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Colunas / Valdo Resende / Serra da Capivara

Os mistérios da Serra da Capivara revelam um Brasil

Uma viagem por Pinturas rupestres, no Piauí, para conhecer o imenso legado dos primeiros habitantes da América do Sul

Valdo Resende* Publicado em 08/07/2023, às 09h00 - Atualizado em 22/12/2023, às 10h06

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A Serra da Capivara, no Piauí. No detalhe central o Museu da Natureza - Cris Buco
A Serra da Capivara, no Piauí. No detalhe central o Museu da Natureza - Cris Buco

Tome como destino São Raimundo Nonato, uma pequena e tranquila cidade do Piauí — que fica a quase 600 km de distância da capital Teresina. O município é sede da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), a instituição responsável pelas pesquisas pré-históricas e pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara. Prepare-se para dias de calor, temperatura média de 28°C, com boas caminhadas por um ambiente único: a Caatinga, na região semiárida do Nordeste do Brasil.

Há duas caatingas para se conhecer: uma é aquela presente na literatura de autores como Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz ou Jorge Amado. Sol inclemente, secas de longa duração, vida difícil, todavia com um ambiente belíssimo e uma vegetação variada e colorida.

Tudo é seco, com variações de cores quentes, tons terrosos. Significando “mata branca” para os povos originários, há outra caatinga logo após a primeira chuva: em pouquíssimo tempo o que era seco ganha outra vida e surgem flores de todos os matizes e formas. O verde toma conta da paisagem. É recomendável consultar o clima antes de fazer a viagem ao Piauí para saber qual delas será conhecida.

O surgimento do Parque Nacional da Serra da Capivara remonta aos anos de 1960 quando a arqueóloga Niède Guidon, trabalhando no Museu Paulista, em São Paulo, recebeu fotos enviadas pelo prefeito de São Raimundo Nonato. Na década seguinte começariam as pesquisas e desde então já se sabia que o local guardava imensa quantidade de pinturas rupestres.

Dados de 2018 informam haver acima de mil sítios com pinturas e gravuras rupestres pré-históricas. O Parque foi criado em 1979 e desde então tem provocado imensas reviravoltas no mundo científico. Os primeiros estudos e os processos de datação comprovaram haver grupos humanos 50.000 anos atrás.

Primeiras paisagens do Nordeste

Reserve bastante tempo caso queira conhecer todo o parque, pois são mais de 170 sítios arqueológicos preparados para visitação. A área é gigantesca:  o Parque ocupa 129.140 hectares e seu perímetro é de 214 km, em áreas de quatro municípios: São Raimundo, Coronel José Dias, João Costa e Brejo do Piauí.

No município sede da FUMDHAM, São Raimundo Nonato, fica o Museu do Homem Americano. Um bom início para os interessados em conhecer um Brasil muito antes de o Brasil vir a ser. Ponto alto da visita ao museu é a exposição da escavação arqueológica que comprovou a presença humana durante a pré-história na Serra da Capivara.

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A Pedra Furada, um monumento geológico do Parque /Crédito: Cris Buco

As visitas pelo parque são feitas com monitoração. Em dez circuitos distintos, vários com duas ou três trilhas possíveis, a sugestão é escolher baseando-se no tempo disponível para permanecer na região.

Os nomes são sugestivos e indicam a topografia do Parque: Circuito do Baixão das Mulheres, Circuito da Chapada, Circuito da Serra Branca, Circuito do Veredão... Imperdível é o Circuito do Boqueirão da Pedra Furada, o sítio com as datações mais antigas sobre a presença humana na região e que causou importantes mudanças sobre as teorias de povoamento das Américas.

Teorias anteriores, ditas migratórias, determinavam como certo que grupos humanos entraram na América pelo estreito de Bering há cerca de 12 mil anos e, de lá, teriam ocupado todo o continente.

Na base dessa pesquisa estão estudos feitos no Novo México (EUA) no sítio Clóvis, fato amplamente questionado e deitado por terra pelos processos oficiais de datação em achados posteriores. Em várias regiões da América do Sul há novos resultados e continuam em andamento pesquisas e estudos que visam responder a essa questão vital para a Arqueologia, a ciência que investiga nosso passado através de vestígios materiais deixados por nossos ancestrais. Desde quando o ser humano está por aqui?

