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Colunas / Valdo Resende / Maria Bethânia

Exposição mostra que Maria Bethânia vai muito além da venda de discos

Em São Paulo, exposição apresenta o universo das artes por onde transita uma das maiores intérpretes da música brasileira: Maria Bethânia

Valdo Resende* Publicado em 25/05/2024, às 09h00

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Ocupação Maria Bethânia - André Seiti/Itaú Cultural
Ocupação Maria Bethânia - André Seiti/Itaú Cultural

Os adjetivos sobre Maria Bethânia Viana Teles Veloso fluem com facilidade desde 1965, quando ela chegou ao Rio de Janeiro. Uma menina vinda de Salvador, onde já atuava cantando e participando de montagens teatrais seria a substituta da cantora Nara Leão no show “Opinião”. Zé Keti e João do Vale estavam no elenco da estreia, em dezembro de 1964. Sob a direção de Augusto Boal, o “Opinião” foi um dos marcos iniciais contra a ditadura militar pela qual passava o país. Bethânia entrava em grande estilo no imaginário popular com Carcará, um dos temas do Opinião que virou sucesso de rádio.

O encontro de Bethânia com Boal e o Teatro de Arena rendeu outros trabalhos, como “Tempo de Guerra” (1965), e “Arena Canta Bahia” (1965). Neste, Bethânia encabeça o elenco onde estiveram presentes Caetano Veloso, Gal Costa (nesse momento ainda Maria da Graça), Tom Zé, Gilberto Gil e Piti. Boal aprofundava seus estudos sobre o “Teatro do Oprimido” e utilizava na elaboração dos espetáculos o “Sistema Coringa”, criado por ele com o objetivo de fomentar uma postura crítica não só dos atores e artistas, como também do público.

As parcerias com profissionais de teatro estão presentes em toda a carreira da cantora: Bibi Ferreira, Naum Alves de Souza, Ulysses Cruz dirigiram shows memoráveis. Todavia, marco incontestável na trajetória de Bethânia é Fauzi Arap, o diretor de “Rosa dos Ventos” (1971) e “A Cena Muda” (1974), entre outros. Mais recente, entrou na carreira de Bethânia a multimídia Bia Lessa que, além de dirigir shows como “Brasileirinho”, é autora do livro “Então, Maria Bethânia” e diretora da “Ocupação Maria Bethânia”, em cartaz no Instituto Cultural Itaú-ICI, em São Paulo.

Ocupação Maria Bethânia - Foto André Seiti/Itaú Cultural

Visuais sofisticados

A estreia de Maria Bethânia no Rio de Janeiro em 1965 pode ser classificada visualmente como ‘franciscana’. Sem cenários, figurinos absolutamente simples irão contrastar futuramente com sofisticados visuais dos shows da cantora, valorizados pela ação de grandes profissionais. Há que se destacar na carreira da artista o trabalho de Flávio Império (“Rosa dos Ventos”, “A Cena Muda”) e Gringo Cardia (“Maria Bethânia e Omara Portuondo”, e “Brasileirinho”), entre outros. Esses, além da cenografia, criaram capas e encartes para os discos, ilustrações para os shows e diferentes figurinos que a cantora usou em cena. Junto aos diretores teatrais, criaram com Bethânia novas formas de se fazer um show musical no país. Detalhe fundamental, somado ao repertório, todo o visual gira em função do que ela quer expressar.

Maria Bethânia coloca no trabalho a interpretação como elemento predominante. E para eficácia de seus objetivos, para cada momento cuida dos detalhes cercando-se de profissionais de ponta. Um exemplo é o CD “Pirata”, criação gráfica de Gringo Cardia, ilustrado com imagens dos bordados da família Dumont, do grupo mineiro Matizes Dumont, da cidade de Pirapora. As imagens dos bordados enriquecem sobremaneira o conteúdo musical desse trabalho da cantora. O que grandes pintores e desenhistas fazem com materiais específicos, os Dumont realizam com agulhas e linhas.

O bordado está presente na “Ocupação Maria Bethânia”, do ICI. Durante a pandemia, a cantora criou uma série de trabalhos, dois deles expostos na antessala do segundo piso da instalação. Denominados “Rotas do Abismo” e “O Céu de Santo Amaro”, revelam a intimidade da artista com agulhas e linhas. Um trabalho delicado e paciente, de quem encara atividades artísticas e artesanais como ofício.

