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Matérias / Iemanjá

Processo de colonização do Brasil gerou a deturpada imagem da Iemanjá branca

No dia em que é celebrado o Dia de Iemanjá, o site Aventuras na História conversou com especialistas sobre a importância do empretecimento de divindades africanas no Brasil

Maria Luiza Lima, sob supervisão de Thiago Lincolins // Reportagem: Isabelly Lima Publicado em 02/02/2023, às 11h00 - Atualizado às 15h07

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Escultura de Iemanjá na Colônia de Pescadores, em Salvador - Cristian Carvalho
Escultura de Iemanjá na Colônia de Pescadores, em Salvador - Cristian Carvalho

Você já deve ter visto vidros de perfume na praia, espelhos na areia, flores no mar ou até mesmo a típica tradição de ano novo de pular as sete ondas em sinal de bençãos e esperança. Parte desses costumes vem da orixá africana Iemanjá, também conhecida popularmente como “Rainha do Mar”, cujo dia é celebrado em 2 de fevereiro. 

O Dia de Iemanjá, sendo seu nome uma referência à expressão do idioma Iorubá "yeye ma ajá" - “mãe cujos filhos são peixes” - celebra a padroeira dos pescadores, protetora dos lares, das crianças e gestantes, através de oferendas e procissões cultuadas na religião do candomblé e em outras religiões afro-brasileiras.

Celebração do Dia de Iemanjá, em Salvador, Bahia. Foto: GettyImages

No catolicismo, Iemanjá corresponde a Nossa Senhora da Luz e a data comemorativa é a mesma de Nossa Senhora dos Navegantes. 

Muito querida pelos brasileiros, sua imagem possui uma forte representação religiosa e cultural, resultado da interação entre as heranças históricas. No entanto, com o perpassar do tempo, a identidade do orixá passou por modificações e reinterpretações no que diz respeito, até mesmo em aspectos como o “embranquecimento” da figura.

Para entender melhor sobre essas questões, o site Aventuras na História realizou uma entrevista exclusiva com Vilson Caetano, Doutor em Antropologia pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e Criador do Núcleo de Referência e Estudos Afro-Brasileiros (NUREAB). 

Identidade 

Inicialmente, é importante delimitar que, atualmente, é comum se deparar com representações em que Iemanjá não possui em sua estrutura os típicos búzios e conchas. Em uma rápida pesquisa, é possível encontrar ilustrações que mostram uma Iemanjá branca, com raízes no processo de colonização do país, responsável por originar uma visão de superioridade europeia sobre os povos indígenas e africanos. 

A respeito das mudanças da composição original, Vilson explica que a perda gradativa dos elementos identitários faz parte de um processo colonizatório e, consequentemente, entrelaçado ao racismo, ao qual a sociedade foi submetida. 

Nesse processo de concepção ou de produção de arte alguns elementos que são definidores de identidade foram, de fato, deixados de lado. As artes africanas possuem a sua originalidade, que no decorrer do tempo foi chamada de primitiva, de maneira pejorativa, e em alguns momentos de originária, no sentido positivo", explica ele.

Além disso, o professor explica que outros orixás, como Exu, mensageiro que passou a ser descrito como o diabo, também foram alvo do movimento de sobreposição da cultura africana, sem considerar os reais significados das divindades. 

Quem também explica ao site Aventuras na História a modificação das imagens dos orixás visando sobrepor a cultura africana é Cintia Maria, presidente do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, que presenteou uma Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, em Salvador, Bahia, com uma obra de Iemanjá negra, feita pelo artista plástico Rodrigo Siqueira.

"Após a Colonização, o estado brasileiro criou a Delegacia de Jogos e Costumes, que prendia adeptos da cultura afro-brasileira e as obras de artes sacras afro-brasileiras. Essas obras, ainda, eram expostas em um museu racista em Salvador. Por isso, acredito que essa ação do Muncab, também contrapõem, inclusive, o discurso amplamente difundido pela antropologia criminal, criada no final do século XIX, pelo médico italiano Cesare Lombroso, e disseminada em Salvador pelo médico Nina Rodrigues, adepto de Lombroso, que criou um museu na Faculdade de Medicina da Bahia", explica Cintia. "Dentre as abordagens racistas, era abrigada uma coleção de objetos da arte sacra afro-brasileira e africana que segundo eles colaboravam para atestar a inferioridade dos negros. Durante muitos anos os estudantes da Bahia inteira eram levados para visitarem o Museu do Nina Rodrigues. Eu cheguei a visitar esse museu sendo levada por minha escola. Imagine o impacto de um museu que criminaliza e inferioriza as culturas e pessoas negras?". 

