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Matérias / Juliano Moreira

A história do médico negro que revolucionou tratamentos de saúde mental no Brasil

Nascido em 1872, Juliano Moreira entrou para a faculdade de medicina com apenas 14 anos de idade e tornou-se uma figura central para a psiquiatria moderna no país

Marcus Lopes Publicado em 09/06/2024, às 08h00 - Atualizado em 10/06/2024, às 15h07

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Juliano Moreira - Domínio público
Juliano Moreira - Domínio público

No dia 18 de julho de 1841, o Rio de Janeiro celebrou a coroação de Dom Pedro II, um evento grandioso que marcou o início do que deveria ser um governo destinado a ser forte e estável após o turbulento período regencial.

Durante os festejos, o imperador assinou decretos importantes, como a concessão de títulos de nobreza, a libertação simbólica de 20 escravos e a criação do Hospício de Pedro II, a primeira instituição nacional para tratamento de transtornos mentais.

Inaugurado em dezembro de 1852 após uma década de construção, o hospital enfrentou desafios como burocracia e falta de recursos, com parte do financiamento vindo de loterias oficiais.

Antes do Hospício de Pedro II, os alienados, fossem eles ricos ou pobres, não recebiam proteção governamental e, por determinação do Código de Posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eram cuidados por suas famílias ou levados às precárias enfermarias da Santa Casa de Misericórdia. Já aqueles que eram considerados mais violentos, eram enviados às cadeias.

O conceito de medicina psiquiátrica no Brasil, vale mencionar, era praticamente inexistente até a criação do "Palácio dos Loucos". Juliano Moreira, que assumiu a direção do hospício em 1903, foi uma figura central na psiquiatria moderna no país, transformando-se em uma referência na história da medicina brasileira.

Negro e pobre, Moreira destacou-se em uma sociedade escravocrata, semelhante a outras figuras históricas como o abolicionista Luiz Gama e os irmãos Rebouças.

Origem humilde

Juliano Moreira nasceu em Salvador, em 6 de janeiro de 1872, filho de uma quitandeira e empregada doméstica e um inspetor de iluminação pública que o reconheceu tardiamente.

Apesar de sua origem humilde, Moreira se destacou desde cedo. Sua mãe, Galdina do Amaral, escolheu como padrinho o Barão de Itapuã, um influente médico e professor, o que facilitou o acesso de Juliano à educação.

Com apenas 14 anos, Moreira ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia e, aos 18, formou-se, tornando-se um dos primeiros médicos negros do Brasil. Durante sua carreira, desenvolveu importantes estudos sobre sífilis, hanseníase, tuberculose e outras doenças, além de fundar diversas entidades médicas.

Fotografia do psiquiatra encontrada no livro Baianos Ilustres, de 1945 / Crédito: Domínio público

Ele se especializou em psiquiatria, influenciado, possivelmente, pela depressão e suicídio do seu padrinho. Em 1895, viajou à Europa para aprimorar seus conhecimentos e, no ano seguinte, tornou-se professor de Psiquiatria e Doenças Nervosas na Faculdade de Medicina da Bahia, quebrando barreiras em uma época em que a carreira acadêmica era reservada à elite branca.

“Ele chegou a ser alertado sobre isso por outro médico, mas com a sua genialidade se sobrepôs e conquistou a cátedra”, diz a pesquisadora Ynaê Lopes dos Santos em seu livro Juliano Moreira – Um Médico Negro na Fundação da Psiquiatria Brasileira (Editora da Universidade Federal Fluminense – Eduff).

Por ser bastante querido pela comunidade acadêmica, sua aprovação ao cargo, após tirar notas máximas nos testes, causou grande comoção na cidade e chegou a ser tema de reportagens no Correio da Bahia.

Em seu discurso de agradecimento, Moreira , dirigindo-se aos conservadores, declarou que sua cor de pele "em nada mancharia a reputação da universidade."

Atuação na psiquiatria

Nessa época, a psiquiatria era uma área nova e pouco explorada, oferecendo um vasto campo de trabalho para o jovem médico e professor Juliano Moreira, que estudava intensamente as novidades europeias e visitava instituições como o Asilo São João de Deus, em Salvador.

Juliano foi um dos primeiros brasileiros a ler e debater "A Interpretação dos Sonhos" de Freud e introduziu a psicanálise no Brasil. Entre 1899 e 1901, viajou pela Europa para participar de congressos e visitar clínicas psiquiátricas, adotando técnicas modernas de tratamento de Emil Kraepelin, pioneiro da psiquiatria moderna.

O médico Juliano Moreira / Crédito: Wikimedia Commons/Arquivo Nacional

Com uma perspectiva humanista, Moreira iniciou mudanças conceituais no tratamento psiquiátrico no Brasil. Ao ser nomeado diretor do Hospício Nacional de Alienados no Rio de Janeiro, ele implementou reformas significativas: retirou grades das janelas, aboliu o uso de camisa de força, ampliou o quadro de médicos e estimulou terapias baseadas na conversa.

Além disso, criou uma ala infantil, instalou oficinas produtivas e reformou o hospital para torná-lo mais claro e arejado. Em 1905, fundou uma escola de enfermagem para formar um corpo técnico adequado.

O médico também atuou na área legal, promovendo uma legislação moderna para o amparo aos alienados e a modernização dos tratamentos psiquiátricos. Ele colaborou com as reformas urbanas e sanitárias do governo Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos, além de trabalhar com o sanitarista Oswaldo Cruz.

Na época, Moreira desafiou e derrubou velhas teorias psiquiátricas, incluindo as de seu antigo professor Nina Rodrigues, construindo novos conceitos na psiquiatria brasileira.

Novas ideias

Nina Rodrigues, catedrático em medicina legal, defendia a tese absurda de que alguns tipos de loucura estavam ligados à genética da mestiçagem e que algumas raças eram mais propensas a cometer crimes. Este conceito, chamado de "racismo científico", era aceito na época, mas foi duramente combatido por Juliano Moreira, inclusive em congressos internacionais.

O professor da Universidade de Hamburgo, Alfons Maria Jakob (à dir., ao lado de uma mulher não identificada) é recepcionado por Juliano Moreira (2º à esq.) no Rio de Janeiro / Crédito: Divulgação/Fiocruz

O racismo científico, vale ressaltar, também associava doenças como o alcoolismo a questões raciais, mas Moreira atribuía os problemas ao legado da escravidão.

Moreira também rejeitava a ideia de que a degenerescência mental estava ligada a viver em regiões tropicais, considerando tais argumentos preconceituosos.

Segundo a psicóloga Alina Zoqui de Freitas Cayres, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), ele, entretanto, não questionou a teoria da degenerescência em si, apenas as causas atribuídas a ela.

Suas viagens à Europa, além de servirem para adquirir novos conhecimentos, ajudavam a tratar sua própria saúde, já que sofria de tuberculose. Em uma dessas viagens, conheceu a enfermeira alemã Augusta Peick, com quem se casou. Tiveram uma vida modesta e feliz até a morte de Moreira em 1933.

Abordagem humanizada

A abordagem humana de Moreira no tratamento dos pacientes chamou a atenção até mesmo do escritor Lima Barreto, que chegou a ser internado no Hospício de Alienados em 1914. Barreto relatou a forma acolhedora e compreensiva como foi tratado por Moreira, destacando sua bondade e empatia.

O doutor Juliano Moreira é uma excelente e boa pessoa; e não mete medo aos homens como eu, pois ele os estudou e lhes adivinha as dores", disse o escritor na época.