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Testeira

Krajcberg de vítima do nazismo a defensor da Amazônia

Pintor, escultor, fotógrafo, a trajetória do artista que é marco na luta pelo meio ambiente

Valdo Resende* Publicado em 05/08/2023, às 09h00 - Atualizado em 18/08/2023, às 15h02

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Foto de Frans Krajcberg (à esqu.) e registro do Espaço Frans Krajcberg, em Curitiba - Sam Emerick/flickr
Foto de Frans Krajcberg (à esqu.) e registro do Espaço Frans Krajcberg, em Curitiba - Sam Emerick/flickr

Tente se colocar no lugar de um oficial judeu na II Guerra que busca a mãe, conhecida militante comunista, presa em Varsóvia. O oficial busca uma forma de entrar na prisão quando encontra o local vazio. Verifica vários ambientes e, em determinada sala, encontra a mãe enforcada, o corpo pendurado pelo pescoço. Sem titubear o oficial pega uma cadeira e, rapidamente, tenta tirar o corpo da mulher daquela posição. Percebe então que soldados nazistas entram no prédio. O infeliz soldado vê-se diante de uma terrível escolha:  ficar e morrer junto com a própria mãe ou fugir e abandonar o corpo. O que você faria? 

Esse oficial era Frans Krajcberg e é dele a conclusão dessa passagem: “Com o pensamento confuso, vi que minha mãe possuía um cordão com o símbolo do Partido Comunista no pescoço. Então, chorando, dei um pulo, arranquei o colar dela e saí correndo daquele prédio. Essa foi a última vez que vi minha mãe”.

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Queimada, 1970 – Fogo e destruição permeiam vida e obra de Frans Krajcberg

Judeu nascido na Polônia (Kozienice, 1921), Frans Krajcberg conheceu os horrores da II Grande Guerra quando perdeu todos os familiares, cerca de 150 pessoas entre os muitos judeus exterminados. Soterrado por uma bomba, foi salvo por um amigo e perdeu parcialmente a memória, o que fez com que esquecesse o rosto da mãe, a data do próprio aniversário. Com a Polônia invadida, engaja-se no exército soviético. Aprende o ofício de carpintaria e engenharia. Colabora na construção de pontes e obras de arte. Terminada a guerra, recebe de Stalin uma condecoração. Anos depois, já no Brasil, perderia o colar que fora da mãe e a medalha recebida de Stalin para ladrões que, entre os materiais roubados em oito assaltos, levaram um quadro, presente do cubista Georges Braque.

Quem fica na cidade não vê muita coisa

A guerra marcaria profundamente o homem e o artista Frans Krajcberg. Sem família, as raízes afetivas perdidas sob escombros explodidos por bombas e minas, tornou-se rígido e duro, ao mesmo tempo um ser delicado e capaz de fazer grandes amigos. Uma visão geral sobre a vida desse homem nos leva a pensar em alguém em eterna busca de expressão através da arte e da natureza. Sentindo-se incapaz de viver onde nasceu, empreendeu uma longa e interminável viagem que começou imigrando para a Alemanha, depois Paris; da capital francesa veio para o Brasil. Primeiros momentos no Rio de Janeiro, seguiu para São Paulo. Saiu da capital paulista para viver por um tempo em Itanhaém, no litoral. 

Dentre idas e vindas, a trajetória de Krajcberg diz bem do homem que ele foi. No Paraná, viveu em uma floresta, trabalhando e colecionando orquídeas. Presenciou queimadas e se deparou novamente com os velhos demônios destruidores do planeta. Voltou para o Rio de Janeiro, resolveu residir em Paris e, inquieto, logo foi se acomodar em uma gruta em Ibiza, na Espanha. Tempos depois já estava em Minas Gerais, onde ficou por cinco anos acampado tendo uma perua como moradia. Outros vai e vem desse caminhante que, encantado com o Brasil, conheceu o Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí, e pensou fixar residência em São Luís, no Maranhão. Apaixonou-se pelo litoral baiano e em Nova Viçosa encontrou um local para construir sua casa e seu ateliê.

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Krajcberg. Abstração com relevo de materiais naturais feita em Ibiza, série premiada em Veneza

Por onde passou, Frans Krajcberg legou ao mundo sua relação com a natureza em obras reconhecidas pela crítica e aclamada pelos apreciadores de arte. A série de quadros inspirada nas florestas paranaenses deu-lhe o prêmio de melhor pintor da Bienal de São Paulo de 1957. Das areias de Ibiza criou uma série de abstrações que lhe valeram prêmio na Bienal de Veneza de 1964. Em Cata Branca, na região do pico do Itabirito em Minas Gerais, adicionou a seus trabalhos uma imensa variedade de pigmentos coloridos expostos em decorrência da mineração desenfreada, que levaria aos recentes desastres ambientais. Na Bahia, onde estabeleceu seu ateliê, apaixonado pela exuberante paisagem de restinga e manguezais, transformou materiais destruídos ou desprezados pelo homem em expressivas e inquietantes esculturas. Troncos, madeira queimada, cipós retorcidos, Krajcberg elabora conjuntos escultóricos e instalações que gritam ao planeta os efeitos da ação depredadora e irresponsável de quem olha apenas para o lucro.