Nas comemorações do cinquentenário de carreira de Bethânia, a exposição “Maria de Todos Nós”, em 2015, no Rio de Janeiro, apresentou aquarelas de joias criadas pela cantora. Amiga e frequentadora do ateliê de Maria Bonomi, artista italiana, criadora notável de gravuras e xilogravuras, Bethânia revela com essas atividades atenção especial para adereços, colares e pulseiras, com os quais complementa seus figurinos. As joias desenhadas e expostas por Bethânia tornaram-se objetos confeccionados no ateliê de Ricardo Filgueiras.

Nara, Chico e Bethânia em "Quando o Carnaval Chegar" /Divulgação

Se por um lado, Bethânia exercita seu talento manuseando materiais preciosos, nas festas de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, temos imagens dos andores decorados por ela em louvor a Nossa Senhora da Purificação. São momentos de atenção e concentração para manifestar através do arranjo de flores a devoção e o respeito à Santa. As procissões da cidade são exuberantes, com dezenas de andores transitando sob cânticos e preces, esses também registrados por ela em disco beneficente para a paróquia de Nossa Senhora da Purificação, frequentada pela família Veloso.

O cinema, a palavra e a música

Em 1972, ao lado de Nara Leão e Chico Buarque, Maria Bethânia interpretou Rosa, tendo sido elogiada em seu primeiro filme. “Quando o Carnaval Chegar”, dirigido por Cacá Diegues, registrou os três cantores, então jovens, em uma história próxima das chanchadas de décadas passadas. Cantando “Baioque”, de Chico Buarque, Bethânia protagoniza uma das cenas marcantes, puro cinema. Em 1966 já havia sido lançado “Bethânia bem de perto – A propósito de um show” de Júlio Bressane. Começou ali uma série de documentários fundamentais para quem deseja conhecer a artista e seus pares: “Os doces bárbaros” (Jom Tom Azulay, 1976), “Maria Bethânia - Música é perfume” (Georges Gachot, 2005) estão entre vários outros filmes.

Registro da Ocupação Maria Bethânia - André Seiti/Itaú Cultural

Ao longo de toda a carreira, Maria Bethânia afirmou não saber fazer televisão, não se sentia à vontade. Preferindo o palco, onde sempre cantou e disse poemas, tornou-se referência na arte de declamar textos de Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, entre muitos grandes expoentes da literatura em língua portuguesa. Mudando de ideia, foi para a tv e conduziu “Prosa e Poesia”, conversando com poetas e compositores e, principalmente, declamando.

Em 2015, pela Editora UFMG, publicou seu Caderno de Poesias. Um livro com primoroso projeto gráfico de Gringo Cardia, com design de Flavia Castro. Nesse, a cantora apresenta uma síntese do Brasil através de poemas e canções, acompanhados de um dicionário de autores, ilustrado com a fina flor da arte brasileira, indo de Poty a Tarsila do Amaral, entre outros grandes.

A palavra, texto e poesia, seus criadores e sua grande intérprete é o que norteia a “Ocupação Maria Bethânia” no ICI. Tudo embalado com interpretações musicais onde a cantora reina. Deixamos para a conclusão deste texto a música, principalmente por ser a expressão máxima que estabelece a ligação de Bethânia com as artes plásticas, a literatura, a poesia, a pintura, o artesanato, o cinema. Uma ideia da grandiosidade do repertório da cantora pode ser verificado na variedade de autores, gêneros, nas parcerias com os melhores músicos, nos duetos com os melhores intérpretes. Nos discos de Maria Bethânia há compositores tão distintos quanto Villa Lobos e José Fortuna, Chico Buarque e Joubert de Carvalho, o que a torna absolutamente representativa do nosso cancioneiro. Não é exagero afirmar que os discos de Bethânia sintetizam toda a música do Brasil.

Com encerramento no dia 9 de junho próximo, a “Ocupação Maria Bethânia”, no ICI, sintetiza o universo da cantora tendo a palavra e a imagem como guias. Há dois espaços dedicados à instalação: no térreo predominam fotos suspensas, com textos projetados no chão. Permeiam as festas populares, a intimidade da cantora, seus familiares e momentos marcantes de sua carreira. Reserve pelo menos 80 minutos, o tempo de duração do vídeo, para visitar a sala superior. Apresentado através de 47 monitores, um espelho de água duplica as imagens e impera, em todo o ambiente, a voz de Maria Bethânia, cujo conteúdo justifica a ocupação e, ao mesmo tempo, deixa a certeza de que a Ocupação deveria se tornar exposição fixa. Bethânia e nós merecemos.


*Valdo Resende é escritor, diretor teatral e obviamente, fã da cantora. A visitação da Ocupação Maria Bethânia é de terça-feira a sábado, das 11h às 20h; domingos e feriados, das 11h às 19h. Vai até 9 de junho. Entrada gratuita.