Nova escultura na Colônia de Pescadores, em Salvador, reforça a imagem original de Iemanjá /Crédito: Cristian Carvalho

Embranquecimento

A discussão em torno do “embranquecimento” de Iemanjá, ou seja, a retirada de todo o legado africano para sobrepor as representações europeias, está diretamente relacionado com os conceitos do processo colonizatório e racista, uma vez que, de acordo com Vilson, o racismo evidencia-se no momento em que silencia as demais diversidades

Em nenhum momento, o embranquecimento representa a inclusão. Pelo contrário, o embranquecimento significa a negação. Sem dúvida, o embranquecimento da figura de Iemanjá, e até mesmo a sua associação com Nossa Senhora e a utilização de símbolos estranhos à tradição africana, é muito mais fruto de um processo perverso que ao longo do tempo vem negando esses elementos civilizatórios negros e africanos, que estão na base da construção do Brasil". 

Ele ainda ressalta que, dentro do conceito de “arte sacra afro-brasileira”, o esforço de embranquecer o orixá é “uma tentativa de negação dos nossos valores” e, acerca do histórico controlador da sociedade em cima das imagens femininas, “uma afirmação de princípios heteronormativos, judaico-cristãos, machistas e sexistas, que vêm negando ao longo da história o lugar de protagonismo que as mulheres negras sempre desempenharam”. 

A presidente do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, também comentou sobre o desprezo na representação de Iemanjá, algo que não se percebe no catolicismo. 

No catolicismo, quando falamos dos Santos católicos, falamos de pessoas que existiram e foram importantes para as suas comunidades, que fizeram milagres para as suas comunidades. Quando falamos de Orixá é a mesma situação, por exemplo, Irmã Dulce tem nas representações das artes sacras o seu fenótipo respeitado. Qual a dificuldade de se aceitar que uma divindade africana tem a pele escura? Por que quando falamos de Orixás as pessoas têm a mania de falar que é energia e não tem cor?", questiona Cintia.

Cintia também relembra os séculos de colonialismo e a questão do apagamento, apropriação e perseguição das culturas de matrizes africanas, que ainda geram impactos negativos no Brasil.

"As comunidades africanas que foram escravizadas eram submetidas a um ritual do esquecimento antes de serem embarcadas nos navios negreiros. Elas deveriam dar várias voltas em torno de um Baobá e, a cada volta que davam, deveriam esquecer os seus nomes, as suas origens, as suas tradições, as suas culturas, suas comunidades, seus costumes, suas famílias", destaca Cintia. "Celebrar os 100 anos da Festa de Iemanjá nos mostra que apesar de toda violência, tentativa de apagamento e perseguição das populações africanas que foram escravizadas, mas resistiram e conseguiram dar continuidade às tradições e as culturas africanas na diáspora. O Muncab, enquanto museu das culturas afro-brasileiras, pode colaborar para o relembramento daqueles que em virtude do racismo estrutural tenham esquecido de suas tradições".

Preservação da memória

Preservar a memória da imagem de Iemanjá é uma iniciativa essencial para manter viva, de maneira fiel, a raiz da cultura dos povos e das religiões. Para o especialista em Antropologia, a melhor forma de alcançar tal marca é criar espaços de debates e diálogos, com a finalidade de expandir as informações e não permitir que as figuras sejam alteradas. 

Assim, Vilson cita a ação do Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab), de presentar Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, em Salvador, Bahia, com uma escultura de Iemanjá negra, citada no começo da reportagem.

A escultura do artista plástico e carnavalesco amazonense Rodrigo Siqueira, especializado em artes sacras, personifica traços humanoides da beleza feminina africana, e produzida em estrutura metálica combinada com resina de vidro e de mármore. A obra também apresenta conchas e búzios naturais importados da Indonésia.

"A imagem preta de Iemanjá em um lugar histórico, como a Colônia de Pescadores, educa e impacta muito mais. Acredito que de fato essa obra força o nosso olhar a se modificar e enxergar Iemanjá para além da representação dos olhos do colonizador", destaca ele.

Cintia Maria também destacou ao site a importância da escultura, afinal, é uma maneira de não só reafirmar a identidade de Iemanjá, mas também preservá-la. 

Presentear a colônia de pescadores com essa escultura é reafirmar a identidade africana de Iemanjá, é contribuir para a preservação dessa identidade. Quando as pessoas aceitarem que uma deusa africana é negra teremos dado um grande passo em direção a igualdade", diz ela.
A nova escultura de Iemanjá de autoria do artista plástico Rodrigo Siqueira /Crédito: Cristian Carvalho

Vilson também enfatizou a importância de se valorizar as descendências e os costumes que envolvem a imensa riqueza da matriz africana

São iniciativas como esta da escultura preta que faz com que as pessoas pensem, saiam da sua zona de conforto e sejam obrigadas a consumir outros conteúdos, que fazem com que nossa memória ancestral negra seja também valorizada, preservada e reconhecida como um dos símbolos identitários que constituíram o nosso país".