalho de Johanna von Gogh-Bonger

Durante os primeiros meses de volta a Holanda, Johanna tratou de arrumar meios para garantir o próprio sustento recebendo pensionistas na imensa casa alugada, em Bussum. Iniciou intensas negociações, a maioria por carta, visando a divulgação da obra de Van Gogh, interrompida com a morte deste e do irmão.

No curto período em que viveu com o marido, a mulher aprendeu os mecanismos de comunicação para a tarefa e passou a negociar mostras, exposições, além de convidar e receber críticos e artistas interessados no pintor. Um trabalho lento e difícil se considerarmos as peculiaridades do período.

Distante 15 milhas de Amsterdam, onde estavam o porto e a estação de trens, cabia à jovem viúva organizar lotes de telas, embalá-las, o que a levou inclusive a montar uma oficina em casa para garantir a segurança das obras e despachá-las. Também era dela o trabalho de buscar as que eram devolvidas. Tudo negociado por carta!

As cartas de Van Gogh se constituíram em outro trabalho notável de Johanna. Vincent era quatro anos mais velho que Théo e a relação entre os dois irmãos começou na infância e se intensificou ao longo da vida de ambos. A partir de 1872 Vincent passa a escrever, regularmente, longas e detalhadas cartas ao irmão.

No total 652 cartas foram guardadas pela viúva de Théo que, primeiro, tratou de organizar e ordenar o material. Tarefa gigantesca não só pela quantidade de cartas, mas pelo fato de que algumas estavam sem data. Por outro lado, há muito mais cartas conservadas por Théo que outras, escritas por ele, endereçadas ao irmão. Volta e meia, levado por dificuldades financeiras ou pela doença, Vincent Van Gogh saia de onde estava deixando tudo, até mesmo as telas frutos de seu trabalho. Tintas, material, quadros, roupas, cartas, tudo deixado para trás.

Metódica e cuidadosa, Jo copiou as cartas a mão preservando assim as originais. Quando foram datilografadas, revisou meticulosamente o resultado. O primeiro volume contendo as cartas foi publicado na Holanda em 1914. Durante a Primeira Guerra Mundial Jo mudou-se para Nova York, onde começou a traduzir as cartas para o Inglês.

Desde então, publicações rodaram o mundo mostrando a face de um gênio, Vincent Van Gogh, que gostava de assinar Vincent. As cartas revelam um retrato absolutamente raro e único até então no universo das artes. Descrevem o cotidiano, detalham cada ideia para um novo quadro, o processo de criação, realizando e relatando as diversas etapas até Vincent dar a obra por finalizada.

Na juventude, após fracassar como comerciante de arte – três tios atuavam no setor – Vincent decidiu seguir carreira religiosa. Honesto demais até para os padrões religiosos, não conseguiu levar a termo sua vocação, os superiores reclamando ser ele rígido em demasia.

Depois, por um curto período vendeu livros, foi professor, e voltando ao trabalho religioso não resistiu aos conflitos que o fizeram desistir definitivamente. Durante toda a vida fez desenhos e a intimidade com a pintura levaram-no a seguir tal caminho, decisão que toma aos 27 anos.

Dono de personalidade forte e decidida, Vincent não se deu bem com escolas e regras acadêmicas. Sonhou em ter um trabalho em conjunto com outros pintores. A única experiência concreta foi com Paul Gauguin, resultando em final trágico, quando Vincent cortou a própria orelha após desavenças com o amigo pintor. O fato em si é obscuro. Talvez em uma tentativa dos primeiros biógrafos de minimizar os excessos da dupla. O que parece não haver dúvida foi por Vincent estar em um momento exasperado de alguém consciente de seu estado, sabendo caminhar em direção a loucura.

Passada cada uma das várias crises, o pintor era amoroso e afetuoso para com todos. A diferença brutal entre as personalidades de Gauguin e Vincent Van Gogh pode ser interpretada a partir das cartas de ambos. Gauguin, na miséria, havia vendido vários quadros e, talvez por isso, se considerasse acima do outro que, ao longo de toda a vida vendeu uma única tela. 

Nesta coluna já nos referimos aos Salões de Paris e à exorbitante quantidade de ofertas em quadros e outras obras de arte. Certamente Van Gogh não foi o único a não vender seus trabalhos, entre centenas e centenas de artistas participantes de tais eventos. Com certeza, foi desses mal vendedores o único a posteriormente tornar-se grande, um dos maiores entre seus pares.

