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Matérias / Arte

'Saturno devorando um filho': A história por trás da sombria obra de Goya

Descoberto nas paredes da casa de Francisco de Goya na Espanha, 'Saturno devorando um filho' é uma das obras de arte mais perturbadoras já feitas; conheça!

'Saturno devorando um filho' e retrato do pintor espanhol Francisco de Goya - Domínio Público via Wikimedia Commons
'Saturno devorando um filho' e retrato do pintor espanhol Francisco de Goya - Domínio Público via Wikimedia Commons

Em 16 de abril de 1828, o renomado artista espanhol Francisco de Goya faleceu e deixou, pintados diretamente nas paredes de sua casa, uma série de 14 murais perturbadores que ficariam conhecidos como Pinturas Negras.

Entre eles, um que se destacou especialmente seria chamada de 'Saturno devorando um filho' — o nome já explicando a razão para ser conhecida como sombria e inquietante.

Na 'Saturno devorando um filho', vê-se a grande figura de um homem idoso devorando um corpo humano, este já sem a cabeça e um braço. Criada em uma época terrivelmente sombria da vida de Goya, acometido de uma profunda depressão e paranoia, a pintura é considerada até hoje uma das mais perturbadoras já criadas.

Porém, essa obra em si possui uma série de camadas e interpretações, que intrigam pesquisadores de arte até hoje. Visto isso, confira a seguir a história por trás de 'Saturno devorando um filho', de Goya:

'Saturno devorando um filho', de Francisco de Goya / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Francisco de Goya

Antes de mais nada, é importante conhecer a história de Francisco José de Goya y Lucientes. Considerado até hoje o mais importante artista espanhol do fim do século 18 e começo do 19, ele criou pinturas, desenhos e gravuras que refletiam várias das transformações históricas vividas pela Espanha de sua época, tendo sido uma grande influência para pintores posteriores.

Nascido em 30 de março de 1746 em Fuendetodos, na Espanha, Goya estudou junto de outros pintores espanhóis famosos durante sua juventude, tendo rapidamente se estabelecido como um dos mais conceituados de seu tempo.

Com cerca de 40 anos, em 1786, tornou-se pintor da corte real, na época produzindo obras em estilo romântico e rococó, retratando a vida na corte de maneira geral.

Retrato de Francisco de Goya, por Vicente López Portaña / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Suas primeiras obras mal lembram o trabalho pelo qual ele mais chocou o mundo, geralmente alegres e despreocupadas. Porém, depois que uma doença o deixou quase surdo em 1793, seus trabalhos começaram a ser um pouco mais sombrios.

Após a invasão francesa, liderados por Napoleão, na Espanha em 1807, pôde-se perceber que seu estilo tornou-se ainda mais sombrio, certamente devido ao trauma do conflito — sendo nesta época que surgiu a série 'Os Desastres da Guerra', além de Goya ter começado a explorar temas como manicômios, bruxas e a corrupção religiosa em suas obras.

'Escapam entre as chamas', da série 'Os Desastres da Guerra', de Goya / Crédito: Foto por Jl FilpoC pelo Wikimedia Commons

Vale mencionar também que foi ainda no começo do século 19 que o artista começou a sofrer com alucinações e paranoia, com sua saúde mental chegando ao seu pior estado por volta de 1819, mesma época em que comprou a Quinta del Sordo, sua casa de campo próxima a Madrid.

E foi nas paredes dessa propriedade que Goya, acometido de profunda depressão e possivelmente perdendo sua sanidade, criou as 'Pinturas Negras'.

Descoberta

Antes de morrer, Goya abandonou sua residência e passou seus últimos anos de vida em Bordeaux, na França, onde morreu em 1828, aos 82 anos. Já a Quinta del Sordo passou por vários donos, até que em 1873 o banqueiro francês Frédéric Émile d'Erlanger a comprou, e sentiu que havia algum valor nos 14 murais que decoravam as paredes da propriedade; por isso, decidiu preservá-los.

Ele então convocou o principal restaurador de arte do Museu do Prado, Salvador Martínez Cubells, que removeu os murais e os transferiu para telas — o que, infelizmente, danificou parcialmente as obras originais. De qualquer forma, as pinturas ficaram mais acessíveis e fáceis de transportar, o que permitiu que mais pessoas as vissem.

