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Matérias / Van Meegeren

Van Meegeren, o falsificador de arte que enganou até nazistas

Desde que pinturas passaram a valer milhões, é preciso tomar muito cuidado para não confundir um Picasso com um picareta

Sérgio Miranda Publicado em 09/06/2024, às 11h28

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O falsificador Henricus Anthonius van Meegeren - Nationaal Archief
O falsificador Henricus Anthonius van Meegeren - Nationaal Archief

Henricus Anthonius van Meegeren nasceu em Deventer, na Holanda, em 10 de outubro de 1899. Contra a vontade do pai, que desejava fazer do filho um arquiteto, ele decidiu se dedicar à pintura. Aos 14 anos, ganhou uma medalha de ouro em um concurso de desenho. Em pouco tempo, passou a ensinar como professor assistente em cursos de Arte. 

Aos 18 anos, apresentou sua primeira exposição de pinturas. Em 1921, ficou três meses na Itália estudando os mestres renascentistas e, no ano seguinte, realizou uma exposição de suas telas sobre temas bíblicos na cidade holandesa de Haia – todas as obras foram vendidas.

Em 1927, alcançou uma boa avaliação em uma casa de leilões com sua tela O Cervo. Mas, mesmo dotado de indiscutível talento, Van Meegeren esbarrou nos críticos de arte. Seu estilo, na visão deles, era muito antiquado, incompatível com os novos rumos da pintura. Acabou marginalizado. 

Em setembro de 1937, entretanto, um quadro pintado por Van Meegeren atraiu uma multidão ao Museu Boymans de Roterdã, na Holanda. As pessoas queriam ver Cristo e os Discípulos em Emaús.

Cristo e os Discípulos em Emaús - Domínio Público

A obra era tecnicamente perfeita, mas, em vez de ser assinada pelo autor, trazia o nome de Jan Vermeer, genial pintor holandês que viveu entre 1632 e 1675. Sem conseguir ser reconhecido como um grande nome da pintura, Van Meegeren tinha resolvido pegar outro grande nome emprestado. A farsa funcionou perfeitamente. O museu apresentou o quadro ao público como um trabalho inédito de Vermeer

O festejado crítico Abraham Bredius, especialista nesse pintor, havia sido chamado para dar um parecer sobre a tela. O “papa”, como era conhecido por sua influência no mundo da pintura, publicou sua opinião na revista Burlington:

É um momento maravilhoso na vida de um amante da arte quando se encontra confrontado com uma pintura desconhecida de um grande mestre, intocada, na lona original, e sem nenhuma restauração, exatamente como deixou o estúdio do pintor! Temos aqui – sou inclinado a dizer – a obra-prima de Jan Vermeer”.

A declaração de Abraham Bredius bastou para confirmar a autenticidade da tela. A Sociedade Rembrandt acabou adquirindo a pintura, para em seguida doá-la ao próprio Museu Boymans. Pagou o equivalente hoje em torno de 2 milhões de libras (cerca de 12 milhões de reais) ao agente que Van Meegeren tinha encarregado de vender o quadro.

A capacidade de imitar com perfeição o estilo de Vermeer acabou fazendo com que Van Meegeren se envolvesse com gente meio barra-pesada. Em 1943, em plena ocupação da Holanda pelos nazistas, um alto oficial alemão pagou 4 milhões de libras em valores de hoje (mais de 20 milhões de reais) por Cristo e a Adúltera.

A tela, mais uma falsificação de Van Meegeren atribuída a Vermeer, foi comprada pelo marechal Hermann Goering, um dos preferidos de Adolf Hitler. Depois de chamar seu secretário e determinar que o quadro fosse enviado à sua vila em Berchtesgaden, no sul da Alemanha, o satisfeitíssimo Goering teria dito: “Enfim, conquistei a Holanda”. 

Em maio de 1945, após a rendição dos alemães e o fim da Segunda Guerra na Europa, os aliados encontraram as 1200 obras de arte da coleção particular de Goering – a maioria delas tinha sido adquirida em pilhagens feitas ao longo do conflito.

Lá descobriram Cristo e a Adúltera, e o processo de investigação sobre a pintura levou à prisão de Van Meegeren, que havia se tornado um próspero colecionador de arte.

Interrogado, o falsificador alegou que sua fortuna se originava da venda de alguns quadros de Vermeer adquiridos de famílias italianas. Não convenceu. A justiça holandesa decidiu acusá-lo de colaborar com o nazismo durante a ocupação de seu país – crime para o qual era prevista a pena de morte. 

Duas semanas depois de ter sido detido, Van Meegeren defendeu-se da acusação de colaboracionista dizendo que ele próprio tinha pintado Cristo e a Adúltera. Assim, reivindicava para si o status de herói nacional, pois havia ludibriado o poderoso Goering.

