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Matérias / Escravatura

A abolição tardia da escravatura: 'A maioria da população foi prejudicada pela dominância da economia escravista'

Autor de '1888: uma biografia da abolição da escravidão no Brasil', o historiador Marcos Costa esclarece com a escravidão foi um atraso para o país; leia a entrevista!

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 28/06/2024, às 18h40 - Atualizado às 18h41

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Pintura registra o interior de um navio negreiro - Domínio Público via Wikimedia Commons
Pintura registra o interior de um navio negreiro - Domínio Público via Wikimedia Commons

No dia 13 de maio de 1888, a Lei Áurea extinguiu a escravidão no Brasil. O processo, que aconteceu de forma gradual, fez de nosso país a última nação independente da América Latina e do Ocidente a abolir oficialmente a prática

Um dos primeiros grandes avanços da luta aconteceu com a 'Lei Eusébio de Queirós' (1850) que proibia a entrada de africanos escravizados no país. Em 1871, a 'Lei do Ventre Livre' libertou todas as crianças nascidas de mães escravizadas e, em 1885, a 'Lei dos Sexagenários' libertou os escravizados com 70 anos ou mais.

Mas, um ponto que vale ser ressaltado é que o Brasil se tornou independente logo em 1822, portanto, a 'independência' dos escravizados só ocorreu pouco mais de seis décadas e meia depois. Por qual motivo esse processo demorou tanto assim?

"O debate sobre a necessidade de enfrentamento da questão do tráfico de escravos e da escravidão surgiu já nos momentos iniciais da independência", explica Marcos Costa, autor de '1888: uma biografia da abolição da escravidão no Brasil' (Editora Valentina), em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História. 

Sobre a questão do tráfico de escravos no Atlântico Sul, a Inglaterra impôs ao Brasil que tomasse alguma atitude contra o tráfico como condição para o reconhecimento da independência", contextualiza Marcos, que é doutor em História pela UNESP.

O historiador e escritor ressalta que a Independência do Brasil se consolidou apenas em 1826, justamente mediante um tratado feito entre Brasil e Inglaterra para que o tráfico de escravos terminasse em 1831, quando o acordo entraria em vigor. "Não por acaso, esse é o ano da abdicação de D. Pedro I, por pressão dos traficantes e dos escravistas".

Figuras abolicionistas

Marcos Costa aponta que a questão da escravidão foi colocada em pauta por várias pessoas, mas poucas se destacam como José Bonifácio, que elaborou um projeto de abolição da escravidão que seria apresentado na Assembleia Constituinte em 1823 — que acabou sendo dissolvida no final daquele ano, justamente por questões relativas à escravidão, à abolição. "Bonifácio foi exilado por conta desse projeto", aponta.

Pintura oficial de José Bonifácio - Domínio Público via Wikimedia Commons

A demora em torno do tema da abolição se explica muito por conta do fato dos escravistas, e dos traficantes, terem se tornado, a partir de 1822, donos do poder. "Eram deputados, senadores que haviam acabado de se livrar de Portugal, que pressionado pela Inglaterra, começava a querer dificultar a questão do tráfico de escravos". 

Essa autonomia, essa liberdade que eles ganharam para agir por conta própria, sem se submeter às ordens que vinham de Portugal era o melhor dos mundos possíveis para eles, de modo que qualquer projeto de lei no sentido de abolir o tráfico ou a escravidão era simplesmente derrotado e engavetado", diz o historiador. 

Herança colonial

Apesar do Brasil ter se tornado independente em 1822, consolidando-se assim em 1826, conforme já debatido por Marcos, muitas das questões que deveriam ter sido resolvidas em um primeiro momento, que seriam essenciais para construirmos de fato uma nação, não foram para frente por conta de sua relação com o que chamamos de Herança Colonial

"Uma dessas heranças era a economia predominantemente primária exportadora, baseada no trabalho escravo", contextualiza o pesquisador. "Ainda que exportar produtos primários fosse, e ainda é, um dos grandes negócios do país, era preciso incentivar a indústria, o comércio, para diversificar a economia, questões sobre as quais muito pouco se fez". 