Antiga gravura representando a Quinta del Sordo / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Como já mencionado, os murais são ainda hoje considerados extremamente sombrios. E sua recepção na época também não foi muito positiva: alguns críticos chamaram 'Saturno devorando um filho' — que, na verdade, nunca foi nomeada por Goya — de "nojenta", "sem muita arte", e até insultaram o artista dizendo que sua imaginação era "um inferno hediondo, uma região repugnante, disforme como o caos", segundo o Museu do Prado.

A lenda de Saturno

Como mencionado anteriormente, essa sombria obra de Goya — bem como as outras que compõem as Pinturas Negras — não foi nomeada de fato pelo artista, que provavelmente sequer imaginava que elas, nas paredes de sua casa, seriam conhecidas pelo público. Esse nome se deve basicamente à semelhança com a pintura 'Saturno', de Peter Paul Rubens, que representa uma emblemática passagem nas lendas gregas antigas.

Como já descrito, a obra apresenta uma figura humana gigante e aparentemente idosa, com olhos enlouquecidos, devorando outra figura humana nua, o que é basicamente também descreve a pintura de Rubens. Esta, por sua vez, é uma representação do titã Cronos (chamado de Saturno pelos romanos), pai de alguns dos mais importantes deuses da mitologia grega.

Recorte de 'Saturno', de Peter Paul Rubens / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Segundo os mitos, conforme repercutido pelo All That's Interesting, Cronos foi pai de Héstia (deusa do lar e da família), Deméter (deusa da colheita e da agricultura), Hera (deusa do casamento e da maternidade), Hades (deus do mundo inferior e dos mortos), Poseidon (deus dos mares e das tempestades) e, por fim, Zeus (deus dos céus e dos demais deuses).

No entanto, havia uma profecia de que um de seus filhos seria o responsável por sua queda, visto que ele era o governante dentre todos os titãs. Por isso, para evitar que isso acontecesse, ele devorava todos os seus filhos recém-nascidos; mas sua esposa, Reia, desesperada para salvar um deles, escondeu o sexto filho, Zeus, e deu a Cronos uma grande pedra no lugar — e quando crescido, Zeus cumpriria a profecia.

Outras interpretações

Apesar das semelhanças, e mesmo que o nome da pintura já tenha se popularizado como uma referência ao mito grego, nem todos acreditam nessa interpretação para a obra.

Um elemento que leva a essa descrença, por exemplo, é que o corpo devorado visivelmente não pertence a um recém-nascido, mas sim a uma mulher adulta; além de que os mitos diziam que os filhos eram devorados inteiros, e não despedaçados.

Outro fator é que muitos acreditam que originalmente, antes de a pintura ser danificada quando foi removida das paredes da Quinta del Sordo, a figura de "Saturno" teria sido representada com o pênis ereto, o que pode ter desaparecido com a deterioração natural ou mesmo coberto propositalmente. 

Por isso, conforme descreve John J. Ciofalo no livro 'Os Autorretratos de Francisco Goya' (em tradução livre), alguns historiadores de arte argumentam que a pintura seja, na verdade, uma representação da violência sexual masculina.

A sensação avassaladora da imagem é de luxúria violenta e insaciável, sublinhada, para dizer o mínimo, pelo pênis lívido e enormemente ingurgitado entre as pernas… A fúria masculina total nunca antes ou depois foi capturada de forma tão vívida", escreve o autor.
Recorte da obra 'Judite e Holofernes', uma das 'Pinturas Negras' de Goya / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Já outros historiadores de arte acreditam que 'Saturno devorando um filho' seja uma expressão do antissemitismo, visto que não eram incomuns na arte europeia da época a representação de homens judeus se alimentando de crianças.

De qualquer forma, as verdadeiras intenções de Goya com a obra — e as demais Pinturas Negras — são, para sempre, um mistério que cabe à interpretação de cada espectador.

Certamente afetado por traumas de uma longa vida presenciando conflitos, pela surdez e pela deterioração mental, Goya criou nas Pinturas Negras o retrato de um mal tão perturbador que, séculos depois, segue perturbando qualquer um que os observe. As próprias palavras de Goya na série 'Os Caprichos' podem falar mais sobre o que originou a sombria pintura que qualquer análise:

Quando abandonada pela Razão, a Imaginação produz monstros impossíveis".