Para fundamentar seus argumentos, confessou ter pintado mais cinco Vermeers falsos, além de quadros atribuídos a outros artistas, colocados no mercado de arte a partir de 1937. O mais célebre desses trabalhos era justamente Cristo e seus Discípulos em Emaús, orgulho do Museu Boymans.

Originalidade

Van Meegeren nunca copiou nenhuma obra de Vermeer. A única coisa que ele falsificava era a assinatura do mestre holandês. Para parecerem autênticos, os trabalhos eram feitos sobre telas de pintores desconhecidos do século 17 – com uma pedra de polir, a pintura original era cuidadosamente removida.

Além disso, assim como Vermeer, Van Meegeren construiu pincéis com pelos de texugo e criou suas tintas com misturas moídas a mão. Para dar o efeito de rachaduras na pintura, usava resina. Por fim, jogava pó de tinta na pintura, simulando envelhecimento.

No tribunal, Van Meegeren disse que tinha resolvido produzir falsos Vermeers para se vingar dos críticos de arte. No fim dos anos 1920, ele escrevia artigos e ilustrava capas para a De Kemphaan, revista fundada em 1928 para se opor ao vanguardismo e valorizar a pintura tradicional.

Mas, diante do sucesso de movimentos como o dadaísmo, que proclamavam a morte da arte clássica, a publicação fechou suas portas após dois anos de existência. Indignado, Van Meegeren se mudou, em 1932, para Roquebrune, no sul da França. Ali, colocou sua habilidade a serviço da falsificação. 

Como uma espécie de exercício, produziu primeiramente quatro pinturas – não vendidas – em estilo do século 17, duas delas à moda de Vermeer: Tocador de Guitarra e Mulher em Leitura de Música.

Após essa primeira experiência, ganhou confiança suficiente e pintou, em 1936, o Cristo e os Discípulos em Emaús, considerado o mais perfeito de seus trabalhos. Depois que o quadro foi aceito unanimemente como um Vermeer autêntico, Van Meegeren estava decidido a ir a público assumir a farsa.

Assim, demonstraria que a crítica de arte, tolerante com os vanguardistas, era ignorante e incapaz de julgar o bom e o ruim. Mas, quando viu que poderia enriquecer com as falsificações, desistiu da ideia original.

O tribunal decidiu investigar a versão de Van Meegeren. Na vila em que ele vivia, as autoridades acharam pedaços da mesma madeira usada no suporte da tela exposta no Museu Boymans. Foi o suficiente para que a corte o autorizasse a demonstrar o que estava dizendo.

Entre novembro e dezembro de 1945, o réu foi colocado em uma casa alugada pelo governo e observado 24 horas por dia por seis testemunhas. Com os materiais e as técnicas que havia usado para as outras pinturas, Van Meegeren pintou – confiando somente em sua própria imaginação – uma tela que chamou, ironicamente, de Jesus entre os Doutores

Jesus entre os Doutores - Nationaal Archief

Durante os dois anos seguintes, o julgamento ganhou pitadas de sensacionalismo. Várias das obras de Van Meegeren eram mostradas na corte durante as audiências. O pintor se mostrou desapontado por não receber reconhecimento de artistas e críticos quando assinava com seu próprio nome, embora fosse capaz de fazer uma tela valiosíssima no estilo do século 17.

Ao fim do julgamento, a acusação de colaboracionista havia sido retirada e Van Meegeren virou uma espécie de herói nacional. Pelo crime de falsificação, entretanto, foi condenado a um ano de prisão. Com 58 anos de idade e a saúde abalada pelo alcoolismo, Van Meegeren foi hospitalizado e morreu um mês mais tarde, de ataque cardíaco. Não chegou a cumprir sequer um dia da sentença. 

O caso de Van Meegeren evidenciou um dilema que dura até hoje. O que vale mais: a obra em si ou quem a teria feito? Não deveríamos avaliar uma pintura por seus componentes internos, como pinceladas, perspectiva e cores? Cada vez que se descobre uma obra falsa que era tida como verdadeira, essa questão ressurge. E, embora exista tecnologia avançada para evitar fraudes, os falsificadores continuam atuando. 

De algumas décadas para cá, eles chegaram a um ponto em que fica difícil, mesmo para um bom especialista, perceber a diferença entre uma obra autêntica e uma falsa”, afirmou o pesquisador e historiador Patrick Laycock, do Laboratório de Arte de Bruxelas. Ele diz que estamos na era das “falsificações científicas”: os pilantras acompanham o desenvolvimento dos métodos de investigação e desenvolvem técnicas para tentar burlar os novos exames à medida que eles surgem.