Seu espaço no litoral, batizado Sítio Natura, em terras da Bahia está em região devastada, últimos remanescentes da Mata Atlântica. Começou em 1980 a construção da “Casa do tarzan”, como costumava brincar. Tendo encontrado calcinado um enorme tronco de pequizeiro, Krajcberg resolveu que este seria a base de sustentação de sua casa. Um longo processo que terminou só em 1985. Um sistema complexo de sustentação garantiu a estabilidade da casa a sete metros de altura. No entorno ficaram os demais espaços utilizados para as criações do artista.

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A casa ateliê, em Nova Viçosa e seu dono

Naturalizado brasileiro em 1948, Krajcberg não gostava de ser chamado de polonês. Assumia-se brasileiro e criticava duramente todos nós: “Todo mundo fala Brasil! Mas ninguém conhece este país!” falou em depoimento a João Meireles Filho. A partir da década de 1970 empreendeu viagens para a Amazônia e pelo pantanal mato-grossense, onde registrou a feroz destruição ambiental no norte e centro-oeste brasileiros. Realizou fotos que foram e continuam sendo difundidas pelo mundo inteiro em exposições e livros, somando ao artista o ambientalista feroz, que enfrentou o que foi necessário para defender a natureza.

Em 1978 realizou expedição ao Rio Negro na companhia do também artista Sepp Baendereck e do crítico de arte Pierre Restany. Dessa viagem surgiu o Manifesto do Naturalismo Integral, também conhecido como Manifesto do Rio Negro, que foi redigido por Restany. O documento estabeleceu a necessidade de preservação da natureza num momento em que a ditadura militar acabava de construir a rodovia Transamazônica que, cruzando sete estados, pouco ou nada respeitou dos três ecossistemas em seu trajeto. Início de mais uma batalha do artista que se tornaria ainda mais intensa na década seguinte.

Troncos de palmeiras tornados esculturas: A natureza transformada em arte

A transformação radical no trabalho de Krajcberg ocorreu após incursões a Juruena, no Mato Grosso. A cidade surgiu como projeto de colonização da “Juruena Empreendimentos de Colonização LTDA”. Ação comum no norte do país iniciada durante a ditadura militar, começou por regiões fronteiras à Amazônia, como ocorreu no norte da região Centro-Oeste. Grandes “empreendedores” levavam gente do sul para colonizar extensas áreas, ou seja, desmatar, queimar e tomar espaços de grupos originários. As ações foram e são devastadoras; para tal constatação basta atentar para o noticiário atual.

Quando em viagens anteriores pelo país Frans Krajcberg se deparou com um ou outro ato destruidor, em Juruena encontrou uma ação sistematizada. Aos 63 anos entrou na mata, enfrentou as queimadas, registrou fotos, coletou objetos. Usou sua arte para denunciar mais essas ações brasileiras em esculturas e fotos dos incêndios e desmatamentos. A série de fotos A Queimada ainda é vista no mundo inteiro. Em seu trabalho escultórico, o preto e o vermelho materializaram a destruição ambiental, os próprios objetos retirados dos incêndios. Em 1986 o cineasta Walter Moreira Salles Júnior registrou essa fase no documentário Krajcberg – o Poeta dos Vestígios.

Os criadores do Manifesto do Rio Negro: Krajcberg, Baendereck e Restany

Um incômodo para muitos, Krajcberg lutou enquanto vivo para a manutenção de sua obra. Sabia que a ação destruidora humana não pararia facilmente. Tentou criar uma Fundação com seu nome em Vitória, no Espírito Santo, no início dos anos de 1990. Teve o projeto cancelado pela prefeitura local que, inclusive, jogou no lixo uma obra, presente do artista para a cidade e que esteve em frente à rodoviária. Em Curitiba, o poder municipal criou em 1995 um espaço para abrigar 110 esculturas doadas à capital por Krajcberg. O local, um espaço junto ao Jardim Botânico, não recebeu manutenção adequada e o artista entrou na Justiça, em 2010, exigindo a devolução das obras. Um imbróglio jurídico que se estende aos dias atuais, o espaço permanecendo fechado para manutenção e restauro das obras. Fora do Brasil, entre diferentes ações que difundem a obra de Krajcberg há em atividade o L’Espace Krajcberg, antigo ateliê doado por ele à cidade de Paris.

Flor do mangue está entre as esculturas mais conhecidas do artista

Falecido no Rio de Janeiro em 2017 aos 96 anos, o artista deixou o Sítio Natura em doação ao Estado da Bahia, cujo Governo criou a Fundação Museu Frans Krajcberg com espaços em Nova Viçosa e em Salvador. O corpo foi cremado e as cinzas levadas para o Sítio Natura. Em tempos de avanços de queimadas e desmatamentos desregrados, a Amazônia enfrentando um duvidoso Marco Temporal, a obra e a postura de vida de Frans Krajcberg deve ser lembrada, seus manifestos lidos, refletidos e, além de discutidos, devem ser difundidos para as novas gerações. Nesse mês de julho de 2023, quando a temperatura mundial sobe a parâmetros preocupantes, Krajcberg torna-se atual e necessário. A preservação de suas obras, cuja estranha beleza advém de materiais oriundos da destruição e da morte, permanecerão sempre entre as mais contundentes defesas da vida e do planeta Terra. Um estranho e belo grito de alerta.


Valdo Resende utilizou na composição deste texto trabalhos de Fabrício Fernandino, João Meirelles Filho e Uillian Trindade de Oliveira, disponíveis on-line, além de catálogos do artista de seu acervo pessoal: textos de Frederico Morais e Marcus de Lontra Costa.