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Desventuras / Holocausto

Música, arte e guetos: Entenda as formas de resistência dos judeus no Holocausto

Perseguidos e executados pelos nazistas durante o Holocausto, os judeus combateram o terror vivido de diferentes formas

Silvia Lerner* Publicado em 03/03/2024, às 10h00

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Fotografia de 1944 retratando a “seleção” de judeus húngaros na rampa de Auschwitz-II-Birkenau - Domínio Público via Wikimedia Commons
Fotografia de 1944 retratando a “seleção” de judeus húngaros na rampa de Auschwitz-II-Birkenau - Domínio Público via Wikimedia Commons

Escrever sobre o Holocausto é escrever sobre intolerância, preconceito e racismo. São os quesitos que construíram a ideologia nazista de 1933 a 1945, quando Adolf Hitler assumiu o governo da Alemanha. E, ao assumi-lo, ele e seus assessores iniciaram uma política baseada na propaganda, no terror e nas leis.

A cultura perdeu fundamentos ao se deparar com os novos conceitos da ideologia nazista em relação ao respeito com o ser humano, à ética, medicina, biologia, genética, arte, infância e identidade de cada pessoa.

No período, tudo foi idealizado e realizado por políticos, cientistas, arquitetos, engenheiros, médicos, biólogos, juristas, com apoio da população da Alemanha e de países da Europa, dominados pelo regime nazista.

Ao estourar a Segunda Guerra Mundial com a invasão da Polônia, teve início o processo concentracionário dos judeus, com a criação dos guetos, campos de concentração, de trânsito, de extermínio e um único campo cultural.

Cada um com suas propostas e configuração. Tendo a intolerância como categoria principal contra o “diferente”, abriu-se um espaço para a sucessão de atos ilegais como ódio, racismo, perseguição, assassinato, impunidade e genocídio.

Antigo campo de concentração de Auschwitz / Crédito: Getty Images

No primeiro estágio desse processo, os guetos demoraram muito para que a resistência armada se organizasse. Diante do contexto histórico, no qual o inimigo possuía armamentos em enorme quantidade, conhecimento técnico na área bélica e militar, meios de violência a seu dispor, alimentação adequada, vestuário próprio para todas as estações do ano, tudo em quantidade e qualidade superiores aos dos judeus, devemos entender por que a resistência demorou tanto a ocorrer.

E por que não se acreditava no que ainda estava por vir. Porém, houve resistência, de diversas formas: ora psicológica e cultural, ora organizada, visíveis ou clandestinas, ora sob a forma de lutas armadas ou atitudes individuais de protestos ou grupais.

Resistência psicológica

A organização de atividades culturais, como apresentações teatrais, produção de músicas, poemas, concertos e desenhos, publicação de jornais ou até mesmo a formação de escolas clandestinas para as crianças, são consideradas resistência psicológica, assim como a troca de receitas culinárias no campo de Theresienstadt, publicadas no livro 'Em Memória da Cozinha: Um Legado das Mulheres de Terezin', de Carol Eileen Krawetz (cujo pseudônimo é Cara De Silva), que mostra a tentativa das prisioneiras em manter um pouco da dignidade, apesar da vida indigna que lhes estava sendo imposta.

+ Horror cultural: Os campos de concentração através de desenhos infantis

Já os livros 'A Música e os Músicos em Tempos de Intolerância: O Holocausto' e 'Arte em Tempos de intolerância: Theresienstadt' nos dão a verdadeira dimensão do que foi a resistência psicológica e como agiu sobre os prisioneiros que a praticavam e sobre os que a assistiam.

Nesse contexto, músicos profissionais e amadores, de diferentes idades, origens e nacionalidades, tocavam e faziam música por obrigação ou espontaneamente e, com muita frequência, colocando em risco sua vida. Diziam que, dessa forma, nunca estavam sozinhos, pois sempre havia “eu e minha voz... eu e um som”.

Produziam-se músicas em iídiche (o dialeto criado no século 11 com caracteres hebraicos, usados pelos judeus da Europa Central e Oriental), em alemão e poucas vezes em polonês, além de obras populares ou clássicas, como 'Requiem de Verdi' ou a opereta 'Brundibar', apresentadas pelos judeus no campo de Theresienstadt.

Houve uma vasta produção de músicas e arte nos espaços concentracionários.
A orquestra dos prisioneiros no campo de concentração de Buchenwald/ Crédito: United States Holocaust Memorial Museum

Houve também uma vasta produção de músicas em diferentes lugares dominados pelo nazismo, principalmente se levarmos em conta que houve cerca de 10 mil espaços concentracionários de diversos tipos.

No livro 'Songs of the Ghettos and Concentration Camps', uma compilação feita pelo sobrevivente Schmerke Kaczerginsky, que conseguiu reunir 250 canções em iídiche, com melodia, e outras cem que nunca foram musicadas, mas escritas e, depois, editadas pela Cico Bicher Farlag, de Nova York, em 1948. Schmerke faleceu em um acidente aéreo quando retornava de uma conferência em Mendoza, Argentina, em 1954.