A origem e presença do ser humano em solo americano é tema controverso, gera discussões e debates. Relatos fantasiosos estão presentes nas primeiras abordagens sobre a pré-história brasileira, descreve Gabriela Martin no livro “Pré-história do Nordeste do Brasil”. Por aqui teriam passado fenícios, gregos, vikings, um imbróglio atrelado à cronologia bíblica, o que implica em reduzir a idade do homem partindo de dados novelísticos.

Análises de estudiosos, como Niède Guidon, apontam para a “negação da identidade nacional em busca de uma origem mais nobre ligada às civilizações do Velho Mundo e aos mitos de cidades desaparecidas e tribos perdidas”. Só que veio a ciência! Novas revelações comprovadas em pesquisa e laboratório, sancionadas por cientistas de respeitadas universidades.

O sítio do Boqueirão da Pedra Furada

O mais famoso sítio da Serra da Capivara, o sítio do Boqueirão da Pedra Furada fica no município de Coronel José Dias, foi escavado durante dez anos (1978-1988). O trabalho de cientistas participantes estão reconhecidos internacionalmente em tese defendida por Fábio Parenti em 1993 (École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris).

Nesses trabalhos estão comprovadas as evidências da presença humana no Nordeste do Brasil há 48.000 anos, com datações que chegam perto dos 50.000 anos. A profundidade dos trabalhos permitiu identificar sequências de ocupações nas mais de 30 datações sequenciais. O mais evidente para o olhar do visitante comum são as diferentes fases das pinturas rupestres presentes no local.

O trabalho de Fábio Parenti, em tese orientada por Niède Guidon, comprovou a necessidade de revisão das teorias então vigentes sobre o povoamento da América. Niède, franco-brasileira nascida no interior de São Paulo, revela especial interesse nos motivos que a levaram para a região: as pinturas!

O sítio do Boqueirão Pedra Furada é um paredão que forma um abrigo natural, com 75 metros de altura e 70 de largura. As paredes estão cobertas de pinturas, mais de mil grafismos, que estudados junto às demais figuras em outros sítios da região revelam dois grandes períodos em que tais pinturas foram feitas. Sim! No mesmo paredão, pinturas realizadas em épocas diferentes, que exprimem estilos distintos.

O grupo mais antigo e maioria na Pedra Furada é denominado Tradição Nordeste; apresenta imagens que aparecem há 12.000 anos e desaparecem 6.000 anos depois. O segundo grupo é denominado Tradição Agreste, tendo surgido por volta de 10.000 anos e permanecido até cerca de 3.500 anos atrás. O visitante dispõe de uma passarela para melhor visualização e pode, inclusive, fazer uma visita noturna ao local.

Detalhe do Sítio do Boqueirão da Pedra Furada: diversidade de figuras /Crédito: Cris Buco

A gruta de Altamira, na Espanha, e a caverna de Lascaux, na França, estão entre os locais mais estudados e admirados quando se fala em pintura na pré-história com imagens registradas no Paleolítico Superior (cerca de 30.000 a.C.). As pinturas da Serra da Capivara estão, em sua maioria, dentro do período chamado Neolítico (por volta de 10.000 a.C.). Autores renomados como E. H. 

Gombrich e Arnold Hauser defendem funções para a pintura de cada período. As pinturas do paleolítico, feitas por caçadores, visavam poder sobre os animais, um processo mágico encantatório. Desenhar o animal é adquirir a posse sobre ele. Já no período Neolítico, o início da agricultura levaria a uma estabilização quando pinturas e desenhos simplificados facilitariam e levariam ao surgimento da escrita.

Altamira foi descoberta em 1868 e Lascaux, em 1940. Complexos onde constam várias outras cavernas preservados das ações do tempo e dos seres humanos por estarem escondidos. Para se ter uma ideia do que pode ocorrer com a presença humana foram percebidas alterações nas pinturas de Lascaux pelo excesso de gás carbônico expelido pelos visitantes.

Para preservar o local, os franceses construíram uma réplica da parte principal da gruta, finalizada em 1983. No Piauí, as pinturas do Parque Nacional da Serra da Capivara estão a céu aberto.  As milhares de manifestações gráficas carecem de muito estudo e, talvez, nunca se defina sua exata função, por quê foram pintadas, quais seus mistérios. Entendem os estudiosos que seriam manifestações do sistema de comunicação social daqueles grupos. Uma linguagem em desenvolvimento, posto que estão presentes figuras reconhecíveis e outras, não identificadas.