Sem vender quadros, sempre sem dinheiro, Vincent contou com o apoio do irmão. Ajuda limitada, pois Théo era apenas um empregado de uma grande empresa. Em sua trajetória Vincent pintou paisagens, pessoas, por essas dedicando um esforço enorme em criar algo para além da fotografia, fato que o aproxima dos impressionistas e, simultaneamente, o afasta do grupo. Com frequência pinta interiores e, descobrindo as cores vibrantes do campo, cria suas obras mais populares onde o amarelo se sobrepõe. Obcecado pela natureza, busca pintar o sol, a noite e suas estrelas. Foi por isso colocado posteriormente por Peter Fry entre os pós-impressionistas e é, sem dúvida, um dos maiores influenciadores do Expressionismo.

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A vinha vermelha (Montmajour) Arles, 1888. Moscou, Museu Pushkin. Única tela de Van Gogh vendida em vida, durante exposição em Bruxelas, para Anna Boch |Crédito: Domínio Público

Em vida, Théo fez todo o trabalho necessário para o sucesso do irmão. Vincent mantinha-se firme em seus propósitos e não se deixou levar exceto pelas próprias convicções. Esteve além do seu tempo e os colecionadores e consumidores de então não perceberam o quanto aquele artista estava à frente dos seus contemporâneos. Criticavam, ironizavam, debochavam, ridicularizavam.

Sobre ele Théo escreveu à uma irmã: “Quanto ao sucesso... será admirado por alguns, mas não será entendido pela maioria do público”. Após a morte do irmão, também Théo escreveu para sua mãe: “mas agora, como acontece com tanta frequência, todo mundo está louvando seu talento”. Após o alvoroço e o choque causado pela morte inesperada não é raro que o indivíduo volte ao ostracismo. Ocorreria o mesmo com Vincent, ainda mais com a morte do irmão vindo à seguir. Daí a importância da continuidade do trabalho feito por Jo van Gogh-Bonger.

Jo e Vincent, uma relação afetuosa

“Livre-se deles”, foi o conselho que a jovem viúva não seguiu. E conhecemos a extraordinária personalidade do pintor na correspondência com o irmão; “livre-se delas!”, sugestão não seguida por Jo. Outras cartas, dirigidas ao também pintor Émile Bernard comprovam e, publicadas, reforçam a ideia do homem que foi Vincent, não havendo diferenças entre os temas abordados com o irmão ou com o colega.

Enquanto ordenava a correspondência deixada pelo cunhado, Jo realizou um intenso trabalho promovendo exposições dos trabalhos de Van Gogh na Holanda, Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos. Fez questão de primeiro divulgar o trabalho do artista, só depois deu a conhecer suas cartas. Desejava que o artista fosse admirado sobretudo pela pintura, seu imenso e maior legado.

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Amendoeiras em flor, 1890. Óleo sobre tela. Amsterdam, Van Gogh Museum. Presente de Van Gogh para o futuro afilhado |Crédito: Domínio Público 

O jovem casal Johanna e Théo mantiveram estreita e carinhosa relação com Vincent. Há cartas deste à cunhada, chamada por ele carinhosamente de maninha. A intensidade da relação levou o casal a convidar Vincent para padrinho do primeiro e único filho que recebeu o nome do tio: Vincent Willem van Gogh. Entusiasmado e feliz, Vincent pintou e dedicou o quadro “Amendoeiras em Flor” ao sobrinho, o primeiro e único presente. 

Após ficar viúva, Johanna dedicou 34 anos de trabalho na preservação e divulgação do trabalho de Vincent. Casou-se pela segunda vez, notabilizou-se como tradutora, foi membro do Partido Socialista. Faleceu em 1925. Não foi uma grande artista, dirão aqueles que também não são. Mas, o que seria da obra de Van Gogh, sem que conhecêssemos o que nos legou em suas cartas? Para Johanna, devemos, no mínimo, gratidão.


*Para aprofundamentos nas fontes primeiras, o escritor Valdo Resende indica: As cartas de Van Gogh foram publicadas no Brasil pela L&PM em dois volumes: “Cartas a Théo” e “Biografia de Vincent Van Gogh por sua cunhada”, esse segundo livro contém as Cartas de Théo a Vincent e as Cartas a Émile Bernard.