Retratação do Mercado de Escravos do Rio de Janeiro - Arquivo Nacional do Brasil / Domínio Público

"Outra herança, essa nefasta, é a escravidão, era preciso ter acabado com a escravidão e instituído o trabalho assalariado no campo, nas fazendas produtoras de café, mas havia uma profunda ignorância no Brasil sobre os fundamentos básicos da economia, de modo que não havia, ou havia muito poucos, nas Câmaras e na sociedade, homens suficientemente conscientes dos princípios da ciência econômica e comprometidos com um novo modelo de Brasil, de modo que prevaleceu esse passado colonial", continua. 

Se essas questões tivessem sido enfrentadas logo nos anos iniciais da independência, debate Marcos, "a história do Brasil no século 19, no século 20, teria sido outra". 

Infelizmente o predomínio de decisões políticas fundadas no fisiologismo, no patrimonialismo, nos impediu de construir uma história diferente", lamenta. 

A queda da monarquia

Para Marcos Costa, a escravidão em nosso país, que durou 388 anos (1550 até 1888) sempre foi um 'negócio' que beneficiava poucas pessoas, como os traficantes que vendiam os negros escravizados ou os próprios escravistas, que usavam a mão de obra escrava. 

A imensa maioria da população era prejudicada pela dominância, no país, dessa economia escravista", afirma.

"Sempre houve na sociedade um sentimento abolicionista que foi crescendo naturalmente e se tornando, aos poucos, um movimento organizado. Pessoas de todas as classes sociais e etnias faziam parte desse movimento abolicionista", aponta. 

O grande problema dessa questão, explica, é que a grande resistência ao abolicionismo estava presente nas Câmaras, formadas de sua imensa maioria por deputados e senadores que se beneficiaram com a prática. "De modo que formavam sempre maioria contra todas as leis, os projetos que visavam o enfrentamento da escravidão".

Quando a escravidão foi abolida, em 1888, o combate já era um debate amadurecido por aqui, visto, como já explicado no início da matéria, com o surgimento de leis abolicionistas desde 1850. No mesmo período, a regulamentação do funcionamento de bancos e a constituição de empresas no Brasil também ajudaram a mudar o ambiente econômico do país. 

Quadro de Jean-Baptiste Debret feito em 1830 mostra uma família brasileira sendo servida por escravos - Domínio Público /Jean-Baptiste Debret / Wikimedia Commons

"A segurança jurídica resultou em maior investimento e em maior diversificação econômica, embora ainda houvesse muito que se fazer. A riqueza não se fazia mais apenas a partir da agricultura e da exportação de produtos primários, mas agora também da indústria, do comércio", conjectura Costa

"As Câmaras, também nesse sentido, vão ganhando novas figuras, novos personagens que eram naturalmente abolicionistas, visto que a escravidão não beneficiava em nada o país, a sociedade, a economia, senão aquela mesma parcela de empresários de sempre", prossegue.

Com a elite econômica escravista sendo substituída, naturalmente, por outra elite econômica nos meandros do poder, a questão encontrou pouca resistência nas antes fechadas Câmaras, demonstrando que o órgão havia passado por uma renovação de mentalidade em relação à escravidão. 

Em 1889, porém, a Proclamação da República Brasileira instaurou a forma republicana presidencialista de governo no Brasil, encerrando a monarquia constitucional parlamentarista do Império — destituindo Dom Pedro II do poder e ordenando seu exílio.

Detalhe do quadro Proclamação da República, de Benedito Calixto - Wikimedia Commons

O golpe de 1889 que instituiu a República é um ato desesperado daqueles que viram a sua forte influência no Estado fluindo pelos seus dedos. Com a escravidão ou sem a escravidão, essa elite escravista não queria perder a sua influência sobre o Estado, sobre a tomada de decisão", esclarece o historiador. 

O 'futuro' e os desafios dos negros

Embora o ano de 1888 marque, em tese, o fim da escravatura, muitos desafios surgiram dali em diante, afinal, pouco se fez para oferecer uma condição mínima aos ex-escravizados — o que tornou tudo uma situação bastante complexa.