Boqueirão da Pedra Furada. Os dois animais centrais são um dos símbolos da Serra da Capivara /Crédito: Cris Buco

Patrimônio Cultural da Humanidade

Nas paredes dos sítios da Serra da Capivara estão presentes enorme diversidade de imagens. No Baixão da Vaca, por exemplo, há uma cena que remete a um parto e também, em outra imagem, um grupo de pessoas em torno de uma árvore configurando um ritual.

Em se tratando de figuras humanas, predominantes nos grafismos, há cenas de dança, de sexo, sendo que neste particular há precisão visual quanto a figuras masculinas, femininas e assexuadas.  No Boqueirão do Paraguaio há imensas figuras humanas estilizadas e decoradas por traçados geométricos. Os exemplos são muitos. Todavia, não são apenas pinturas que o Parque guarda.

Nas escavações arqueológicas do Piauí foram encontradas artefatos líticos, fogões, fragmentos de cerâmica e, entre outras, urnas funerárias. Além da riqueza arqueológica, na região estão concentradas mais de mil espécies vegetais, destacando-se a vegetação única da caatinga nordestina.

Na fauna registraram 208 espécies de pássaros e, entre outros,a presença da onça-pintada, maior predador da região. Por isso não é permitido andar só e sem o apoio de guias especializados. Além das dificuldades de caminhar de um sítio a outro, há a presença de animais soltos, livres em seu habitat.

A fauna e flora da região podem ser conhecidas de uma maneira muito especial. O Museu da Natureza, inaugurado em 2018, situado no município de Coronel José Dias. Uma grande exposição conta a história da natureza, da formação do local até aos momentos atuais.

Lá se pode ver fósseis marinhos e descobrir que a caatinga já foi mar, e que um movimento tectônico elevou a serra, levando o mar para longe. Os animais, grandes e pequenos, os tipos de mata, e as mudanças ocorridas ao longo de milênios formando o Nordeste. A importância desse legado levou a que a UNESCO inscrevesse o Parque Nacional da Serra da Capivara na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade.

Vista noturna da passarela do Boqueirão da Pedra Furada /Crédito: Cris Buco.

Uma viagem pela Serra da Capivara não deve terminar sem um passeio noturno. Pelo parque e suas atrações ou pelas imediações de São Raimundo Nonato e demais cidades. O céu, limpo e sem nuvens, é deslumbrante e a temperatura convidativa.

Se há lendas sobre sons vindos não se sabe de onde na Toca do Inferno, se há mistérios não revelados nas pinturas rupestres, as noites estreladas oferecem um espetáculo único, convite para quem sonha com extraterrestres e OVNIs. Lendas e espaço sideral à parte, o melhor da viagem está ali no Parque mesmo, com sua riqueza arqueológica que carece de preservação e cuidados. Daí a visitação permitida apenas em sítios preparados garantindo segurança e conforto ao visitante.

Equipado para receber o turista, a FUMDHAM dotou o parque de sinalização, equipou sítios com postos de atendimento, passarelas e incluiu acessibilidade a pessoas com deficiência. Desde seu surgimento, o local já passou por fases sem recursos federais e sofreu as consequências da falta de estrutura.

Caça, desmatamento, incêndios provocando graves perdas ao patrimônio cultural. Por enquanto, o Brasil continua com a maior densidade de sítios arqueológicos do planeta com imagens a céu aberto. Certamente o clima seco e a baixa densidade populacional contribuíram na preservação das pinturas locais. Os desgastes temporais e a ação humana podem comprometer toda essa herança, o que leva à principal função da FUMDHAM: garantir a preservação de toda a região, do que resta do primeiro Brasil, compartilhando tal responsabilidade com todos os setores sociais e toda a população.


*Valdo Resende é escritor e mestre em artes, realizou a primeira viagem ao Parque Nacional da Serra da Capivara em 1993. Cris Buco, que cedeu as fotos para esta matéria, fez um longo trabalho na Serra da Capivara, tornando-se doutora com trabalho realizado sobre as pinturas rupestres. Atualmente, está no IPHAN em Fortaleza, CE.