“Como pôde um período na História tão incompreensivelmente diabólico e desumano possibilitar o surgimento de um número tão grande de músicas incríveis?”, indagou o autor americano Jerry Silverman. “As canções falam e cantam por si mesmas. E cada uma carrega a sua própria mensagem. O que havia a ser cantado? A vida, à beira da morte, a morte sem vida, a vida sem sentido, sentimento, injustiça, esperança... Amor, amanhã... Quem compunha essas canções? Compositores leigos e profissionais, poetas do gueto e resistentes. Quem as cantava? Os que viveram e morreram nesses anos terríveis, respondendo a uma necessidade básica e urgente de ter suas vozes ouvidas. Quem as ouvia? Não havia ouvintes. Todos eram cantores.”

Ao apresentar a música produzida pelos judeus durante o Holocausto, é necessário fazer uma reflexão sobre representações artísticas produzidas sob os efeitos traumáticos. Que relação teriam essas produções com o trauma vivido no momento em que eram produzidas?

Esse tipo de resistência, sem pegar em armas, por meio das artes, elaborava simbolicamente as suas vivências de modo a amenizar o sofrimento, a saudade, a dúvida de onde estarão seus familiares, pais, filhos, esposa, marido, amigos, vizinhos... , e a vontade de continuar vivendo com dignidade, tendo efeito positivo sobre quem as produzia e sobre quem as via, assistia e ouvia. O que se questiona é como foi possível produzir música e arte nesses lugares.

Seja pela via das canções, seja pela via da poesia ou de desenhos, estas representações artísticas contribuíram para sublimar a saudade, a dor, a incerteza e a desesperança com o dia seguinte.

Resistência armada

Já a resistência armada consistia em combater ou reduzir os efeitos materiais, psicológicos ou morais a que estavam expostos durante o domínio nazista. Em cerca de mil guetos da Polônia, Lituânia, Bielorrússia e Ucrânia formaram-se organizações clandestinas com o propósito de criar levantes armados ou conseguir fugir para se unir aos partisans (judeus que se refugiaram nas florestas e organizaram atentados contra nazistas) — poucos, porém bem-sucedidos.

Partisans da Lituânia, em 1950 / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Em cerca de mil guetos, formaram-se organizações de levantes armados contra nazistas.

+ Comunidade marginalizada na Finlândia tinha boa e desconhecida qualidade de vida

Todos estes movimentos representaram a ruptura da submissão, silêncio e humilhação, já que os resistentes sabiam que as possibilidades de sobrevivência eram inexistentes, no entanto, lutaram para mostrar ao inimigo que não se entregariam sem defesa, mas morreriam com dignidade.

A maioria foi planejada a partir de 1942, quando o processo de extermínio sistemático já estava sendo realizado e milhares de judeus deportados para os campos com este fim. As lideranças eram formadas por jovens que encaravam a missão de resistir como a melhor forma de mostrar que "vamos morrer, porém com dignidade".

O Gueto de Varsóvia foi criado em 16 de outubro de 1940. Em 1941, sua população chegou a 450 mil pessoas em um espaço onde moravam 38 mil. Iniciava assim a vida no maior gueto judaico estabelecido pela Alemanha nazista na Polônia durante o Holocausto. E onde ocorreu a maior luta armada no período: o Levante do Gueto de Varsóvia, com início em 19 de abril de 1943 e término em 16 de maio, com duração de 28 dias.

+ Resistência contra a ocupação nazista: Como foi o Levante do Gueto de Varsóvia

Oficiais alemães durante o Levante do Gueto de Varsóvia / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Houve também resistência organizada pelos judeus em seis outros guetos: Byalistock, Czestochowa, Kovno, Krakow, Minsk e Vilna; em três campos de extermínio: Auschwitz, Sobibor e Treblinka; e em 18 campos de trabalho, além da resistência nas florestas, como dos Irmãos Bielski. Todas as derrotas frente ao poder nazista devem ser consideradas como um mérito e uma vitória, levando-se em conta o poderio do inimigo. E em especial o Levante do Gueto de Varsóvia, que causou uma grande e inesperada surpresa aos alemães que esperavam liquidar o levante “sem trabalho”, como já havia ocorrido anteriormente em outros guetos.

De acordo com o sobrevivente escritor Elie Wiesel, esses atos “serviram para deixar um testemunho do indizível, do desumano e do inacreditável. Ainda que indizível, a memória da Shoá (Holocausto em hebraico) é importante e imprescindível pela necessidade de se perpetuar essa história para as gerações futuras, pois só quem a conhece será capaz de entendê-la para não a repetir”.

O tema continua muito atual porque a intolerância ainda persiste no século 21. Daí a importância de se trabalhar a memória, por ser uma herança que perpetua a História, por se manter no duplo trilho do passado e do presente, levando em conta que este período histórico se tornou essencial para a formação de uma identidade judaica, construída a partir da intolerância, do preconceito e da exclusão.

Conhecer o passado é um ato de reflexão sobre o futuro. Um povo não pode ser admoestado para lembrar, mas deve ser responsabilizado por esquecer. O esquecimento é o avesso da memória, por isso o passado deve ser ativamente transmitido, sem ruptura, às gerações presentes.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a memória, por conservar importantes informações, capacita o homem a atualizar impressões ou informações passadas, fazendo com que a história se eternize na consciência humana.


*Silvia Rosa Nossek Lerner é autora dos livros 'Liberdade de Escolher como Morrer: Resistência Armada de Judeus no Holocausto' (IMPRIMATUR), 'Arte em Tempos de Intolerância: Theresienstadt' (Rio Books), 'A Música e os Músicos em Tempos de Intolerância: O Holocausto' (Rio Books)