O autor de '1888: uma biografia da abolição da escravidão no Brasil' aponta que a primeira grande questão desse ponto é que, na época, no final do século 19, não existia a ideia que temos hoje de que o Estado pudesse desenvolver programas sociais, assistencialismo. 

As políticas públicas que temos hoje para o enfrentamento da pobreza, por exemplo, surgiram no Brasil apenas no início dos anos 1990, no governo de Fernando Henrique Carodo. Até então havia com maior intensidade apenas políticas habitacionais, surgidas nos anos 1970", aponta.

Dessa forma, ter tal pensamento ou implementar qualquer medida no gênero, no século 19, teria sido algo não somente extremamente inovador como fora do espírito daquele tempo. "É quase impossível pensar nessa possibilidade sem cair no anacronismo". 

"O que se pensou foi na distribuição de terras devolutas do Estado, para que essa população pudesse produzir tanto para a sua própria subsistência, como para o comércio. Pensou-se em um financiamento tanto das terras, como da produção, o que teria sido um projeto excelente", esclarece.

Escravizados numa fazenda na província de Minas Gerais, 1876 - Coleção Princesa Isabel: Fotografia do século XIX, via Wikimedia Commons

Mas, até mesmo esse viés acompanha outras questões: como, inicialmente, a criação de leis, pela anuência das Câmaras, algo que, naquele momento, teria sido muito difícil, não só pelo fato da abolição ter sido aprovada recentemente, mas por todo "ódio e ressentimento" que a medida havia despertado, aponta Costa. "Pois as Câmaras ainda estavam tomadas por esses escravistas". 

"Outra questão era a de logística mesmo, a de como fazer para catalogar essas pessoas, reuni-las, comunicar-se com elas de forma ágil, poucos eram os telégrafos, os meios de transporte, tudo era, enfim, muito precário", contextualiza. 

Temos também que contar com a real situação dos ex-escravizados, que cresceram em fazendas, plantando e colhendo café, portanto, eram certamente analfabetos, assim, não tinham evidentemente nenhum tipo de qualificação. "Saberiam lidar com as terras, com os negócios, financiamento, vendas e tudo mais?", questiona o historiador. 

Como resultado da falta de medidas, muitos dos ex-escravizados foram para as cidades, onde o cenário era igualmente precário, pela falta de grandes empresas, de trabalho, de renda, qualificações e muito mais. "Como se pode ver, a situação não era simples, e com a República então, tudo isso foi esquecido, engavetado".

A tardia abolição da escravatura também ressoou na sociedade que não sofria com ela, afinal, como aponta Marcos Costa, o atraso nos fez perder o que ele classificou como "primeiro bonde da história". 

"Havia a Revolução Industrial, o liberalismo econômico e havia pessoas com um projeto de país bastante auspicioso desde os primórdios da Independência e que foram completamente ignoradas", diz. "Essas pessoas poderiam ter trazido ao Brasil esses bons ventos que sopravam da Europa e ter colocado o Brasil nos trilhos da modernidade, começando, evidentemente, pela abolição da escravidão".

Mas, ao tomar o caminho contrário do resto do mundo, e investindo apenas numa economia agrária, o Brasil dependia de uma baixíssima diversificação econômica, o que continuou, ainda, com a manutenção de privilégios, de monopólios e do poder centralizado em poucos.

"Tomamos assim um caminho completamente diverso daquele que revolucionou a sociedade, a economia e enriqueceu as nações europeias. Só com a crise de 1929, que pôs fim à primeira República, é que o Brasil começou a pensar um projeto de industrialização para o país", explica.

"A República no Brasil foi, e até hoje ainda é, uma continuidade do velho patriarcalismo, do velho patrimonialismo, caracterizados pelo uso do cargo público para obter algum benefício para si e para os seus pares; o uso das instituições públicas para alavancar interesses particulares e o uso ou a destinação de dinheiro público em favor próprio, de aliados e de partidos políticos".

A escravidão foi abolida em 1888, o que permaneceu até os dias de hoje, e se tornou a mais nefasta herança colonial para o Brasil, é mesmo o patrimonialismo, a velha confusão entre público e privado", finaliza Macos Costa.